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quarta-feira, 19 de março de 2014

181 A IMPORTÂNCIA DE ME CHAMAR HUMBERT

                                 
Surpreendi-me a mim próprio porque naquela manhã luminosa os campos e as flores ficaram esperando o meu olhar para que, num repente abrissem, e foi quando abandonei de todo as conversas dos velhos e me concentrei nesse mister que os rebentos finalmente desabrocharam e sacudiram as amarras da vontade que neles oprimida estava. 

Olhei ao longe, até Elvas, e na esteira do meu olhar as giesteiras agitaram-se num tremor estrepitoso e abriram em uníssono, pelo que posso garantir-vos que de todas as flores campestres é a giesta aquela cuja melodia mais se destaca na manta de retalhos colorida dos campos que se estendem até Badajoz e de Monsaraz se avistam.

Temia a canícula das tardes quentes em que bastava o restolhar duma cobra nas ervas secas para me pôr os sentidos em alerta, por isso aproveitava as manhãs em que elas pasmadas se quedavam enroladas sob as fragas, aquecendo sangue que lhes desse alma para, como eu, cabriolarem, pois cavalgava os muretes da entrada da vila e entretinha-me ouvindo ociosos sem jorna, apostando os sentidos no Alquerque* que a todos arrebanhava em intermináveis gestas.

Espojado nas lajes frescas do murete manuseava as pedrinhas,* aliviava o elástico dos suspensórios, o ouvido pendendo-me para as histórias marteladas no canto onde os homens mijavam e de mão sobre o sobrolho punham a vista nos fumos que se soltavam dos fornos das olarias da Aldeia do Mato, numa tentativa vã de catalogarem pelas suas formas e cores a cerâmica que vomitavam, porque do “Santiago”, que só pratos cozia, jamais poderiam ser aqueles novelos em catadupa, quando muito do “Beijinho”, esse sim mestre dos melhores potes e louças dali à raia e até Espanha, era sabido de todos.

           Pasmava ouvi-los dissertando sobre o fumo branco e o fumo negro das cerâmicas e nem o seu cantado linguajar abafava o silêncio rumorejante das águas da ribeira que se avistavam daqui, faiscando, e cujo morse eu traduzia manipulando as pedrinhas* ao sabor desses segredos em código emanados das violetas bravas que lhe salpicavam as margens.

Foi somente quando o rosnar do motor da camioneta da tarde espumando na ladeira se fez ouvir que os homens se benzeram e largaram fugindo de chapéu na mão, trancando as portas de casa, porque um motor era um ser estranho e lembrava os idos de antanho, e certa manhã de cerrado nevoeiro em que um igual ruído, trazido por um biplano, alarmara todo o termo por tonitruante impacto e ígneo incêndio de cujos destroços, desabados junto à torre de menagem do castelo só um cadáver carbonizado restou, o do desditoso aviador, pela sina ludibriado, e que Humberto se chamara.

Tal como Humberto deram de nome ao meu padrinho e todos esperaram na família que cedo aprendesse a voar e lhe nascessem asas para que se sumisse daquele inferno para fora, como um pássaro, como o perfume duma giesta ou de uma violeta brava, ou como um rio, porque a uns a vila abafava os destinos num novelo e nem as mãos delicadas das mulheres lhes soltavam as pontas, e a outros os engalfinhava uma serpente camuflada nas esquinas do porvir e os esventrava para que jamais fossem além das muralhas da sua própria coragem ou das ameias do seu ímpeto, e no fosso, por trás de onde elas mais altas eram, podiam ver-se ainda por nem terem mais de cem anos, os esqueletos desossados dos últimos mártires cuja carne acicatara o apetite dos milhafres.

Por isso eu não vi, juro que não vi nunca vi, as mulheres à noite, escondendo nas trevas os seus trajes negros, ajoelhando num mar sobre as lajes frias do largo, orando compenetradas e erguendo as mãos a Nossa Senhora da Lagoa num painel de azulejos no frontão da igreja do mesmo nome, venerada há mais de quinhentos anos, pisando e repisando a víbora que se alimentava dos destinos das gentes e cujas gargalhadas se ouviam nas noites luciferinas de tempestade.

Mau grado o fadário da vila a minha vida decorria toda ela sob o signo da leveza e, uma vez, depois de ouvir a avó Inácia :

- Raio do gaiato que nem pára em casa, parece ter asas !

Pelo que nem será de admirar que tenha acautelado se seriam asas que me brotariam das costas, tal a coceira por vezes ali sentida, ou que já no liceu exultasse sempre que o professor de atletismo :

- Parece que tem asas nos pés o raio do miúdo !

Nem foi preciso mais para acentuar a minha queda pelos clássicos, pelos mitos de Hermes e Pégaso, tudo factos que, contudo, não saciaram a minha ânsia de realização pessoal, cousa que até hoje persigo.

Depois de cinco divórcios de sucesso ressoam todavia em minha mente os gritos de cinco esposas indolentes, que em sonhos inda hoje me convidam a assentar os pés na terra, pelo que me interrogo em introspecção pessoalíssima se não seria já tempo de se terem concretizado todas as esperanças depositadas neste nome que carrego.

Porque ou o milagre se dá ou o paizinho e muita namorada que servi tinham razão e de um tolo de cabeça no ar não passarei jamais …


* Alquerque – velho jogo árabe cuja origem ninguém na vila conhecia. Uma espécie de “jogo do galo” em que cada contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras.