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quarta-feira, 29 de julho de 2015

260 - ALL THE ALLENTEJO .......................................

               
              No momento em que, sem hesitações lhe espetaram o facalhão na garganta eu arrepiei-me, e, ainda que a faca não tenha sido enfiada até ao cabo o sangue jorrava em golfadas, e arrepiei-me de novo ao sentir rodarem a faca, como se fosse em mim que a forçavam, arrepiei-me uma terceira vez quando a faca, digo o facalhão, foi retirado e atrás dele mais sangue jorrou ainda, esguichava-lhe e escorria-lhe pelo pescoço quando o meu pai lhe procurou o buraco da primeira facada com os dedos aí introduzindo outro facalhão, de lâmina brilhante e muito mais larga que a primeira, havia que alargar o golpe e sangrá-la depressa.

A tudo isto eu assistia encostado à parede, melhor, colado à parede, enquanto ela gemia, já só gemia, estrebuchara imenso, mas dois homens fortes tinham-lhe colocado os joelhos na barriga para se firmarem e agarraram-lhe com denodo os membros bem atados. O pior tinha sido a atrapalhação do meu pai, mangas arregaçadas, o suor ensopando-lhe a testa, fácies tenso deixando antever os dentes, pequeninos, as mãos pingando sangue, escorrendo sangue, gritando aos homens, ordens curtas, precisas, um último grunhido, minha mãe aparando o sangue num alguidar de barro, a avó Inácia doseando o sal para que não coagulasse, coalhasse ou a rechina não sairia boa, a tia Aia picando a salsa e os alhos para a parte destinada a coalhar e a ser cortada em cubos miudinhos e transformada num petisco.

Homens acudiram à forquilha e aos tojos que, ardendo musgariam a marrã a fim de, com raspadeiras improvisadas lhe retirarem as cerdas, o lume foi chegado às patas e os cascos arrancados fumegantes, eu e outros miúdos lutámos por eles para lhes roermos o sabugo, a marrã inteiriçada, depois lavada até ficar luzidia, dependurada em dois postes atados em X e aberta, os intestinos caindo no chão, as miudezas aventadas para outro alguidar e
repentinamente perdem-se-me as recordações, por que raio não sou capaz de lembrar quem eram os outros gaiatos se era com eles que eu brincava, e tanto que eu brinquei, sumiram-se-me as lembranças, só as recupero em casa, a salgadeira aberta, mantas de toucinho, a perna para presunto pintada com pimentão e colorau, punhados de sal, cheiro a pimentão, muito pimentão na carne, e lá vou eu com a tia Aia p’ra casa da avó Inácia pois em dias assim só atrapalharia e nem vagar havia, nem vagar nem ninguém para tomar conta de mim.

Um dia seria destemido como o meu pai, destemido e convencido, o melhor e mais rápido a matar e abrir porcos no Alentejo, onde por enquanto somente brincava mas a cuja magia me estava habituando, descobrindo e deslumbrando, até com os mimos que me prodigalizavam todos quantos me rodeavam, especialmente a avó Inácia e a tia Aia.

Tantas vezes me disseram ser o Alentejo impar que acabei acreditando, os pais, os avós, tias e tios, até a avó Inácia, com quem em miúdo passava longos períodos de férias na aldeia. A tia Aia também me fizera acreditar em tal, e seria injusto esquecê-la.

Sou extrovertido, e confiante, diria que demasiado confiante (até há quem diga que sou um convencido), talvez por ter nascido aqui, nesta terra de xisto e fragas lascadas, de espaços abertos e campos extraordinariamente iluminados, amplos, resplandecentes, melhor dizer reverberantes se quiser ser fiel à memória da tia Aia, ela chamava-lhe a marca da terra.

A tia Aia colocava marcas em tudo, desconhecia a gramática, nunca ouvira falar de adjectivos, tinha contudo um modo muito próprio de catalogar o mundo, eu, por exemplo, nunca fui só Berto, eu era o Bertinho querido umas vezes e o Bertinho lindo outras, tal como as flores das giestas no campo não eram somente bonitas, eram celestialmente bonitas pois Deus decerto as quisera diferentes de todas as outras, e para melhor.

Já provaram vocês o mel alentejano de abelhas que sobretudo se alimentem destas flores de giesta e esteva ? E já repararam como em relação aos demais o gosto é desigual, para melhor ? Repararam como nem coalha no inverno ? O único que não coalha ? A tia Aia tinha razão, Deus colocou uma marca no Alentejo, aliás várias marcas, até o perfume dessa flor não se limitava a ser agradável, ele era, na tabela da tia Aia, indelevelmente agradável e inesquecivelmente inolvidável.

Custa-nos crer como neste cenário de horizontes largos o homem se deixou aprisionar durante séculos, custa-me aceitar que não tenham partido daqui todas as revoluções, não aceito que a submissão, que o cante alentejano tão bem exprime seja ainda hoje uma das nossas marcas, porque aqui, nestes campos lindos e que, como adjectivaria a tia Aia, luxuriantes, onde a ausência de solidariedade campeia, a única coisa que, mau grado o paredão de Alqueva parece não se deixar submeter é a natureza, que, alheia à luta dos homens se renova em cada primavera e, ao contrário de nós, gente, humanos, prima por manter ainda a diferenciação do carácter das suas estações bem marcado, ao invés do indígena, que aos poucos e em quarenta anos se transformou num camaleão gelatinoso, ou, como diria a tia Aia, em lindíssimos e gelatinosos camaleões, inda que sendo bichinhos que ela, que jamais saíra daqui, vez alguma tivesse visto.

Visto ou ouvido, estas vastas terras aplanam a alma e injectam nos seres vírus de bonomia, estado anímico que a tia Aia, sempre mexendo, adjectivaria de letargia, no que pacificamente lhe concedo toda a razão. Aqui o tempo não anda para a frente, não avança, regride, olhemos as nossas vilas aldeias e cidades e comprovemo-lo, um paraíso perdido, um vazio no tempo que nem Einstein previra mas que agora, mentes brilhantes, vendem aos turistas em pacotinhos de fins de semana, disso se encarregarão os operadores turísticos e para tal a GenuineLand preparou os nativos alentejanos cujo céu, livre de poeiras e fumos, vendemos em pastilhas  de noites de breu com um sabor estrelado através da Dark Sky Alqueva.

A novidade aqui passa só e somente por essas adjectivadas e exageradas promoções, os publicitários sempre foram excessivos, e não o foram ou são somente com este Alentejo, lugar onde procuram, ou alguém força, estabelecer novas tradições com mais rapidez que aquela com que enterram as velhas. Pôr em pé o misticismo Endovélico no Alandroal, obrigar-nos a todos a olhar o balão como pategos no Dark Sky, ou tentar tapar o buraco que a desertificação abriu na peneira com o projecto GenuineLand, embasbacando perante as centenas de empregos, milhares de empregos que estas coisas geram, tá-se mesmo vendo, é andar brincando com o Alentejo.

Brinca-se no Alentejo e no país, agora até promovem e homenageiam quem mais brinca.

Brincalhões …

Foto 1 – A arma usada na matança.
Foto 2 – Monsaraz no horizonte.
Foto 3 - O horizonte visto de Monsaraz.
Foto 3 – Afloramentos de xisto perto da ribeira de Lucefecit.







                      

quarta-feira, 19 de março de 2014

181 A IMPORTÂNCIA DE ME CHAMAR HUMBERT

                                 
Surpreendi-me a mim próprio porque naquela manhã luminosa os campos e as flores ficaram esperando o meu olhar para que, num repente abrissem, e foi quando abandonei de todo as conversas dos velhos e me concentrei nesse mister que os rebentos finalmente desabrocharam e sacudiram as amarras da vontade que neles oprimida estava. 

Olhei ao longe, até Elvas, e na esteira do meu olhar as giesteiras agitaram-se num tremor estrepitoso e abriram em uníssono, pelo que posso garantir-vos que de todas as flores campestres é a giesta aquela cuja melodia mais se destaca na manta de retalhos colorida dos campos que se estendem até Badajoz e de Monsaraz se avistam.

Temia a canícula das tardes quentes em que bastava o restolhar duma cobra nas ervas secas para me pôr os sentidos em alerta, por isso aproveitava as manhãs em que elas pasmadas se quedavam enroladas sob as fragas, aquecendo sangue que lhes desse alma para, como eu, cabriolarem, pois cavalgava os muretes da entrada da vila e entretinha-me ouvindo ociosos sem jorna, apostando os sentidos no Alquerque* que a todos arrebanhava em intermináveis gestas.

Espojado nas lajes frescas do murete manuseava as pedrinhas,* aliviava o elástico dos suspensórios, o ouvido pendendo-me para as histórias marteladas no canto onde os homens mijavam e de mão sobre o sobrolho punham a vista nos fumos que se soltavam dos fornos das olarias da Aldeia do Mato, numa tentativa vã de catalogarem pelas suas formas e cores a cerâmica que vomitavam, porque do “Santiago”, que só pratos cozia, jamais poderiam ser aqueles novelos em catadupa, quando muito do “Beijinho”, esse sim mestre dos melhores potes e louças dali à raia e até Espanha, era sabido de todos.

           Pasmava ouvi-los dissertando sobre o fumo branco e o fumo negro das cerâmicas e nem o seu cantado linguajar abafava o silêncio rumorejante das águas da ribeira que se avistavam daqui, faiscando, e cujo morse eu traduzia manipulando as pedrinhas* ao sabor desses segredos em código emanados das violetas bravas que lhe salpicavam as margens.

Foi somente quando o rosnar do motor da camioneta da tarde espumando na ladeira se fez ouvir que os homens se benzeram e largaram fugindo de chapéu na mão, trancando as portas de casa, porque um motor era um ser estranho e lembrava os idos de antanho, e certa manhã de cerrado nevoeiro em que um igual ruído, trazido por um biplano, alarmara todo o termo por tonitruante impacto e ígneo incêndio de cujos destroços, desabados junto à torre de menagem do castelo só um cadáver carbonizado restou, o do desditoso aviador, pela sina ludibriado, e que Humberto se chamara.

Tal como Humberto deram de nome ao meu padrinho e todos esperaram na família que cedo aprendesse a voar e lhe nascessem asas para que se sumisse daquele inferno para fora, como um pássaro, como o perfume duma giesta ou de uma violeta brava, ou como um rio, porque a uns a vila abafava os destinos num novelo e nem as mãos delicadas das mulheres lhes soltavam as pontas, e a outros os engalfinhava uma serpente camuflada nas esquinas do porvir e os esventrava para que jamais fossem além das muralhas da sua própria coragem ou das ameias do seu ímpeto, e no fosso, por trás de onde elas mais altas eram, podiam ver-se ainda por nem terem mais de cem anos, os esqueletos desossados dos últimos mártires cuja carne acicatara o apetite dos milhafres.

Por isso eu não vi, juro que não vi nunca vi, as mulheres à noite, escondendo nas trevas os seus trajes negros, ajoelhando num mar sobre as lajes frias do largo, orando compenetradas e erguendo as mãos a Nossa Senhora da Lagoa num painel de azulejos no frontão da igreja do mesmo nome, venerada há mais de quinhentos anos, pisando e repisando a víbora que se alimentava dos destinos das gentes e cujas gargalhadas se ouviam nas noites luciferinas de tempestade.

Mau grado o fadário da vila a minha vida decorria toda ela sob o signo da leveza e, uma vez, depois de ouvir a avó Inácia :

- Raio do gaiato que nem pára em casa, parece ter asas !

Pelo que nem será de admirar que tenha acautelado se seriam asas que me brotariam das costas, tal a coceira por vezes ali sentida, ou que já no liceu exultasse sempre que o professor de atletismo :

- Parece que tem asas nos pés o raio do miúdo !

Nem foi preciso mais para acentuar a minha queda pelos clássicos, pelos mitos de Hermes e Pégaso, tudo factos que, contudo, não saciaram a minha ânsia de realização pessoal, cousa que até hoje persigo.

Depois de cinco divórcios de sucesso ressoam todavia em minha mente os gritos de cinco esposas indolentes, que em sonhos inda hoje me convidam a assentar os pés na terra, pelo que me interrogo em introspecção pessoalíssima se não seria já tempo de se terem concretizado todas as esperanças depositadas neste nome que carrego.

Porque ou o milagre se dá ou o paizinho e muita namorada que servi tinham razão e de um tolo de cabeça no ar não passarei jamais …


* Alquerque – velho jogo árabe cuja origem ninguém na vila conhecia. Uma espécie de “jogo do galo” em que cada contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras. 






quarta-feira, 5 de março de 2014

179 - NOSSA SENHORA DA LAGOA ......................


Sempre duvidara que aquela enorme igreja assentasse as fundações em cima de uma lagoa, não tanto por duvidar ter a física da leveza sucumbido às premonições populares e disso não ser capaz, afinal eu mesmo já vislumbrara várias vezes a vila inteira pairando acima das nuvens, vila, castelo, varandil, igreja, cisterna, escola, muralhas, tudo certamente muito mais pesado que uma igreja só, sobretudo uma de aparência tão leve como o azul claro que certa vez lhe rematava os baixinhos. 

                   Porém era para mim difícil aceitar que ali houvesse uma lagoa, as dúvidas assaltavam-me não obstante a certeza das águas na cisterna, e que bastas vezes sentira bem frias nas cálidas tardes de verão em que eu e o Julinho lá nos refugiáramos da canícula.

Nessa manhã aborrecera-me, já ia alta, e eu, sozinho, brincara de avião em torno do pelourinho quando senti roçagar na face as almas penadas dos expostos e a pele se me arrepiou num calafrio repentino, como quando acordava com uma osga passeando-se no meu pescoço. 

Afastei-me receoso e tão bruscamente que as grilhetas dos mortos se me enlearam nos pés e me travaram os passos e, temente, encostei-me ao gargalo do poço cuja água, tão profunda, jamais poderia ser a mesma que a do charco da igreja de Nossa Senhora da Lagoa, mas reflectia, refractada nos círculos concêntricos que se formavam na queda das pedrinhas que com desfastio provocado pelo ar pesado da manhã eu lhe atirava, reflectia a minha imagem, tremente e temente, e que por instantes ficava impressa nessa água assim agitada, em contraponto à quietude a que os sacrificados mártires no pelourinho se impunham.

Foi somente quando o fundo do poço me devolveu a imagem de um ungulado de olhos em chamas que o corpo se me inteiriçou numa paralisia asfixiante e intentei fugir dali, subtraindo-me ao hausto que o gargalo do poço exalava e espinhosamente me atraía para as águas profundas que o bolçavam.

Dei por mim fugido da razão e trémulo da emoção que me causou o tecto elevado da igreja, cosi-me melhor contra uma das altas colunas que sustentavam a nave quando me mirei e remirei nas lajes escuras do chão de xisto impregnadas de humidade, tentando não ser eu mas um outro que refugiado estaria numa palafita que séculos antes dos castros ocupavam o lugar que hoje a igreja de Nossa Senhora da Lagoa tanta protecção me oferecia.

Do alto da minha pequenez assustada encolhia-me ante a esplendorosa talha dourada do altar mor e atrevi-me, pé ante pé, a percorrer a nave deserta e fresca onde eu só não levitava por sentir sobre mim o pesado olhar de todos os santos, em todos os altares, em todas as capelas, focados em mim, intimidando-me, enquanto continuava ouvindo silvando lá fora as almas dos mortos rodopiando em volta do pelourinho e assomando ao gargalo do poço, arrastando as correntes e exibindo as chagas purulentas cujo cheiro, fétido, os círios ardendo nos altares cobriam e eu, de pernas tremendo como varas verdes, num salto fenomenal para não pisar as lajes sob as quais descansam em paz os ditosos, saí dali a fim de lhes não perturbar o eterno sossego que naquela paz sagrada buscavam.

Vergado à compunção ensurdecedora que o silêncio da igreja incutia, arrastei tenazmente os meus medos e alcancei a escada que me conduziu à varanda no alto do frontão entre as duas torres sineiras cujos sinos, melíflua e melodiosamente, me acordavam em cada manhã das férias passadas naquela vila que já era um navio, mas que não tinha então à vista o enorme mar em cuja bonança hoje navega.

Matei a curiosidade e toquei no bronze frio dos sinos com a ponta dos dedos, experimentando neles a duvidosa magia de comando das almas para que o Julinho me alertara, cujo penar se sumia dos nossos sentidos quando, admirados, recolhiámos a mão do verdete sujo do sino, para só tornar tocando-lhe de novo,  e então novamente as almas em seu diáfano horror em redor do pelourinho e na borda do poço, para se remeterem ao sepulcral  penar mal eu encolhia novamente o dedo.

E foi assim que senti, dominando os meus medos, esvaír-se-me a infância, estando eu nisto quando, nem precisava ter ouvido lá em baixo o senhor Teófilo, cujos gestos não davam lugar a dúvidas convidando-me a descer antes que subisse ele e me desse duas lambadas. Amuei mas desci.

Mau grado as ameaças tomei, contente, nesse pungente momento a firme decisão que naquele dia transmiti à avó Inácia :

- Avó, a partir d’hoje não quero voltar a usar calções nem suspensórios.

Ela sorriu para mim, estendeu-me os braços em que me acolheu e …

- Meu querido menino, és mais parvinho que o teu avô.

Puxou-me para o seu colo enquanto me lambuzava com beijos sabendo quanto eu detestava isso, e só escoando-me me libertei daquele abraço e sorriso mágicos com que sempre me cingia.

De fugida da avó avistara o Julinho perscrutando a praça da sacada da janela. Gritei-lhe e fiz-lhe sinal. Descemos ao largo lajeado da igreja e sentámo-nos na escadaria. Esculpidos nas lajes a canivete os sulcos dos jogos do Alquerque* convidavam-nos a um despique, ele alinhou, eu fiquei com as pedrinhas brancas ele com as pretas. Ganhou o melhor de nós.

  
* Alquerque – Velho jogo árabe cuja origem ninguém na vila conhecia. Espécie de “jogo do galo” Cada contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras.