Sempre duvidara que aquela enorme igreja assentasse
as fundações em cima de uma lagoa, não tanto por duvidar ter a física da leveza
sucumbido às premonições populares e disso não ser capaz, afinal eu mesmo já vislumbrara
várias vezes a vila inteira pairando acima das nuvens, vila, castelo, varandil,
igreja, cisterna, escola, muralhas, tudo certamente muito mais pesado que uma
igreja só, sobretudo uma de aparência tão leve como o azul claro que certa vez
lhe rematava os baixinhos.
Porém era para mim difícil aceitar que ali houvesse uma lagoa, as dúvidas assaltavam-me não obstante a certeza das águas na cisterna, e que bastas vezes sentira bem frias nas cálidas tardes de verão em que eu e o Julinho lá nos refugiáramos da canícula.
Porém era para mim difícil aceitar que ali houvesse uma lagoa, as dúvidas assaltavam-me não obstante a certeza das águas na cisterna, e que bastas vezes sentira bem frias nas cálidas tardes de verão em que eu e o Julinho lá nos refugiáramos da canícula.
Nessa manhã aborrecera-me, já ia alta, e eu, sozinho, brincara
de avião em torno do pelourinho quando senti roçagar na face as almas penadas
dos expostos e a pele se me arrepiou num calafrio repentino, como quando
acordava com uma osga passeando-se no meu pescoço.
Afastei-me receoso e tão bruscamente que as
grilhetas dos mortos se me enlearam nos pés e me travaram os passos e, temente,
encostei-me ao gargalo do poço cuja água, tão profunda, jamais poderia ser
a mesma que a do charco da igreja de Nossa Senhora da Lagoa, mas reflectia,
refractada nos círculos concêntricos que se formavam na queda das pedrinhas
que com desfastio provocado pelo ar pesado da manhã eu lhe atirava, reflectia a minha
imagem, tremente e temente, e que por instantes ficava impressa nessa água assim
agitada, em contraponto à quietude a que os sacrificados mártires no pelourinho se
impunham.
Foi somente quando o fundo do poço me devolveu a imagem de um ungulado de olhos em chamas que o corpo se me inteiriçou numa paralisia
asfixiante e intentei fugir dali, subtraindo-me ao hausto que o gargalo do poço
exalava e espinhosamente me atraía para as águas profundas que o bolçavam.
Dei por mim fugido da razão e trémulo da emoção que
me causou o tecto elevado da igreja, cosi-me melhor contra uma das altas colunas
que sustentavam a nave quando me mirei e remirei nas lajes escuras do chão de
xisto impregnadas de humidade, tentando não ser eu mas um outro que refugiado
estaria numa palafita que séculos antes dos castros ocupavam o lugar que hoje a
igreja de Nossa Senhora da Lagoa tanta protecção me oferecia.
Do alto da minha pequenez assustada encolhia-me ante
a esplendorosa talha dourada do altar mor e atrevi-me, pé ante pé, a percorrer
a nave deserta e fresca onde eu só não levitava por sentir sobre mim o pesado olhar
de todos os santos, em todos os altares, em todas as capelas, focados em mim,
intimidando-me, enquanto continuava ouvindo silvando lá fora as almas dos mortos rodopiando
em volta do pelourinho e assomando ao gargalo do poço, arrastando as correntes
e exibindo as chagas purulentas cujo cheiro, fétido, os círios ardendo nos
altares cobriam e eu, de pernas tremendo como varas verdes, num salto fenomenal para não pisar as lajes sob as quais descansam em paz os ditosos, saí dali a fim de lhes não
perturbar o eterno sossego que naquela paz sagrada buscavam.
Vergado à compunção ensurdecedora que o silêncio da igreja
incutia, arrastei tenazmente os meus medos e alcancei a escada que me conduziu à
varanda no alto do frontão entre as duas torres sineiras cujos sinos, melíflua e melodiosamente, me acordavam em cada manhã das férias passadas naquela vila que já
era um navio, mas que não tinha então à vista o enorme mar em cuja bonança hoje
navega.
Matei a curiosidade e toquei no bronze frio dos sinos
com a ponta dos dedos, experimentando neles a duvidosa magia de comando das
almas para que o Julinho me alertara, cujo penar se sumia dos nossos sentidos quando, admirados, recolhiámos a mão do verdete sujo do sino, para só tornar tocando-lhe de novo, e então novamente as almas em seu diáfano horror em redor do
pelourinho e na borda do poço, para se remeterem ao sepulcral penar mal
eu encolhia novamente o dedo.
E foi assim que senti, dominando os meus medos, esvaír-se-me a infância, estando eu nisto quando, nem precisava ter ouvido lá em
baixo o senhor Teófilo, cujos gestos não davam lugar a dúvidas convidando-me a
descer antes que subisse ele e me desse duas lambadas. Amuei mas desci.
Mau grado as ameaças tomei, contente, nesse pungente momento a firme decisão que naquele dia transmiti à avó Inácia :
- Avó, a partir d’hoje não quero voltar a usar calções
nem suspensórios.
Ela sorriu para mim, estendeu-me os braços em que me
acolheu e …
- Meu querido menino, és mais parvinho que o teu avô.
Puxou-me para o seu colo enquanto me lambuzava com
beijos sabendo quanto eu detestava isso, e só escoando-me me libertei daquele abraço e
sorriso mágicos com que sempre me cingia.
De fugida da avó avistara o Julinho perscrutando a praça da sacada da janela. Gritei-lhe e fiz-lhe sinal. Descemos ao largo
lajeado da igreja e sentámo-nos na escadaria. Esculpidos nas lajes a canivete
os sulcos dos jogos do Alquerque* convidavam-nos a um despique, ele alinhou, eu
fiquei com as pedrinhas brancas ele com as pretas. Ganhou o melhor de nós.
* Alquerque – Velho jogo árabe cuja origem ninguém na vila conhecia. Espécie de “jogo do galo” Cada contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras.