É justo o Justo. Para mim tem sido. Já a mãezinha que
Deus tem gostava dele apesar de não muito falador, não muito simpático e, se
quero ser sincera, nada prestável.
Tantos anos de vizinhança no prédio e nunca foi capaz
de um deixe D. Emilia que eu levo, eu ajudo, ou deixe estar que não me incomoda
estou de saída e largo ali no contentor.
Na verdade nem um olhar mais demorado ou um sorriso
esboçado. A má fama que o homem tinha no prédio não era de todo desmerecida não.
Parece outro agora. Todo salamaleques para aqui e
para ali, todo mesuras, todo ai não me toques, embora pessoalmente não tenha razão de queixa que a mim não deixa ele cair no
chão não !
Quem o viu e quem o vê. Mas andou muito em baixo
quando da morte da D. Bárbara, coitado.
Dava pena. Para ser sincera dava pena. Está bem que não
era homem que suscitasse simpatias mas sempre bem escanhoado, sempre bem
aprumado, um homem que dava gosto ver. Não que alguma vez tivesse pensado nele
Deus me livre que sempre fui uma mulher recta.
Mas doeu-me quando depois da D. Bárbara o vi tão atormentado,
até mais baixo me parecia o raio do homem. Arrastando os pés, uma ou duas vezes
me pareceu que de combalido até os pés arrastava, o Senhor tenha piedade.
Foi numa dessas ocasiões que nem sei como foi que eu,
sempre tão recatada, me não contive e lhe atirei um: – Então senhor Roberto, a
vida não pára meu vizinho, tem que arranjar forças !
E não é que arranjou ?
Agora mesmo antes da D. Lurdes chegar largou a toalha
deu uma corrida e entrou na água que nem peixe e pôs-se ao largo com meia dúzia
de braçadas ! Não lhe perdoo é a areia que me largou em cima com a arrancada à
Carlos Sá, quando voltar vai ouvi-las vai que eu não sou a D. Bárbara.
Mas contava-lhe eu aquilo foi fogo no rabo do homem. Não
sei se levou a sério ou não o que lhe disse mas a verdade é que arrebitou.
O que sei é que desde aí nunca mais esqueceu um bom
dia D. Emilia, passadas duas ou três semanas já era Mila para cá e para lá,
e deixe que eu levo, ora essa eu carrego, e foi assim que me acudiu à torneira
que pingava há anos e me punha os nervos em franja que o meu Álvaro é a coisa
mais desleixada que eu já vi, era, que agora até me arrepio só de pensar no
estupor do homem e nos anos que o aturei.
Já a mãezinha que Deus tem não gostava dele, apesar de
muito falador e muito simpático.
Há coisas que a gente não vê logo não é ?
Nem sei onde é que eu tinha a cabeça.
O Roberto é muito diferente. O outro nunca, pelo
menos que eu me lembre, e o Roberto agora é Milinha a toda a hora Milinha isto Milinha aquilo que ás vezes até tenho medo que o santo e bom do homem me gaste o nome.
Mas foi assim, depois da mãezinha falecer.
Já reparara que era jeitoso quando do pingo da
torneira, depois calhou o frigorifico ter parado de fazer gelo, e o meu Álvaro
que nunca estava em casa quando fazia falta, um dia quando mudava a lâmpada ao
candeeiro da mesinha de cabeceira sentiu-se mal, eu aflita D. Roberto não me
assuste, senhor Roberto vou-lhe buscar um copo de água deite-se aqui que é o meu
lado que eu já lhe trago a água, não faça mais esforço por amor de Deus e
deixe-se ficar tapado vizinho Roberto que não há problemas, o Álvaro só vem na sexta
feira foi para a Bélgica levar uma carga, ainda me lembro como se fosse hoje,
era segunda feira de Carnaval e sexta feira logo de manhãzinha o Roberto pegou
nas coisas dele e foi só atravessar o piso para o lado dele, levava outras
cores, nunca mais perdeu aquelas cores nunca mais uma aflição daquelas, era
qualquer coisa de tensão baixa, ou alta, faz medicação diária mas nunca mais
uma crise, nunca mais falta de ar nem uma ameaça de desmaio, e aquelas cores
que lhe vê desde que as ganhou que as não perdeu e é isto, uma corrida um
mergulho umas braçadas e parece que tem menos vinte anos, ao Álvaro já não
suportava o hálito a bagaceira ordinária, a esse a crise arrumou de vez,
primeiro foram as prestações do camião a ficar por pagar depois o andar, um dia
cheguei a casa e tinha vendido a mobília, passadas semanas os fiadores
ficaram-lhe com o andar, nunca mais vi o camião na rua e o que me valeu foi o Roberto,
deixa lá Milinha deita-te aqui que é o meu lado, olhe filha para mim esta crise
foi uma oportunidade e apesar de tudo e daqueles bandidos do governo a reforma
dele tem-se aguentado malgrado os cortes, estamos ali naquela vivenda da
marginal, alugámos um quartito duas semanitas e olhe ele vem aí desculpe tenho
que me arranjar que ele marcou mesa na marisqueira e detesta que o façam
esperar quando mete cerveja e sapateira.
…