Por saber ficavam os maus caminhos a percorrer, como
chegara ali sabia, ainda que lhe custasse acreditar que tivesse sido ela a dar
os passos e a aceitar o ritmo dos dias passados.
Era verão, e decerto o verão e o mar se
conjugavam numa sequência que os astros alinhavam em cada estio de modo a
mudar-lhe o apogeu e o perigeu tornando-lhe hiperbólicos os momentos com sol e
sumindo-lhe a órbita no turbilhão calmo dos dias á beira mar, livre dos
rebentos e agora com tempo para si, para ela, tempo mas não paz, tempo para
meditar no quê como e porquê acontecera com ela, a quem a sombra ameaçava a
soturna luminosidade dos dias.
Com o vagar tornavam lembranças e
desejos, sonhos e miragens, que em ondas continuas, tal como a rebentação que
massacra a costa, lhe ciliciavam o espírito, que deixavam em carne viva e
sangrando, ela assustada, debutante ofuscada pela menarca do ser a quem a vida
reclamava existência.
E, mal se sentava, contrapunha á amarga
rotina dos dias a visão mirífica de praias de sonho, areias doiradas e pajens
imberbes abanando ramos de palma ou servindo melífluos e embriagantes
refrescos, quando não rodeada de eunucos e esperando um banho de leite
perfumado com pétalas de rosa e um príncipe perfeito que a levasse dali num
tapete mágico ondulando no éter.
Tão embrenhada estava no seu cogito que
de um salto conquistou a janela, que abriu de par em par, para não ver o
realejo ouvido e cujas notas lhe acudiram à mente num momento de desejo e sonho
cujo desvario a levara à esplanada mesma em que se sonhara e sonhava
recorrentemente amarrada na espera de uma quimera que, com desvelo acarinhava e
lhe martirizava o suplício e o dilema dos dias não vividos.
Por isso o acordar lhe exigia a vergasta do teclado e
do telefone em que mergulhava, qual linimento aos pecaminosos caminhos que se
oferecia a si mesma cambiar em troca da sombria solenidade e estabilidade das
horas que a aborreciam.
Sonhando ou não, conseguia ouvi-lo marulhando a areia
da praia e era quando acreditando nele os pés castigados descalçava p’ra sentir
alivio, como se neles a brisa do mar e os salpicos das ondas, as mesmas ondas
em que mergulhava o pensamento e pelas quais se deixava arrastar das nove às
cinco numa penitência frívola cumprida mecanicamente e cada vez mais vivida
numa vívida ausência de si, era quando acreditava que a fuga para a terra dos
sonhos lhe surgia diante como forma única de suportar o castigo de Eva no
subido atrevimento de ambicionar o paraíso que se entregava a Hypnos.
Cada dia o sol mais forte cutucava-lhe o desejo de
libertação do presídio do tempo e do auto de fé que para si era cada dia
passado sem as asas dos sonhos e a rebeldia infrene dos desejos soltos que se
concedia.
A esta ânsia respondeu Neptuno que emergindo das águas
cristalinas da lagoa atlântica, retesou os músculos e sorriu caminhando para
ela de braços abertos tomando-a para si num amplexo delicado em que a espuma
das ondas rendas, e o grosso das vagas grinaldas, com que a embelezou e cobriu.
Segurando-a no regaço e mergulhando os dedos nos delicados
cabelos dela lhe afagou a nuca e beijou-lhe a fronte as faces e a boca sequiosa
de amor e carinho, boca que se abriu degustando-o, sôfrega, como quem se
empanturra de frutos do mar e hidromel celestial.
E assim se cumpriam os dias cumpridos e a cumprir.
“ E, quando a nuvem se detinha sobre o
tabernáculo muitos dias, os filhos cumpriam o mandado do Senhor, e não
partiam. “ 9:19
“ À ordem do Senhor se acampavam, e à
ordem do Senhor partiam; cumpriam o mandado do Senhor, que ele lhes dera. “
9:23
“ Ora, quando chegava a vez de cada
donzela vir ao Rei Assuero, depois que fora feito a cada uma segundo prescrito
para as mulheres, por doze meses (pois assim se cumpriam os dias de
seus preparativos, a saber, seis meses com óleo de mirra, e seis meses com
especiarias e ungüentos em uso entre as mulheres) .“ 2:12