quarta-feira, 5 de março de 2014

179 - NOSSA SENHORA DA LAGOA ......................


Sempre duvidara que aquela enorme igreja assentasse as fundações em cima de uma lagoa, não tanto por duvidar ter a física da leveza sucumbido às premonições populares e disso não ser capaz, afinal eu mesmo já vislumbrara várias vezes a vila inteira pairando acima das nuvens, vila, castelo, varandil, igreja, cisterna, escola, muralhas, tudo certamente muito mais pesado que uma igreja só, sobretudo uma de aparência tão leve como o azul claro que certa vez lhe rematava os baixinhos. 

                   Porém era para mim difícil aceitar que ali houvesse uma lagoa, as dúvidas assaltavam-me não obstante a certeza das águas na cisterna, e que bastas vezes sentira bem frias nas cálidas tardes de verão em que eu e o Julinho lá nos refugiáramos da canícula.

Nessa manhã aborrecera-me, já ia alta, e eu, sozinho, brincara de avião em torno do pelourinho quando senti roçagar na face as almas penadas dos expostos e a pele se me arrepiou num calafrio repentino, como quando acordava com uma osga passeando-se no meu pescoço. 

Afastei-me receoso e tão bruscamente que as grilhetas dos mortos se me enlearam nos pés e me travaram os passos e, temente, encostei-me ao gargalo do poço cuja água, tão profunda, jamais poderia ser a mesma que a do charco da igreja de Nossa Senhora da Lagoa, mas reflectia, refractada nos círculos concêntricos que se formavam na queda das pedrinhas que com desfastio provocado pelo ar pesado da manhã eu lhe atirava, reflectia a minha imagem, tremente e temente, e que por instantes ficava impressa nessa água assim agitada, em contraponto à quietude a que os sacrificados mártires no pelourinho se impunham.

Foi somente quando o fundo do poço me devolveu a imagem de um ungulado de olhos em chamas que o corpo se me inteiriçou numa paralisia asfixiante e intentei fugir dali, subtraindo-me ao hausto que o gargalo do poço exalava e espinhosamente me atraía para as águas profundas que o bolçavam.

Dei por mim fugido da razão e trémulo da emoção que me causou o tecto elevado da igreja, cosi-me melhor contra uma das altas colunas que sustentavam a nave quando me mirei e remirei nas lajes escuras do chão de xisto impregnadas de humidade, tentando não ser eu mas um outro que refugiado estaria numa palafita que séculos antes dos castros ocupavam o lugar que hoje a igreja de Nossa Senhora da Lagoa tanta protecção me oferecia.

Do alto da minha pequenez assustada encolhia-me ante a esplendorosa talha dourada do altar mor e atrevi-me, pé ante pé, a percorrer a nave deserta e fresca onde eu só não levitava por sentir sobre mim o pesado olhar de todos os santos, em todos os altares, em todas as capelas, focados em mim, intimidando-me, enquanto continuava ouvindo silvando lá fora as almas dos mortos rodopiando em volta do pelourinho e assomando ao gargalo do poço, arrastando as correntes e exibindo as chagas purulentas cujo cheiro, fétido, os círios ardendo nos altares cobriam e eu, de pernas tremendo como varas verdes, num salto fenomenal para não pisar as lajes sob as quais descansam em paz os ditosos, saí dali a fim de lhes não perturbar o eterno sossego que naquela paz sagrada buscavam.

Vergado à compunção ensurdecedora que o silêncio da igreja incutia, arrastei tenazmente os meus medos e alcancei a escada que me conduziu à varanda no alto do frontão entre as duas torres sineiras cujos sinos, melíflua e melodiosamente, me acordavam em cada manhã das férias passadas naquela vila que já era um navio, mas que não tinha então à vista o enorme mar em cuja bonança hoje navega.

Matei a curiosidade e toquei no bronze frio dos sinos com a ponta dos dedos, experimentando neles a duvidosa magia de comando das almas para que o Julinho me alertara, cujo penar se sumia dos nossos sentidos quando, admirados, recolhiámos a mão do verdete sujo do sino, para só tornar tocando-lhe de novo,  e então novamente as almas em seu diáfano horror em redor do pelourinho e na borda do poço, para se remeterem ao sepulcral  penar mal eu encolhia novamente o dedo.

E foi assim que senti, dominando os meus medos, esvaír-se-me a infância, estando eu nisto quando, nem precisava ter ouvido lá em baixo o senhor Teófilo, cujos gestos não davam lugar a dúvidas convidando-me a descer antes que subisse ele e me desse duas lambadas. Amuei mas desci.

Mau grado as ameaças tomei, contente, nesse pungente momento a firme decisão que naquele dia transmiti à avó Inácia :

- Avó, a partir d’hoje não quero voltar a usar calções nem suspensórios.

Ela sorriu para mim, estendeu-me os braços em que me acolheu e …

- Meu querido menino, és mais parvinho que o teu avô.

Puxou-me para o seu colo enquanto me lambuzava com beijos sabendo quanto eu detestava isso, e só escoando-me me libertei daquele abraço e sorriso mágicos com que sempre me cingia.

De fugida da avó avistara o Julinho perscrutando a praça da sacada da janela. Gritei-lhe e fiz-lhe sinal. Descemos ao largo lajeado da igreja e sentámo-nos na escadaria. Esculpidos nas lajes a canivete os sulcos dos jogos do Alquerque* convidavam-nos a um despique, ele alinhou, eu fiquei com as pedrinhas brancas ele com as pretas. Ganhou o melhor de nós.

  
* Alquerque – Velho jogo árabe cuja origem ninguém na vila conhecia. Espécie de “jogo do galo” Cada contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

178 - O HOMEM DO VIOLINO............


Quase esbarrei com ele, verdade que eu ia distraído no meio da turbamulta dos turistas e dos indígenas que aquela hora demandavam o castelo, mas ele, sentado a meio do percurso, favorecia os recontros se é que não os procurava.

A seu lado uma peanha/tripé de pauta musical suportava as fotocópias que à laia de cartão de visita ia distribuindo pela direita e pela esquerda, esquerda de onde lhe caía um braço cuja inércia denunciava problemas agravados de saúde.

Adivinhei-lhe os olhos por trás das lentes verde escuras de uns Ray Ban com mais de cinquenta anos, o seu ar sisudo, os manguitos que vestia, mais que impedir-me concitaram em mim o desejo, e a curiosidade, de lhe desvendar os segredos.

Esbocei um sorriso, estendi-lhe o braço e aceitei o papel que me estendia, abrandei o passo e fui lendo o que dizia:

“ À tua consideração.
Por favor, abre e lê, desejo apenas um pequeno momento teu, uma moeda, talvez duas, uma esmola.

Olhas-me espantado/a ?

Até 2013 eu era felizardo, talvez como tu.

Depois acreditei na promessa feita aos funcionários públicos e reformei-me para amparar os últimos dias daquela ao lado de quem fui feliz tantos anos.

Mas os cortes na pensão deitaram-me abaixo, devo ao banco ainda três prestações do mesmo T1 onde sempre vivi e que sob ameaça de despejo as reclama, e às finanças o IMI deste e do ano passado.

Já não toco violino, um pequeno AVC, seis meses depois de Deus me levar a alma gémea, deixou-me o lado esquerdo paralisado.

Nem tenho cão, mas espera-me em casa uma gatinha, agora a minha única e fiel companheira.

Nunca lhe falho com o veterinário, já de mim, até os remédios só quando e se tu fores generoso /a.

Não, não se deve à proeminência esta barriga, deve-se à fome que tenho e à vergonha que sinto.

De qualquer modo obrigado, olha, não deites para o chão este papel, entrega-o a outro passante, e o Senhor te dê em dobro o que sempre quis para mim, longa vida e saúde, o que eu mais invejo e lamento não ter.

Obrigado. “

A seus pés, num boné coçado metido dentro do estojo de um violino algumas moedas brilhavam com o sol, do violino nem o cheiro, somente o arco jazia deitado ao comprido na caixa envelhecida.

Um pequeno gravador destilava repetidamente as notas de uma sonata para violino, “ Caprice em Lá menor, de Niccolò Paganini “, o homem que tocava violino magistralmente...
                        




SAL, LÁGRIMAS DE SAL, LEMBRANÇA AZEDA...



Sal da vida, mau grado o revés dessa surtida o pessoal não perdeu o ânimo, primeiro os feridos caso fossem eles mais ou menos graves e só depois o descanso e o alívio.

Alcides e Kantia reuniram o pouco sal que lhes sobrara da seca que haviam impingido ao babuíno,* limparam com o braço uma mesa de madeira no centro do barracão que nos servia de caserna e dispuseram em dois pires de barro surripiados na messe o delicioso sal. Fizeram-no em dois montículos pequenos a fim do pessoal confraternizar e se dessedentar com umas Cucas de toda a sede sofrida nas últimas duas semanas.

Por enquanto não havia pressa, primeiro tratar do corpo e da alma, depois analisar a situação, o que correra mal, dissecar o problema a jeito de balanço da operação e de modo a que os erros cometidos, a havê-los, pudessem não ser doravante repetidos e como os evitar.

O descanso da noite era imprescindível, já havia quem dormisse, amanhã a meio da manhã seria convocada a reunião do pessoal para esse efeito e à qual só os feridos graves se poderiam eximir.

…“A zona de perigo fora ficando perdida na retaguarda, a campanha correra-nos mal, perdêramos dois homens, todas as viaturas e muito material, mas salváramos o coiro. Uma batalha não faz uma guerra e nem tudo estava ainda perdido. Cansados e abatidos homens e mulheres espojavam-se na areia fresca da sombra. Apesar do revés o ânimo não se perdera. Eu observava-os … notável, se considerarmos tratar-se de perto de 30 elementos, exaustos e oriundos de várias nacionalidades”…  *

Entretanto o pessoal ia depenicando os grãos de sal e emborcando Cuca atrás de Cuca. Alguns rolavam a garrafa gelada pelas faces fechando os olhos como quem beija uma mulher para depois, num sorvo único, beberem dum trago todo o conteúdo da garrafa num beijo apaixonado a que geralmente punham fim dando um estalo com a língua, libertada bruscamente do palato. Outros tinham adoptado outras modalidades, o Tenente Fernandes por exemplo, e quase podia apostar-se nisso, esvaziada a garrafa erguia o braço segurando-a na mão e, numa saudação calorosa oferecia o brinde:

 - À Luisinha! À Luisinha !!

Ninguém vira nunca a Luisinha, mas fosse ela quem fosse, fosse ela Nossa Senhora ou a Luisinha da Cartuxa, impossível negar que a Luisinha não estivesse sempre presente no seu espírito.

Outros eram mais modestos, à nossa, à minha, à tua, à do batalhão, havendo ainda uma Maria Cristina e uma Joana, mas essas tinham direito a foto junto à cama dos marmelos e eram mais ou menos conhecidas de todos, a Maria Cristina estava noiva do Alfarelos e a Joana era a cabra da mulher do Alferes Madaleno. Não estou a inventar, as palavras, os epítetos e adjectivos assim como outros mimos com que vulgarmente a brindava eram dele, o que muita confusão fazia ao Germano, um pexito de Sesimbra para quem uma tal Zezinha era sagrada e a quem ele não deixava cair no chão.

Grão a grão enche a galinha o papo, e grão a grão os montículos de sal desapareciam na razão directa com que apareciam  espalhadas ao acaso pela mesa ou pelo chão, em pé ou tombadas, as garrafas de cerveja que naquela noite animaram o pessoal.

No dia seguinte o balanço da operação não foi menos animado, porém não espelharia alegria no rosto de ninguém tendo despoletado acesas discussões e idêntico número de dissensões. A primeira conclusão a que se chegou foi ter havido da nossa parte excesso de confiança, depois de observado o inimigo e gizado o plano de ataque demorámos demasiado a concretizá-lo, a concretizar o ataque. No entretanto o inimigo recebera reforços ou porque previstos, ou porque andassem em missão no exterior e tivessem regressado. De qualquer modo, a ter havido demora da nossa parte, e houvera, aconselhavam os manuais e o bom senso que um segundo grupo de batedores tivesse efectuado nova surtida de avaliação às forças inimigas, o que teria evitado irmos a contar com uma coisa e tivéssemos esbarrado com outra. É a tal situação em que se vai à lã e se volta tosquiado.

Eu era extremamente jovem, não mais de vinte ou vinte e um anos, julgava-me Che Guevara e trabalhava para o mérito como qualquer caixeiro-viajante trabalha para os objectivos e as comissões. O sucesso que me perseguia cegara-me.

Um outro factor não menos despiciendo foi, para além do excesso de confiança a precipitação, partíramos para a missão em mangas de camisa, isto é, puséramos em marcha uma força ligeira e ligeiramente armada, nem um canhão, quando a artilharia nos teria sido muito útil, nem sequer metralhadoras pesadas leváramos. Não partíramos desprevenidos, a nossa táctica do toca e foge exigia leveza, o problema fora o tempo perdido a concretizar o planeado e o facto de, devido a isso nos vermos confrontados com uma força muito superior à esperada.

Tivesse havido uma segunda observação pelos batedores e não teríamos avançado para o que se tornou uma verdadeira ratoeira, verificado está que o excesso de confiança e a precipitação, duas variáveis comummente ligadas nos conduziram ao desastre, para além de termos esquecido quem éramos uma força de intervenção especial, rápida, ligeira, com muita mobilidade, aconselhada para golpes pontuais, ataques de surpresa, flagelação do inimigo, emboscadas, acossar o inimigo, e especializada, repito especializada, a qual nunca devia armar-se no exército que não era ou enfrentar o grosso de forças inimigas, mas sim enfraquecê-lo, desmoralizá-lo, desorganizá-lo, desmotivá-lo, esvaí-lo, o contrário do que aconteceu, com o nefasto resultado que agora lamentamos e choramos.

Conhece-te a ti próprio implica que te conheças, que saibas do que és capaz e até onde consegues ir ou suportar, mas implica também que cada grupo se conheça, saiba para o que está capacitado e quais os limites e pontos fracos e fortes da sua operacionalidade. Tácticas base do manual foram esquecidas, o protocolo foi esquecido, que cada um pense e assuma as suas responsabilidades, eu assumo as minhas, são culpa minha as baixas que chorámos.

Quem vai à guerra dá e leva, mas há normas e procedimentos adoptados, há resultados e responsabilidades, não me furtarei às minhas, comunicarei as baixas sofridas, assumi-las-ei, o comando terá a palavra final e dirá de sua Justiça.

 À vontade podem dispersar !

Entretanto veio 25 de Abril, com a desorganização e dissolução das cadeias de comando, relatórios e balanços perderam-se para a história, não há almoços grátis e o tenente Fernandes continuara a sua missão depois da independência de Angola em novos moldes e debaixo do chapéu-de-chuva de protocolos entre estados.


Se é certo que a experiência o capacitou para salvar vidas não é menos certo que algumas lhe terão pesado ou pesam ainda na consciência, mas quem se mete nelas sabe ao que está sujeito, valeu-lhe o facto de no cômputo geral a sua ação ter sido nitidamente gratificante, positiva, e devido a ela ter sido objecto de honras e louvores, em África evitara-se um novo Vietname.

Anexo ao relatório para o comando seguiu uma lista com a identificação de todos os elementos que tinham participado naquela operação, femininos e masculinos, podendo todos eles ser chamados a testemunhar a veracidade dos factos e do relatório.

Quando referi normas e procedimentos estava a apontar para tudo que dizem, aconselham ou impõem os manuais de táctica e estratégia militar, naturalmente não menciono mas não olvidei os procedimentos da Convenção de Genebra, a tal que regulamenta a guerra e os seus actos, aspectos que nunca por mim foram transgredidos, ainda que por todo o mundo o seu atropelo seja infelizmente uma constante.

Perder uma batalha não é perder uma guerra e se aceito que esta operação foi um fiasco e das poucas que sob o meu comando registaram baixas, devo também dizer em meu abono ter sido o meu pelotão aquele que, no género de ações que lhe estavam atribuídas, dos que apresentara o rácio mais baixo entre o número de sortidas ou embates contra o inimigo e as baixas registadas. Mau grado alguns dissabores o nosso objectivo específico, evitar o incêndio da África austral e que ela se tivesse transformado num novo Vietname foi atingido, apesar da dura guerra civil que posteriormente à minha saída das forças armadas deflagrou em Angola, e da inaudita violência e duração de que se viria a revestir a batalha de Cuíto Cuanavale.

A esta distância posso afirmar ter sido o nosso esforço meritório, do equador para baixo, com maior ou menor violência as fronteiras dos diversos países, emergentes ou não, foram consolidadas e o alastrar generalizado da guerra que tanto se temia foi miraculosamente contido, apesar das ingerências estrangeiras, inclusive de blocos cuja supremacia no mundo tendia a condicionar os resultados aos seus exclusivos desejos.

Tal não aconteceu ali e, quer todos nós quer a ONU, que então não trabalhava com o à-vontade com que hoje o faz, incluo neste âmbito as missões militares em países terceiros, podemos dizer estar de parabéns, ela ONU e o mundo. Hoje dominam e predominam os capacetes azuis e as missões humanitárias, há quarenta anos fora a vez do secretismo, das forças fantasma, das operações encapotados, dos segredos de estado e militar, dos mártires e heróis anónimos ou incógnitos.

