quinta-feira, 13 de março de 2014

180 - OS DIAS POR CUMPRIR ..............



Por saber ficavam os maus caminhos a percorrer, como chegara ali sabia, ainda que lhe custasse acreditar que tivesse sido ela a dar os passos e a aceitar o ritmo dos dias passados.

Era verão, e decerto o verão e o mar se conjugavam numa sequência que os astros alinhavam em cada estio de modo a mudar-lhe o apogeu e o perigeu tornando-lhe hiperbólicos os momentos com sol e sumindo-lhe a órbita no turbilhão calmo dos dias á beira mar, livre dos rebentos e agora com tempo para si, para ela, tempo mas não paz, tempo para meditar no quê como e porquê acontecera com ela, a quem a sombra ameaçava a soturna luminosidade dos dias.

Com o vagar tornavam lembranças e desejos, sonhos e miragens, que em ondas continuas, tal como a rebentação que massacra a costa, lhe ciliciavam o espírito, que deixavam em carne viva e sangrando, ela assustada, debutante ofuscada pela menarca do ser a quem a vida reclamava existência.

E, mal se sentava, contrapunha á amarga rotina dos dias a visão mirífica de praias de sonho, areias doiradas e pajens imberbes abanando ramos de palma ou servindo melífluos e embriagantes refrescos, quando não rodeada de eunucos e esperando um banho de leite perfumado com pétalas de rosa e um príncipe perfeito que a levasse dali num tapete mágico ondulando no éter.

Tão embrenhada estava no seu cogito que de um salto conquistou a janela, que abriu de par em par, para não ver o realejo ouvido e cujas notas lhe acudiram à mente num momento de desejo e sonho cujo desvario a levara à esplanada mesma em que se sonhara e sonhava recorrentemente amarrada na espera de uma quimera que, com desvelo acarinhava e lhe martirizava o suplício e o dilema dos dias não vividos.

Por isso o acordar lhe exigia a vergasta do teclado e do telefone em que mergulhava, qual linimento aos pecaminosos caminhos que se oferecia a si mesma cambiar em troca da sombria solenidade e estabilidade das horas que a aborreciam.

Sonhando ou não, conseguia ouvi-lo marulhando a areia da praia e era quando acreditando nele os pés castigados descalçava p’ra sentir alivio, como se neles a brisa do mar e os salpicos das ondas, as mesmas ondas em que mergulhava o pensamento e pelas quais se deixava arrastar das nove às cinco numa penitência frívola cumprida mecanicamente e cada vez mais vivida numa vívida ausência de si, era quando acreditava que a fuga para a terra dos sonhos lhe surgia diante como forma única de suportar o castigo de Eva no subido atrevimento de ambicionar o paraíso que se entregava a Hypnos.

Cada dia o sol mais forte cutucava-lhe o desejo de libertação do presídio do tempo e do auto de fé que para si era cada dia passado sem as asas dos sonhos e a rebeldia infrene dos desejos soltos que se concedia.

               A esta ânsia respondeu Neptuno que emergindo das águas cristalinas da lagoa atlântica, retesou os músculos e sorriu caminhando para ela de braços abertos tomando-a para si num amplexo delicado em que a espuma das ondas rendas, e o grosso das vagas grinaldas, com que a embelezou e cobriu.

                  Segurando-a no regaço e mergulhando os dedos nos delicados cabelos dela lhe afagou a nuca e beijou-lhe a fronte as faces e a boca sequiosa de amor e carinho, boca que se abriu degustando-o, sôfrega, como quem se empanturra de frutos do mar e hidromel celestial.

                     E assim se cumpriam os dias cumpridos e a cumprir.

“ E, quando a nuvem se detinha sobre o tabernáculo muitos dias, os filhos cumpriam o mandado do Senhor, e não partiam. “  9:19

“ À ordem do Senhor se acampavam, e à ordem do Senhor partiam; cumpriam o mandado do Senhor, que ele lhes dera. “ 9:23


“ Ora, quando chegava a vez de cada donzela vir ao Rei Assuero, depois que fora feito a cada uma segundo prescrito para as mulheres, por doze meses (pois assim se cumpriam os dias de seus preparativos, a saber, seis meses com óleo de mirra, e seis meses com especiarias e ungüentos em uso entre as mulheres) .“ 2:12

terça-feira, 11 de março de 2014

Alentejo, antes e depois, sempre ele …


O Expresso do passado sábado 8 de Março trazia, nas páginas centrais do seu Caderno de Economia, mais concretamente nas páginas 14 e 15, acerca da nossa pauperização, herdada e programada, um artigo curioso e que estranhamente ninguém mais abordou, nem sequer nas suas outras publicações de charneira, Visão, Exame ou até na SIC.

Resumidamente o artigo, bem desenvolvido e melhor fundamentado, procurava explicar a razão pela qual em Portugal, inserido no espaço económico europeu, os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

O Expresso juntou alguns dos seus sábios e economistas, pegou nos dados estatísticos do Eurosat, analisou cada região da Europa comunitária pelas suas classificações NUT1 NUT2 e NUT3, comparou-as entre elas e ao longo do tempo para concluir que de entre todas as mais pobres são Portugal e a Grécia, esta apesar de tudo melhor do que nós, sendo que entre todas as 31 regiões portuguesas o Alentejo está, por muito que nos custe aceitar, entre as que apresentam pior situação e desempenho.

Portugal aparece como a região mais pobre da EU, União Económica e monetária, a titulo de exemplo assinalo um concelho da serra da Estrela com um PIB de somente 8.300€ por habitante, 8% do rendimento per capita da região mais rica da EU, a de Wolfsburg, 108.000€ anuais por habitante e quatro vezes superior à média europeia, no fundo da tabela, o nosso país apresenta 7 das 10 regiões mais pobres, e é aqui que surge destacado no fim da tabela o Alentejo Central com somente 20% da média europeia, encabeçada pela Holanda, Luxemburgo e Alemanha…

Destaca o articulista, ou os articulistas, que a EU e o euro foi para nós um péssimo negócio, país cujas elites não se encontraram à altura do desafio que assumiram.

Foram usados pelo Expresso os dados insuspeitos do Eurostat para os anos de 2000 / 2011, que se baseou nas designações NUTs para o estudo apresentado.

       O semanário não apresentou soluções nem julgamentos, não apontou culpados nem fez comentários, deixou aos leitores e à intimidade de cada um essa tarefa, eu diria que como sempre uns dirão que os culpados são os outros, e os outros que os culpados são os uns, cá para mim a culpa de tudo é dos Kosovares…




quinta-feira, 6 de março de 2014

DREAMING OF DIAMOND IN BLACK HOLE UNDER THE STARRY SKY ........



DREAMING OF DIAMOND IN BLACK HOLE UNDER THE STARRY SKY

Oh ! Lá vens tu com as tuas ……
todos os dias lembras uma nova…
hoje é o arranhar suave…………......…
já não tenho 18 anos … mas levas-me lá …
quebras-me o tino
aguças-me o desejo
convulsionas-mi
provocas-mi

E todo eu um rotundo tumulto
atraído por esse sorriso deliquescente
orbitando os teus lábios
onde me sonho em volúpia
sugado por língua lânguida
abraçando-te tal qual Fauno, ou Dionísio
e, despindo o meu Eros
despimo-nos

Despojámo-nos,
entrega sublimada
eu bombeiro de mim mesmo
ardendo numa combustão maliciosa
e que, pura, despertas, desperta
pois sabes que sonhando me perco
no doce dos teus lábios, enquanto num amplexo
ardente, descomplexado, comprometido
te acolho sorrindo e minhas mãos te percorrem
derivando dos ombros para o delgado da cintura
agora devagar os altos e suaves montes das tuas ancas
devagar devagarinho nas tuas coxas duras
retesadas
sinto-o na ponta dos dedos ao tocar-te as virilhas suadas
e então,

Reflexo não do espelho mas da alma
bocas apressadas
a língua demorando o passeio nos teus lábios
os dedos encantando-se aveludados noutros lábios
e nós não já tremendo, mas gemendo
repentinamente as línguas num abraço
o dedo precipitadamente em ti, suavemente
titilando-te o amor profundo
sentindo-te
escorregando em ti até que
meigamente
rodas sobre ti neste amplexo louco em que sonhamos
percebo-te as costas tensas
as tuas curvas contra mim
e

Nas minhas mãos
duas maçãs hirtas
e eu às dentadinhas
mordo-te a nuca, o pescoço
inclinas-te, curvas-te
um sussurro
empinas
agora  tudo todo simmmmm
parem o tempo, pára o tempo, parou o tempoooo
um baloiço baloiçando
o baloiço num arco alto
cada vez mais alto
simmmmmmmmmmmm
maissssssssssssssss
mais altooooooooooooooooooo
até virar…………………………………
não pares
empurraaaaaa

E de pronto um flash
um clarão que cega
uma luz que acalma
que nos pára como se ……..
uma fotografia
deixa estar querida
não tires agora amor
agora não por favor, murmuras


Selfies agora não please

Deixa-te cair
quero dormir
sim
abraçadinhos
juntinhos
coladinhos
amo-te

J





quarta-feira, 5 de março de 2014

179 - NOSSA SENHORA DA LAGOA ......................


Sempre duvidara que aquela enorme igreja assentasse as fundações em cima de uma lagoa, não tanto por duvidar ter a física da leveza sucumbido às premonições populares e disso não ser capaz, afinal eu mesmo já vislumbrara várias vezes a vila inteira pairando acima das nuvens, vila, castelo, varandil, igreja, cisterna, escola, muralhas, tudo certamente muito mais pesado que uma igreja só, sobretudo uma de aparência tão leve como o azul claro que certa vez lhe rematava os baixinhos. 

                   Porém era para mim difícil aceitar que ali houvesse uma lagoa, as dúvidas assaltavam-me não obstante a certeza das águas na cisterna, e que bastas vezes sentira bem frias nas cálidas tardes de verão em que eu e o Julinho lá nos refugiáramos da canícula.

Nessa manhã aborrecera-me, já ia alta, e eu, sozinho, brincara de avião em torno do pelourinho quando senti roçagar na face as almas penadas dos expostos e a pele se me arrepiou num calafrio repentino, como quando acordava com uma osga passeando-se no meu pescoço. 

Afastei-me receoso e tão bruscamente que as grilhetas dos mortos se me enlearam nos pés e me travaram os passos e, temente, encostei-me ao gargalo do poço cuja água, tão profunda, jamais poderia ser a mesma que a do charco da igreja de Nossa Senhora da Lagoa, mas reflectia, refractada nos círculos concêntricos que se formavam na queda das pedrinhas que com desfastio provocado pelo ar pesado da manhã eu lhe atirava, reflectia a minha imagem, tremente e temente, e que por instantes ficava impressa nessa água assim agitada, em contraponto à quietude a que os sacrificados mártires no pelourinho se impunham.

Foi somente quando o fundo do poço me devolveu a imagem de um ungulado de olhos em chamas que o corpo se me inteiriçou numa paralisia asfixiante e intentei fugir dali, subtraindo-me ao hausto que o gargalo do poço exalava e espinhosamente me atraía para as águas profundas que o bolçavam.

Dei por mim fugido da razão e trémulo da emoção que me causou o tecto elevado da igreja, cosi-me melhor contra uma das altas colunas que sustentavam a nave quando me mirei e remirei nas lajes escuras do chão de xisto impregnadas de humidade, tentando não ser eu mas um outro que refugiado estaria numa palafita que séculos antes dos castros ocupavam o lugar que hoje a igreja de Nossa Senhora da Lagoa tanta protecção me oferecia.

Do alto da minha pequenez assustada encolhia-me ante a esplendorosa talha dourada do altar mor e atrevi-me, pé ante pé, a percorrer a nave deserta e fresca onde eu só não levitava por sentir sobre mim o pesado olhar de todos os santos, em todos os altares, em todas as capelas, focados em mim, intimidando-me, enquanto continuava ouvindo silvando lá fora as almas dos mortos rodopiando em volta do pelourinho e assomando ao gargalo do poço, arrastando as correntes e exibindo as chagas purulentas cujo cheiro, fétido, os círios ardendo nos altares cobriam e eu, de pernas tremendo como varas verdes, num salto fenomenal para não pisar as lajes sob as quais descansam em paz os ditosos, saí dali a fim de lhes não perturbar o eterno sossego que naquela paz sagrada buscavam.

Vergado à compunção ensurdecedora que o silêncio da igreja incutia, arrastei tenazmente os meus medos e alcancei a escada que me conduziu à varanda no alto do frontão entre as duas torres sineiras cujos sinos, melíflua e melodiosamente, me acordavam em cada manhã das férias passadas naquela vila que já era um navio, mas que não tinha então à vista o enorme mar em cuja bonança hoje navega.

Matei a curiosidade e toquei no bronze frio dos sinos com a ponta dos dedos, experimentando neles a duvidosa magia de comando das almas para que o Julinho me alertara, cujo penar se sumia dos nossos sentidos quando, admirados, recolhiámos a mão do verdete sujo do sino, para só tornar tocando-lhe de novo,  e então novamente as almas em seu diáfano horror em redor do pelourinho e na borda do poço, para se remeterem ao sepulcral  penar mal eu encolhia novamente o dedo.

E foi assim que senti, dominando os meus medos, esvaír-se-me a infância, estando eu nisto quando, nem precisava ter ouvido lá em baixo o senhor Teófilo, cujos gestos não davam lugar a dúvidas convidando-me a descer antes que subisse ele e me desse duas lambadas. Amuei mas desci.

Mau grado as ameaças tomei, contente, nesse pungente momento a firme decisão que naquele dia transmiti à avó Inácia :

- Avó, a partir d’hoje não quero voltar a usar calções nem suspensórios.

Ela sorriu para mim, estendeu-me os braços em que me acolheu e …

- Meu querido menino, és mais parvinho que o teu avô.

Puxou-me para o seu colo enquanto me lambuzava com beijos sabendo quanto eu detestava isso, e só escoando-me me libertei daquele abraço e sorriso mágicos com que sempre me cingia.

De fugida da avó avistara o Julinho perscrutando a praça da sacada da janela. Gritei-lhe e fiz-lhe sinal. Descemos ao largo lajeado da igreja e sentámo-nos na escadaria. Esculpidos nas lajes a canivete os sulcos dos jogos do Alquerque* convidavam-nos a um despique, ele alinhou, eu fiquei com as pedrinhas brancas ele com as pretas. Ganhou o melhor de nós.

  
* Alquerque – Velho jogo árabe cuja origem ninguém na vila conhecia. Espécie de “jogo do galo” Cada contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

178 - O HOMEM DO VIOLINO............


Quase esbarrei com ele, verdade que eu ia distraído no meio da turbamulta dos turistas e dos indígenas que aquela hora demandavam o castelo, mas ele, sentado a meio do percurso, favorecia os recontros se é que não os procurava.

A seu lado uma peanha/tripé de pauta musical suportava as fotocópias que à laia de cartão de visita ia distribuindo pela direita e pela esquerda, esquerda de onde lhe caía um braço cuja inércia denunciava problemas agravados de saúde.

Adivinhei-lhe os olhos por trás das lentes verde escuras de uns Ray Ban com mais de cinquenta anos, o seu ar sisudo, os manguitos que vestia, mais que impedir-me concitaram em mim o desejo, e a curiosidade, de lhe desvendar os segredos.

Esbocei um sorriso, estendi-lhe o braço e aceitei o papel que me estendia, abrandei o passo e fui lendo o que dizia:

“ À tua consideração.
Por favor, abre e lê, desejo apenas um pequeno momento teu, uma moeda, talvez duas, uma esmola.

Olhas-me espantado/a ?

Até 2013 eu era felizardo, talvez como tu.

Depois acreditei na promessa feita aos funcionários públicos e reformei-me para amparar os últimos dias daquela ao lado de quem fui feliz tantos anos.

Mas os cortes na pensão deitaram-me abaixo, devo ao banco ainda três prestações do mesmo T1 onde sempre vivi e que sob ameaça de despejo as reclama, e às finanças o IMI deste e do ano passado.

Já não toco violino, um pequeno AVC, seis meses depois de Deus me levar a alma gémea, deixou-me o lado esquerdo paralisado.

Nem tenho cão, mas espera-me em casa uma gatinha, agora a minha única e fiel companheira.

Nunca lhe falho com o veterinário, já de mim, até os remédios só quando e se tu fores generoso /a.

Não, não se deve à proeminência esta barriga, deve-se à fome que tenho e à vergonha que sinto.

De qualquer modo obrigado, olha, não deites para o chão este papel, entrega-o a outro passante, e o Senhor te dê em dobro o que sempre quis para mim, longa vida e saúde, o que eu mais invejo e lamento não ter.

Obrigado. “

A seus pés, num boné coçado metido dentro do estojo de um violino algumas moedas brilhavam com o sol, do violino nem o cheiro, somente o arco jazia deitado ao comprido na caixa envelhecida.

Um pequeno gravador destilava repetidamente as notas de uma sonata para violino, “ Caprice em Lá menor, de Niccolò Paganini “, o homem que tocava violino magistralmente...