terça-feira, 8 de abril de 2014

184 - TINHA SIDO HOMEM HONESTO * por Maria Luísa Baião...


Todos estranharam. Tão novo, nem sequer fumava. Porém não amava as coisas como dantes. Em vez disso já só a imagem delas o bastava. Há muito que se quedara. Talvez “quebrara” seja o termo exacto.

Concluíra que não tinha amigos, ou antes, não acreditava ter amigos. Não cria mesmo na amizade.

– “Tudo falsidades” , dizia.

Encarar a mulher e os filhos há muito se lhe igualara a pesado fardo. Estava vencido. Assim se sentia, assim entendia que o viam. Quisera mesmo morrer e não achara como, nem como nem coragem para o fazer.

Mais um sinal que eu notara na lista das suas intuídas imensas fraquezas, debilidades. Incapacidades que agora se perfilavam umas atrás das outras preenchendo-lhe de pesadelos o pensamento e o viver, cada vez mais insuportável para ele.

Fechava-se portas dentro, não tolerava ninguém. Saía à rua numa necessidade interior de estar com os outros, cuja presença não aguentava, volvendo a casa e aos seus pensamentos inconfessáveis de inutilidade, os mesmos que o não deixavam dormir, nem estar acordado.

A dignidade em cacos.

Confessara-me há alguns anos que, quando casara, se desfizera por tuta-e-meia de uma courela deixada em herança pelos pais e rumara à cidade.

- A pior estupidez da sua vida, dissera-me.

Por vaidade abandonara o campo e uma tão desvirtuada, creio que empregara a expressão desvalorizada vida rural e a pobreza a ela associada, esperançando a cidade.

- Uma parvoíce, admitia agora.

– “Ao menos não estaríamos neste estado. Umas couves, umas hortaliças, umas galinhas e uns coelhos, ou mesmo uns porquitos e uns borreguitos. Pelo menos não morreríamos à fome”.

Sempre tinha sido homem honesto. Agora achava ter sido essa a causa da sua perdição. Dei-lhe o desconto, o período que atravessava não o deixava ver claro. Até o 25 de Abril abjurava. Não podia estar no seu perfeito juízo. Assim pensei nessa altura.

Era trabalhador. Fora coveiro num cemitério, lavador de carros numa estação de serviço, distribuidor de gás, bombeiro, pintor de casas nas horas livres para compor os fins de meses.

Nos últimos dos seus bons anos servira numa grande serralharia que houve em Évora.

Depois disso chamaram-lhe velho, e à medida que o subsídio de desemprego minguava, até desaparecer, foi-se chamando a si mesmo de inútil, incapaz, traste.

Poucos mais anos teria que cinquenta, mas a barba, sempre por fazer, denunciando os cuidados ou a paciência que já não tinha para consigo, faziam-no mais velho aos olhos de todos. Chamaram-lhe velho, e daí até se assumir como tal foi um passo.

Conheci-o quando das primeiras desavenças que irromperam em sua casa. Casa onde não há pão…

Sei que muitas vezes não comia, e sempre acreditei de mim para mim que fosse por não ter fome. Uma ou outra vez dei-lhe biscates a fazer, a sofreguidão com que os almoços e lanches desapareciam da sua frente denunciavam-no.

Procurei ajudá-lo a solucionar o problema e muitas promessas ouvi. Ainda hoje por cumprir. Agora já não vale a pena.

Incapaz de encarar os filhos, ou estes de o encararem a ele, trocavam-se uns aos outros as horas de encontro, ao almoço, ao jantar.

A mulher sempre em pranto, a vida em desencanto, os filhos exigindo, o pecúlio não bastando, o drama evoluindo.

Maria Genoveva, a mulher, trabalhara de doméstica desde que se lembrava numa casa de família classe média. Classe média que foi encolhendo, encolhendo, e quando ficou abaixo da mediania descobriu que não podia dar-se ao luxo de ter uma Maria.

A pobreza tem sempre as suas fundações, mesmo sem razões. Assim se acabaram as sopas da patroa, como há muito se haviam acabado as sopas nos quartéis. Nunca mais os filhos teriam de engolir o orgulho ao vestir as roupas sobradas aos meninos.

A vida de Manuel recuando. Não era homem de beber ou de outros vícios. Talvez melhor se os tivesse, ao menos poderia descarregar as frustrações. Amuava, interiorizava, teorizava, e não compreendia. Os filhos a ficarem homens. Sem uma profissão, um emprego, uma esperança de trabalho.

Ao menos um futuro, Manuel não pedia mais.

– “Ao menos não estaríamos neste estado. Pelo menos não morreríamos à fome, umas galinhas, uns coelhos. Talvez tivesse dado um bom agricultor ”.

Desenraizado, Manuel sufocava sob o peso das arbitrariedades da vida. Não tinha escolha, aliás nunca tivera.

Por mero acaso escanhoara-se naquele dia. Quem sabe se um pressentimento de que os seus sofrimentos teriam finalmente fim.

Os médicos estranharam. Todos eles estranharam. Tão novo, nem sequer fumava. Manuel morreu no passado dia 21, dia em que começaria a sua quinquagésima quarta primavera.

Foi encontrado fulminado por um enfarte junto às ruínas da antiga serralharia onde tivera sido feliz durante tantos anos.

Ninguém sabe explicar o que por ali andaria fazendo, tão longe de casa, tão longe de todos, tão longe de tudo.

Paz à sua alma.


* Publicado por Maria Luísa Baião in Diário do Sul, Kota De Mulher, Évora, em finais de 2003 ou princípios de 2004.


terça-feira, 1 de abril de 2014

183 - AFICIÓN / FRICCION ………...……

Pintura de Lucia Parra

O clamor da horda ululante que em décadas precedeu as claques do futebol fazia tremer as fundações do velho baluarte que é Monsaraz, e por momentos chegava a parecer-me que as próprias pedras, e até as ameias, se sacudiam numa dança frenética, tal e qual anos mais tarde veria num documentário sobre os núcleos atómicos, em que o colorido da mole humana que assim se agitava fazia lembrar os neutrões, electrões, positrões e tutti quanti dançam em redor.

Nessa noite nem conseguira dormir. Muito antes do encher da praça já a mui antiga e medieval vila de Monsaraz vivia num transe excitante. A orquestra da artística animava a festa e a cada pasodoble uma enchente de coragem inundava a arena numa maré-cheia, cujo refluxo se sincronizava com a entrada de quaisquer touros escassos momentos depois de iniciada  a corrida.

Maré e refluxo comandavam a multidão que, ora sentada ora em pé, aplaudia ou vaiava os pouco confiantes mas intrépidos aventureiros que contra as feras acometiam. Eu ria gritava chorava emocionado ou calava-me assustado e apesar das cenas bem na minha frente desenhadas, gelados, pirolitos, rebuçados, chupa chupas e pevides eram, no calor então vivido, e apesar da preferência, muitas vezes por mim esquecidos.

O estalar dos foguetes, a orquestra e a festa, a tudo se sobrepunham num êxtase sacralizado que ungia a populaça enraivecida num ritual anual. Julgávamos desse modo expurgar de nós os demónios de um ano inteiro, senão de uma vida, sublimando velhas e incompreensíveis pulsões que cada um arrastava, mas que se chamado negaria do primeiro ao último cantar do mesmo galo que em julgamento expôs S. Pedro. 

 Assim me fazia eu homem, descarregando, sátiro, a raiva das minhas impossibilidades vendo os outros, que um dia eu seria, submetendo-se às mais infames vilanias e, um após outro, os animais corridos numa inenarrável litania que os clamores de trombones trombetas e clarins açulavam para edificação do bicho homem, que eu seria quando tomasse o lugar dos que agora davam corpo ao rito.

No fluxo e refluxo desse desejo e devir me inscrevia eu, aplaudindo cavaleiros e bandarilheiros, mas igualmente exaltando-me a cada investida das feras sempre na esperança do supremo sacrifício, da besta ou do homem, era-me indiferente, conquanto me saciasse os instintos que descobria em mim com mais surpresa que agrado, que sentia estarem algures e escondidos, mas serem meus, tanto mais que nas brincas com outros rapazes, e em especial com as primas, era eu quem punha e dispunha, era já eu treinando e tomando o lugar do macho, do homem, do ser implacável que cada um de nós alimenta com maior ou menor fervor e resultado, ou proveito.

Sentado na fiada de lugares à minha frente não raro o Julinho aguentava-me os pontapés e os murros, que desferidos nos momentos de maior fricion e aficion eu distribuía, profícuo, e na razão directa da velocidade a que no meu intimo sentia capacitar-me para as mais esdrúxulas e coloridas tarefas, por mais hediondas que fossem as cores de que pudessem travestir-se.

Não muito mais tarde haveria de experimentar-me e medir-me, apanhando cobras na ribeira e afogando sem complacência ninhadas de gatinhos acabados de nascer. Ou, desafiando incompreensões que só os anos esclareceram, pegando a Rosário pelos cabelos, ou torcendo-lhe um braço até que ante mim ajoelhasse e rezasse, se submetesse ao castigo, para somente quando a visse chorar ou engasgar-se e babar-se lhe conceder a complacência do meu perdão, o favor da minha amizade, a honra da minha atenção.

Um homem não nasce feito, constrói-se, constroem-no, construo-me, construí-me, defenderei : i’m a self made man !

De um modo um tanto ou quanto desregrado se iam inculcando em mim as regras, latinas, ibéricas, marialvas, machistas, preponderantes na zona raiana onde nasci, uso moda e fuso de afirmação do ser que em mim se construía, colonizado não pela razão, antes pela emoção e soberba numa mistura aleatória, perigosa, e simultaneamente explosiva.

Desta maneira enviesada eu matava o homem bom ou o bom selvagem inato em mim, não sem sofrimento, não sem conhecimento, daí o estremecer cada vez que na arena o lidador dava a estocada final iludida na muleta e enterrava até ao punho a espada, ou os capas as bandarilhas e os cavaleiros os ferros.

O delírio final vivia-o eu a dois passos de mim, ali na beira da arena, ante os meus olhos, o martírio do touro, enredado nas cordas e incapaz de fugir ao destino, totalmente imobilizado e sacrificado ao espigão cravado na nuca, entre os chifres, o sangue espirrando, jorrando, e a cada urro um estremeção meu, o homem bom tentando erguer-se, a minha soberba abafando-o, um sorriso esforçado, um esgar, uma náusea, um vómito, mas venci, recompus-me e abalei correndo à travessa do matadouro ver esquartejar a fera e confesso-vos, da última vez que o fiz estremeci, delirei, vibrei, um orgasmo tomou-me, e foi mesmo a última vez, nunca mais me permiti ver a morte do touro na arena porque às primeiras mulheres que fiz minhas as tomei como um matador numa praça e depois da estocada dada, do ferro cravado, tomei consciência do perigo em mim e retirei-me em recolhimento, confuso, perdendo-me em olhares sem fim, na família, na mamã, numa pulsão indómita de matar o pai por honra e amor da mãezinha.

Foi-me turbulenta a eclosão da barba e da adolescência, prenhe de dúvidas, parca de certezas. Curou-me a légua a que distava dali a ribeira da Guadiana, a caça com armadilhas, os ninhos, o cansaço do percurso tantas vezes palmilhado, mas também os novos horizontes, a oração, o seminário, o padre Geraldes, que tão bem soube guiar-me na manifesta falta de vocação em que soçobrei.

Assim aprendi a esperar que a razão se sobrepusesse à emoção, fui um feixe de músculos ao qual dessem tempo após distender-se para cair no real, na verdade, na razão que deveria guiar a humanidade.

Fiz-me a mim mesmo, a escopro e martelo, com dor. 

Não teria sido conforme relatei caso não tivesses nascido ali, frente à igreja de Nossa senhora da Lagoa,* naquela linda casa branca de esquina…

Foto da casa onde nasci,* no largo da vila de Monsaraz, da autoria de António Caeiro, clike se desejar ampliar. 



* ver esta http://mentcapto.blogspot.pt/2014/03/179-nossa-senhora-da-lagoa.html


Pintura de Sónia Barreto - Évora 2017

quarta-feira, 26 de março de 2014

182 - STRESSADOS DE GUERRA * ..........................


Afadigam-se há 25 anos (hoje serão 40, 42 anos) * os antigos combatentes das guerras coloniais para sensibilizar o estado quanto ao reconhecimento das suas deficiências psíquicas adquiridas em situação de grande stress, exigindo serem equiparados aos mutilados, seus irmãos de sangue. Se persistirem aposto que ganham um monumento igual aos dos combatentes da I Grande Guerra.

A pátria é madrasta, aliás todas as pátrias o foram sempre, a juventude é, sempre foi, carne para canhão. Aproveitem os jovens agora os quatro meses de SMO (Serviço Militar Obrigatório) ou a não obrigatoriedade de cumprimento desse mesmo SMO, porque se estala alguma guerra rapidamente serão recrutados aos dezasseis anos para cumprir 4, 6 ou 8 anos de serviço, o que aliás acontece em muitas pátrias nos dias de hoje, quantas vezes lugares onde nem a objecção de consciência é conhecida quanto mais consentida.

É difícil provar o stress traumático pós guerra. Falta de provas, dificuldade na abertura e consulta de arquivos, indisponibilidade das chefias militares para remexer em assuntos que nem ao diabo interessa lembrar e que mais não são que publicidade negativa para o negócio. Negócio tantas vezes de inconscientes, inconscientes que nos submetem a guerras injustas, inconscientes os que nelas participam dando o corpo ao manifesto, ou já viram Napoleões recensearem homens maduros ?  Claro que não ! É muito mais fácil comandar adolescentes crédulos, no vigor da força e da inconsciência !

Mas francamente digam-me lá se não é de arrasar os nervos caminhar horas sem fazer barulho, tirar os relógios para que o reflexo do sol neles não nos denuncie, ou não fumar de noite pela mesma razão, sempre temendo pisar uma mina, levar um tiro vindo não se sabe de onde ? Digam lá se não nos marca ver um camarada de armas desfazer-se à nossa frente, ou morrer nos nossos braços pedindo-nos que não esqueçamos dizer à mãe quanto a amava. Homens feitos que pensam que o são e morrem chamando a mãe, chorando os filhos e as esposas…

Digam-me lá se não confunde a mente de qualquer um distinguir entre cubatas boas e más. Boas as feitas por nós, no terreno por nós dominado e para onde à força deslocamos as populações. As más, as más serão aquelas a que pegamos fogo, tenham gente ou não, que tiros e granadas fazem ir pelos ares e que, se à noite, são bonitas de se ver, soltam chispas que lembram fogo de artificio ! Digam lá se não aliena passar os dias bebendo água fétida dos charcos, a que se adiciona comprimidos purificadores, água que nem chegamos a beber por os tiros estalarem repentinamente sem que saibamos de onde partem. Digam lá se não aliena passarmos o dia rastejando no capim, morrendo e matando sem ver caras nem corações, mas ouvindo os impropérios que nos são dirigidos e respondendo-lhes no mesmo jaez.

E o comandante da coluna grita: - "vamos a eles filhos de puta cabrões !  O teu pai isto a tua mãe aquilo a tua mulher assim e assado ! Meu preto de merda ! " ... Enquanto os mortos exalam um cheiro nauseabundo que nos acobarda e os feridos largam a vida vagarosa e pegajosamente porque não há estradas que os salvem nem meios de transporte que os evacuem. Morre-se tão estupidamente na guerra. Felizmente uso penduradas do pescoço umas figas, num fio donde pende um crucifixo e tenho uma santinha na carteira. Pelo sim pelo não tatuei “amor de mãe” no braço esquerdo, o do lado do coração, não vou morrer pois não ?

No acampamento estou em segurança, os amuletos espetados nos postes da vedação já mirraram, lembram-me, nem eu sei por quê, a Capela dos Ossos, na igreja de S. Francisco. Servem de espantalho aos turras. Ao princípio custei a habituar-me a este espectáculo, agora se pudesse levava uma de recordação para a metrópole, talvez aquela maior pois eu mesmo a cortei. Às vezes jogávamos à bola com elas, ricos tempos ! Aquilo é que era camaradagem !

E de seis em seis meses, em Bissau, aquilo é que era festa ! Bebedeiras de caixão à cova ! Longe vá o agoiro ! A visita às sanzalas caída a noite, as pretas são mais quentes que as brancas.

Também jogávamos xadrez, não só damas.

Terei filhos ?

O civil dos passes na base aérea de Bissau colecciona armas e fez da sua casa um museu ainda que nunca tivesse sido tropa. O graduado do comando colecciona presépios, tem lógica não tem ? E a lógica é uma batata não é ? Estão todos malucos não estão ? Se me não vou embora depressa fico pior que eles, e é preciso cuidado não apanhe eu um cavalo.

Soldados ! No glorioso cumprimento dos deveres pátrios esperamos de vós todo o empenho e coragem para o desempenho da missão que vos foi confiada ! Que cada um tome consciência de que até a morte é honrosa quando estão em jogo os mais altos valores da nação e do império ! Boa sorte e desfaçam-nos !


Daqui fala o furriel miliciano 2831/73 Humberto Baião na mata de Contabani, para meus pais e irmãos um Feliz Natal e próspero Ano Novo.

* Este texto, à excepção do primeiro parágrafo, publicado em Janeiro de 1974 no jornal de parede da companhia em Bissau, valeu ao seu autor uma repreensão registada com destacamento pessoal para a metrópole afim de ser acusado de dissidência, castigo que o golpe de 25 de Abril deitaria por terra, este mesmo texto foi também já publicado, completo,  no Semanário Imenso Sul, Évora, em 11-02-2000 









quarta-feira, 19 de março de 2014

181 A IMPORTÂNCIA DE ME CHAMAR HUMBERT

                                 
Surpreendi-me a mim próprio porque naquela manhã luminosa os campos e as flores ficaram esperando o meu olhar para que, num repente abrissem, e foi quando abandonei de todo as conversas dos velhos e me concentrei nesse mister que os rebentos finalmente desabrocharam e sacudiram as amarras da vontade que neles oprimida estava. 

Olhei ao longe, até Elvas, e na esteira do meu olhar as giesteiras agitaram-se num tremor estrepitoso e abriram em uníssono, pelo que posso garantir-vos que de todas as flores campestres é a giesta aquela cuja melodia mais se destaca na manta de retalhos colorida dos campos que se estendem até Badajoz e de Monsaraz se avistam.

Temia a canícula das tardes quentes em que bastava o restolhar duma cobra nas ervas secas para me pôr os sentidos em alerta, por isso aproveitava as manhãs em que elas pasmadas se quedavam enroladas sob as fragas, aquecendo sangue que lhes desse alma para, como eu, cabriolarem, pois cavalgava os muretes da entrada da vila e entretinha-me ouvindo ociosos sem jorna, apostando os sentidos no Alquerque* que a todos arrebanhava em intermináveis gestas.

Espojado nas lajes frescas do murete manuseava as pedrinhas,* aliviava o elástico dos suspensórios, o ouvido pendendo-me para as histórias marteladas no canto onde os homens mijavam e de mão sobre o sobrolho punham a vista nos fumos que se soltavam dos fornos das olarias da Aldeia do Mato, numa tentativa vã de catalogarem pelas suas formas e cores a cerâmica que vomitavam, porque do “Santiago”, que só pratos cozia, jamais poderiam ser aqueles novelos em catadupa, quando muito do “Beijinho”, esse sim mestre dos melhores potes e louças dali à raia e até Espanha, era sabido de todos.

           Pasmava ouvi-los dissertando sobre o fumo branco e o fumo negro das cerâmicas e nem o seu cantado linguajar abafava o silêncio rumorejante das águas da ribeira que se avistavam daqui, faiscando, e cujo morse eu traduzia manipulando as pedrinhas* ao sabor desses segredos em código emanados das violetas bravas que lhe salpicavam as margens.

Foi somente quando o rosnar do motor da camioneta da tarde espumando na ladeira se fez ouvir que os homens se benzeram e largaram fugindo de chapéu na mão, trancando as portas de casa, porque um motor era um ser estranho e lembrava os idos de antanho, e certa manhã de cerrado nevoeiro em que um igual ruído, trazido por um biplano, alarmara todo o termo por tonitruante impacto e ígneo incêndio de cujos destroços, desabados junto à torre de menagem do castelo só um cadáver carbonizado restou, o do desditoso aviador, pela sina ludibriado, e que Humberto se chamara.

Tal como Humberto deram de nome ao meu padrinho e todos esperaram na família que cedo aprendesse a voar e lhe nascessem asas para que se sumisse daquele inferno para fora, como um pássaro, como o perfume duma giesta ou de uma violeta brava, ou como um rio, porque a uns a vila abafava os destinos num novelo e nem as mãos delicadas das mulheres lhes soltavam as pontas, e a outros os engalfinhava uma serpente camuflada nas esquinas do porvir e os esventrava para que jamais fossem além das muralhas da sua própria coragem ou das ameias do seu ímpeto, e no fosso, por trás de onde elas mais altas eram, podiam ver-se ainda por nem terem mais de cem anos, os esqueletos desossados dos últimos mártires cuja carne acicatara o apetite dos milhafres.

Por isso eu não vi, juro que não vi nunca vi, as mulheres à noite, escondendo nas trevas os seus trajes negros, ajoelhando num mar sobre as lajes frias do largo, orando compenetradas e erguendo as mãos a Nossa Senhora da Lagoa num painel de azulejos no frontão da igreja do mesmo nome, venerada há mais de quinhentos anos, pisando e repisando a víbora que se alimentava dos destinos das gentes e cujas gargalhadas se ouviam nas noites luciferinas de tempestade.

Mau grado o fadário da vila a minha vida decorria toda ela sob o signo da leveza e, uma vez, depois de ouvir a avó Inácia :

- Raio do gaiato que nem pára em casa, parece ter asas !

Pelo que nem será de admirar que tenha acautelado se seriam asas que me brotariam das costas, tal a coceira por vezes ali sentida, ou que já no liceu exultasse sempre que o professor de atletismo :

- Parece que tem asas nos pés o raio do miúdo !

Nem foi preciso mais para acentuar a minha queda pelos clássicos, pelos mitos de Hermes e Pégaso, tudo factos que, contudo, não saciaram a minha ânsia de realização pessoal, cousa que até hoje persigo.

Depois de cinco divórcios de sucesso ressoam todavia em minha mente os gritos de cinco esposas indolentes, que em sonhos inda hoje me convidam a assentar os pés na terra, pelo que me interrogo em introspecção pessoalíssima se não seria já tempo de se terem concretizado todas as esperanças depositadas neste nome que carrego.

Porque ou o milagre se dá ou o paizinho e muita namorada que servi tinham razão e de um tolo de cabeça no ar não passarei jamais …


* Alquerque – velho jogo árabe cuja origem ninguém na vila conhecia. Uma espécie de “jogo do galo” em que cada contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras. 






quinta-feira, 13 de março de 2014

180 - OS DIAS POR CUMPRIR ..............



Por saber ficavam os maus caminhos a percorrer, como chegara ali sabia, ainda que lhe custasse acreditar que tivesse sido ela a dar os passos e a aceitar o ritmo dos dias passados.

Era verão, e decerto o verão e o mar se conjugavam numa sequência que os astros alinhavam em cada estio de modo a mudar-lhe o apogeu e o perigeu tornando-lhe hiperbólicos os momentos com sol e sumindo-lhe a órbita no turbilhão calmo dos dias á beira mar, livre dos rebentos e agora com tempo para si, para ela, tempo mas não paz, tempo para meditar no quê como e porquê acontecera com ela, a quem a sombra ameaçava a soturna luminosidade dos dias.

Com o vagar tornavam lembranças e desejos, sonhos e miragens, que em ondas continuas, tal como a rebentação que massacra a costa, lhe ciliciavam o espírito, que deixavam em carne viva e sangrando, ela assustada, debutante ofuscada pela menarca do ser a quem a vida reclamava existência.

E, mal se sentava, contrapunha á amarga rotina dos dias a visão mirífica de praias de sonho, areias doiradas e pajens imberbes abanando ramos de palma ou servindo melífluos e embriagantes refrescos, quando não rodeada de eunucos e esperando um banho de leite perfumado com pétalas de rosa e um príncipe perfeito que a levasse dali num tapete mágico ondulando no éter.

Tão embrenhada estava no seu cogito que de um salto conquistou a janela, que abriu de par em par, para não ver o realejo ouvido e cujas notas lhe acudiram à mente num momento de desejo e sonho cujo desvario a levara à esplanada mesma em que se sonhara e sonhava recorrentemente amarrada na espera de uma quimera que, com desvelo acarinhava e lhe martirizava o suplício e o dilema dos dias não vividos.

Por isso o acordar lhe exigia a vergasta do teclado e do telefone em que mergulhava, qual linimento aos pecaminosos caminhos que se oferecia a si mesma cambiar em troca da sombria solenidade e estabilidade das horas que a aborreciam.

Sonhando ou não, conseguia ouvi-lo marulhando a areia da praia e era quando acreditando nele os pés castigados descalçava p’ra sentir alivio, como se neles a brisa do mar e os salpicos das ondas, as mesmas ondas em que mergulhava o pensamento e pelas quais se deixava arrastar das nove às cinco numa penitência frívola cumprida mecanicamente e cada vez mais vivida numa vívida ausência de si, era quando acreditava que a fuga para a terra dos sonhos lhe surgia diante como forma única de suportar o castigo de Eva no subido atrevimento de ambicionar o paraíso que se entregava a Hypnos.

Cada dia o sol mais forte cutucava-lhe o desejo de libertação do presídio do tempo e do auto de fé que para si era cada dia passado sem as asas dos sonhos e a rebeldia infrene dos desejos soltos que se concedia.

               A esta ânsia respondeu Neptuno que emergindo das águas cristalinas da lagoa atlântica, retesou os músculos e sorriu caminhando para ela de braços abertos tomando-a para si num amplexo delicado em que a espuma das ondas rendas, e o grosso das vagas grinaldas, com que a embelezou e cobriu.

                  Segurando-a no regaço e mergulhando os dedos nos delicados cabelos dela lhe afagou a nuca e beijou-lhe a fronte as faces e a boca sequiosa de amor e carinho, boca que se abriu degustando-o, sôfrega, como quem se empanturra de frutos do mar e hidromel celestial.

                     E assim se cumpriam os dias cumpridos e a cumprir.

“ E, quando a nuvem se detinha sobre o tabernáculo muitos dias, os filhos cumpriam o mandado do Senhor, e não partiam. “  9:19

“ À ordem do Senhor se acampavam, e à ordem do Senhor partiam; cumpriam o mandado do Senhor, que ele lhes dera. “ 9:23


“ Ora, quando chegava a vez de cada donzela vir ao Rei Assuero, depois que fora feito a cada uma segundo prescrito para as mulheres, por doze meses (pois assim se cumpriam os dias de seus preparativos, a saber, seis meses com óleo de mirra, e seis meses com especiarias e ungüentos em uso entre as mulheres) .“ 2:12