… “Na hora da morte só desejávamos que fosse breve, e que não nos complicasse a vida, muito menos a dos outros. Nunca abandonáramos um moribundo, mas felizmente também nunca tivéramos que carregar com nenhum. Certa vez um deles para não nos atrasar a marcha em dias e dias metera o cano da arma na boca e solucionara o problema, resolvera a questão, há homens assim, práticos, pragmáticos, uma padiola é do pior que pode haver para qualquer ferido grave, é uma forca, uma sentença de morte, um mau feitiço atirado para cima de um homem. Viver é fácil, difícil é morrer, exige-nos toda a coragem “ … *

Pois é meus amigos quando se lembrarem dos treze anos de luta em Angola, lembrem-se também que em Angola foi precisamente onde menos lutas tiveram lugar ou foram travadas. Choro essas duas baixas com sinceridade e cuja morte me pesará sempre na consciência, é-me impossível contabilizar quantas vidas foram poupadas ao ter sido evitado qualquer cenário bem pior naquela África em ebulição e onde nós, quais bombeiros de serviço acudíamos derramando água sobre a cada foco acendido ou que se reacendia.

Tal e qual, bombeiros de serviço, assim nos chamaria.


DEITEI-ME PENSANDO EM TI ..................................


DEITEI-ME PENSANDO EM TI

deitei-me pensando em ti
acordei sonhando contigo
oh ! como neste momento queria ter-te
numa cama baixa
nem chão nem baldaquino
nós dois num frémito
a visão toldada
a razão perdida
beijando os teus olhos
mordendo-te os lábios
oh ! essas tuas coxas roliças contra as minhas,
abraçando-me
uma flor que se abre
um perfume no ar
uma vertigem escorregadia
quente 
palpitante
uma pulsão bramindo
espero
deslizo cortêsmente
sem perder a calma 
dando a alma
devagar
devagarinho
no quentinho
beijo-te e abraço-te feito doido
agora quero ja o que atrasava
devagarinho não
agoraaaaaaaaaaaaa
de modo ternamente violento
repentino
oh !!!!
o espasmo tão temido
oh !!!
tão querido agora
e tu tão querida 
querida
amor 
não te mexas
não tires ainda 
deixa estar
eu não fumo 
já falamos
ooooo hhhhhhhhh !!!

minha queridaaaaaaaaaaa


domingo, 16 de fevereiro de 2014

... PAI


Nunca tive pai a quem chorar
Ainda assim, lembro-te quedo e mudo
E revejo-te, surdo a tudo e todos
Sonhando com o Kruger, e a Gorongosa
E como sempre, por opção tua, alheio ao mundo

Sonhaste mundos para alem do Bojador
Cafezais, horizontes, carabinas, elefantes
Espaços sem fim, liberdades, zagalotes
E depois, quebrou-se-te a hesitação, naquele dia *
Naquele dia em que tu, um clandestino, deste pinotes

Nunca falaste comigo, que me lembre
E inda assim recordo-te a postura recta 
O caminho que me traçavas numa uma estrada dura
E as balizas que, indiferente a todas e quaisquer urdiduras
Me forçavas a percorrer e respeitar à força como se fosse gente

Mas jamais coube no espaço convocado
Pois mais que vigiado eu esperava ser amado
Cerceado, logo algo em mim a compita  despertava 
Até que um dia, irado, desvairado, abri a porta do redil
E frustrado por acidente tornei, pródiga chama embargada

Retomei a mesma espiralada vida
Sempre urgente, acelerada, vívida
Em bonançoso turbilhão crestada
Sempre em busca do amor, ou de nada
Sempre sem uma estrela, sempre sem ti
  
C’os anos vi-te aceitar a ilusão e a descrença
Abraçaste, ciente de ti, relha e senil misantropia
Isolado, de tudo e de todos, descrente, perdido,
E encontrado, mas será justo dizer apaziguado ?
Intuíste em ti que nada havia a cumprir neste reino mal fadado

No fundo tolerámo-nos, conhecemo-nos
Conhecemos ? Nem sei se será lícito tal firmar
Passaste invisível p’la minha vida como eu p’la tua
Que pena, como quando procuramos incerto amor na rua
Porque foi, foi pena, negámo-nos o que nosso era por direito

Afirmámo-nos, assumimo-nos, p’la negativa
Um contra o outro nos assumimos e fortalecemos
Solidamente, c’os anos e pela negação fundámos o carácter
Chamámos-lhe personalidade, princípios, justeza, rectidão
Todavia, cruel verdade, é jamais auditar-se o que perdemos …



* 25 A