Não me recordo já como era aquela canção do J.M.
Branco, ou do Fausto... louco ou marinheiro... lólarélóli... Mas procurá-la-ei
e colocarei aqui o link, fica jurado. Assim confuso me senti ante a
restrita mas rica colecção de pinturas de José Cachatra (1933-1974), o esquecido,
enlouquecido, extrovertido, exuberante, doutor, aviador e pintor José Carlos Cachatra, de Borba mas eborense claro, o indizível, o maldito, o inexplicável, o
inclassificável e, por acréscimo ou silenciamento, o
inominável.
Já por três vezes visitei esta exposição, (no
primeiro dia praticamente só metera o pé na porta) e nem me cansei, há
pormenores que nos ocupam uma eternidade a entender. E será que os entendi ? No
mínimo conjecturei, o que não deixa de ser uma prerrogativa ou intenção de
qualquer artista ou autor, julgo.
Mas não nos afastemos do tema, e para rimar, é pena,
é pena que as composições não estejam datadas, porque seria mais fácil
entender, ou não, se os diferentes períodos da sua tão curta vida
se reflectiram, e de que modo, na pintura e nas opções temáticas e cromáticas
que fez. Aproveito porém para deixar eu também os meus agradecimentos aos proprietários
das obras, e a todos aqueles que de alguma forma intervieram nesta linda
exposição.
Uma coisa é certa, o tema Alentejo quase monopoliza
as obras expostas, motivos, paisagens, gentes, e, segundo creio o grosso
das obras conhecidas. O que sabemos é que o período vivido em Évora foi dos mais
produtivos da sua curta mas profícua e atribulada carreira.
Atentei nos pormenores disse-vos há pouco, na
firmeza e domínio do pincel, na inclinação progressão e certeza das pinceladas,
em cuja direcção não vislumbrei a mínima hesitação. Casos há em que, ao invés
de cerda, ou de espátula, se terá servido dos dedos, o que nos aparece nítido numa
pequena composição (talvez 30X20cm, nº PP01 nas imagens que vos cedo) em que
até a unha parece ter sido utilizada e, aqui sim, embora em pequeníssima
dimensão, hipotéticamente com recurso a uma técnica de Pollock, designada
"action painting". Sabe-se que Pollock executava obras gigantescas,
saltando para o meio das telas e pintando do interior para o exterior, neste
aspecto o catálogo da exposição apresenta alguma ligeireza, ao não ter sido dado
a verificar ou rever por autoridade na matéria, induzindo em erro o visitante mais
incauto ao comparar a técnica de Cachatra ao "dripping" de Pollock, o
que constitui erro grosseiro, o "dripping" é uma técnica de
gotejamento ou salpico da tela pelo pincel com a qual nenhuma obra nesta
exposição de José Cachatra nos autoriza a fazer tal afirmação ou comparação.
Cachatra modernista ? Sim, claro, mas de um
modernismo muito próprio, nele se nota abertamente uma aversão à tradição com a
adopção clara de novas formas e fórmulas de expressão a que não terá sido alheia a extinta
e brevíssima "Orpheu", (surgida em 1915 mas da qual só se publicaram 2 números),
revista que subverteu e durante muito tempo influenciou artistas e autores
portugueses em cujo círculo o nosso homem, embora arriscando afirmá-lo, decerto privou.
Quase sem excepção as suas figuras, os seus motivos, são fruto das
novas correntes já firmadas na Europa, e desenvolvidos num traço estilizado mas
nunca deixando de ser firme, o que nos prova uma mão segura, um domínio genuíno
da arte e da palete, até naqueles quadros em que, não um "sfumato"
mas uma indefinida penumbra anima os contornos. Expressão de estado de alma ? Embora artista seguro surgem-nos por vezes composições
suas cujo jogo cromático nos apresenta propositadamente tons esbatidos, a par
de outras em cores mais vivas, casos em que me atreveria mesmo a falar de cores
limitada ou condicionadamente exuberantes, em Cachatra o deslumbramento nunca nos advém das cores, antes das formas, (exemplo de Flores, na minha
designação).
Embora vasta, à volta de cinquenta quadros expostos,
acredito que a ausência de muitas obras por dispersão ou desconhecimento delas,
não nos permitem que, exclusivamente com base nestas, possamos classificar ou
catalogar levianamente o autor. As "poucas" obras expostas
mostram-nos uma amplitude temática rica, de onde sobressaem grupos que pela sua
afinidade estilística ou cromática, ou técnica, se isolam dos demais, ou antes
sobressaem dos demais, já que algumas telas não fazem de modo algum jus à
personalidade conhecida do pintor, reservada, e, segundo se conhece, de um
dramatismo que o conhecimento precoce e interiorizado de uma morte prematura
acelerou, pois a doença e a instabilidade, sabemo-lo, foi uma sua constante e
cruz.
Cachatra reproduz Picasso (1881-1973) e o cubismo, com os seus Palhaços Músicos, e Les demoiselles d'Avignon e os seus nus, ou
Paul Cézanne (1839-1906) e Les Grands Baigneuses, Cachatra foi um modernista,
viveu como um modernista, conviveu com modernistas na sua fase Lisboeta, e eu
apostaria ter frequentado tertúlias e partilhado a companhia de outros
modernistas portugueses hoje muito conhecidos. A sua pintura no-lo diz, que
inclusive muito se assemelha à de alguns pintores europeus, especialmentes franceses, que por pouco não
foram também seus contemporâneos.
O nosso homem foi estudante de Belas Artes, foi
estudante trabalhador, boémio, professor, oficial da Força Aérea, pintor...
Cachatra terá sido, a crer nalgumas telas mais exuberantes, um "bon vivant", um "play boy", um homem com a vida cheia, preenchida, até de problemas creio, a sua
saída tumultuosa do liceu de Évora, em confronto com o reitor (homem do regime),
faz com que o considere um inadaptado à bonomia e pasmaceira do Alentejo, mais
concretamente de Évora, cidade onde, parafraseando salvo erro Vergílio
Ferreira, quem tivesse menos de quatrocentos porcos ou mais que a quarta classe
não seria gente fiável nem para levar a sério. Sabemos que Vergílio Ferreira
deu por essa época aulas no mesmo liceu, mas penso que Cachatra terá leccionado
entre 63 e 65, Vergílio Ferreira andara por aqui somente meia dúzia de anos
antes, entre 45 e 48. Teria sido engraçada a sua simultaneidade e convívio, que
temas lhes teriam açambarcado as conversas e a camaradagem ?
Foi por esses anos que Cachatra recusou ser
reintegrado como tenente na Força Aérea, coarctando a continuidade ou curso de
uma carreira militar que interrompera, porquê ? Inconformismo e recusa do
regime Salazarista ? A guerra ultramarina irrompera feroz em 61...
Não esqueçamos que Humberto Delgado, general nomeado
em 59 Director-Geral da Aeronáutica, posteriormente oposicionista, fora
perseguido, em 59 exilado, e posteriormente assassinado a 13 de Fevereiro desse
ano de 65. A atitude de Cachatra teria sido de insurgência ? Subversão ?
Recordemos a veia "modernista" e por acréscimo "futurista" de José Cachatra, e os
aviões, os quais eram nesse período histórico as máquinas futuristas por excelência, que o terá levado a
abandoná-las ? Igualmente por esses anos
Henrique Galvão, mais precisamente em 1961, organizara e comandara o assalto ao
paquete Santa Maria, numa tentativa de provocar uma crise política contra o
regime de Salazar e desse modo acicatando os meios oposicionistas, onde decerto
Cachatra se moveria, e então efervescentes.
São estes episódios de rebeldia que me autorizam a
arriscar afirmar que muito singelamente poderão testemunhá-lo, ou pelo menos
assim nos autorizam, a inscreve-lo como um independente, ou portador de um
pensamento libertário, ou mais que isso, um independentista formado e
empedernido, um sólido ponto referencial de coerência na aparente volatilidade
da sua agitada vida.
Seria o antinacionalismo dele, ou nele, que talvez
expliquem a sua faceta irreverente, ou anárquica, demolidora de cânones, é
sabido que as correntes neo-realistas nasceram daí, da recusa da sobranceria e
da exploração ou escravização do homem. O neo-realismo de Cachatra é sobretudo
alentejano, pois noutras suas composições não é visível esta corrente, nessas
outras está bem vincado o tal impressionismo e proto cubismo órfico que a brochura
bem cita, o abstraccionismo e o expressionismo, tudo movimentos, tendências e
correntes que nitidamente grassaram igualmente entre outros que lhe foram
contemporâneos e com quem terá sido impossível não se ter cruzado em tertúlias
e debates.
José Carlos Cachatra dar-me-ia, se o quisesse, pano
para mangas, e torna-se tentador um seu estudo sincrónico / diacrónico
abrangendo contemporaneidades suas como Almada Negreiros (1893-1970), Júlio
Pomar (1926 -…), Júlio Resende (1917-2011), Fausto Sampaio (1893-1956), Dordio
Gomes (1890-1976), Manuel Cargaleiro (1927-…), Nadir Afonso (1920-2013), Helena Vieira da Silva
(1908-1992), António Charrua (1925-2008), António Palolo (1946-2000) e Paulino Ramos (1923-1999) os dois últimos autodidactas, e muitos outros, todos eles
imbuídos desse espirito de uma época que tudo revolucionara e até já enterrara
muitos dos seus principais debutantes e intervenientes, quer a nível europeu quer mundial.
Contudo todavia mas porém a vidinha está má,
difícil, e nem me pagam para isso, portanto deixo a oportunidade a quem queira
desenvolver sobre o tema quaisquer teses de mestrado ou doutoramento, a gente
nova e cheia de garra, acreditem que não brinco.
Infelizmente Cachatra morreu meia dúzia de dias
antes do bambúrrio de 25 de Abril de 74, deve ter sido homem de esperanças,
felizmente para ele morreu com elas, nós certamente morreremos desiludidos.
P.S. – Deixo uma nota breve, o desejo que daqui a 50 anos não estejamos de igual forma a tentar adivinhar, ou compor, a vida e percurso de Marcelino Bravo, é eborense, e ainda é vivo).
PP 01
FLORES
PALHAÇOS MÚSICOS
ÉVORA