Arredores de Linköping |
O Rato
Bicho nem estava cheio de rebentar como é costume nos dias em que servem cozido
à portuguesa, um prato típico alentejano, muito vulgar mas ali muitíssimo bem confeccionado, ricamente acompanhado e bastante apreciado, que porém tem o condão de atrair clientes como a merda atrai
as moscas.
Se
bem que as mesas estivessem todas ocupadas, não havia, todavia, gente em fila
de espera que nos apressasse, pressionando-nos psicologicamente no sentido de
despachar o almoço de molde a deixar a mesa livre para quem estivesse a seguir,
pelo que a conversa fluía natural e livremente.
A
páginas tantas, ou será melhor dizer entre as entradas e o primeiro prato, o
Hélio aproveitou uma pausa nos nossos treclarec e mastiganço para
colocar na berlinda a questão que verdadeira e profundamente o atormentaria;
- Pois
é. E então a senhora, a Fátima, desculpa Baião, desculpem-me, mas ainda não
estou à vontade com ela, com a Fátima, mas é mesmo sueca ? E ela percebe mesmo o
que estou a dizer, percebe-me bem Fátima ?
Vi
logo que estava aliviando nele o receio costumeiro e vezeiro de, lá para o fim
do almoço, uma vez emborcados os jarros
de vinho da casa, largasse inadvertidamente uma ou outra palavra menos própria, esquecendo haver ali senhoras, e sosseguei-o, pois ela, a Fátima, alvo de tanta
atenção e curiosidade, contorcia-se com o incómodo sentindo-se pouco á vontade,
fenómeno aliás já de mim conhecido.
- Sueca
dos sete costados Hélio, respondi-lhe. Mas está integrada, pois encontra-se entre
nós desde os seus vinte e poucos anos ou menos ainda, razão p’la qual praticamente
fala e pensa somente em português.
Em
boa verdade a Fátima licenciara-se cedo no seu país, na sua terra natal, Linköping,** uma cidadezinha de nome impronunciável a sudoeste de Estocolmo. É um país diferente a Suécia, onde o ensino é não só diferente
do nosso como bastante eficiente. Filha de mãe sueca e pai português fizera-se Engenheira
do Gelo, uma qualquer especialidade que eles por lá têm que os ajuda muito e
lhes dá muito jeito, mais jeito que os nossos engenheiros agrícolas já que nem
agricultura temos e, de forma algo curiosa para nós, simultaneamente
estudara também enfermagem.
Lá estudam o gelo como nós não estudamos as
terras. Avaliam
da sua solidez e consistência, refiro-me ao gelo claro, a sua formação, e
concomitantemente a das neves que os originam, dos seus depósitos, camadas e avalanches,
que provocam e controlam para as gerir, evitando danos maiores como cortes de
estradas e caminhos de ferro ou a morte de pessoas, passíveis de por elas poderem
ser soterradas.
- Mas
veio cá parar abaixo, isto aqui é mais quentinho e que diz ela de Portugal e do
Alentejo Baião ?
- Sim
ela andou sempre cá ou lá, ou lá ou cá, mas o que a fez escolher o nosso país foi
um acidente que ainda muito nova por lá sofreu. Uma vez saltou de paraquedas no
alto de uma montanha afim de colocar explosivos e gerir uma avalanche, acabando
por cair sobre gelo fino que, abrindo-se, a engoliu numa fenda enorme. Foi uma
queda de trinta metros que só não foi pior porque o cordame e o velame do paraquedas a ampararam, ainda assim a pancada e as dores acabaram-lhe com a
carreira de engenheira do gelo mal a tinha começado.
- Por
isso Hélio não te admires, digamos ter vindo convalescer para cá, gozar do
nosso sol e trabalhar na empresa do pai, no Porto. Era ainda muito jovem, mas tendo
sentido necessidade de integração, de socialização, aleatoriamente acabou por
colidir com, e aderir ao Movimento Nacional Feminino, MNF, onde rapidamente fazia
amigas, facilmente se integrando na sociedade Portuense.
- Xiiiiiii Baião !!! MNF !!! onde ela se meteu !!!
Ó meu
caro Hélio não sejas parolo, aquelas gentes, digo os suecos, têm uma noção de
solidariedade e de coesão diferentes da nossa, vera, efectiva, e que colocam em
prática de modo altruísta, de tal modo que o Movimento Nacional Feminino, MNF,
a convidou para integrar o corpo de enfermeiras paraquedistas numa das nossas
províncias ultramarinas e, mal ela abriu a boca foi contemplada com Angola,
onde muito jovem acabou por ir bater com os costados e de onde regressaria dois
ou três anos depois para tirar em Lisboa uma especialidade de assistência a
politraumatizados, tão forte fora a impressão que lhe causaram os desgraçados
dos nossos tropas com quem teve a sorte ou o azar de se cruzar.
- Fogo
Baião, admirou-se a Patrícia. A D. Fátima, a Fátima digo eu, não tinha pai para
a Rita como por cá dizemos. Eu também estive em Angola, aliás sou de lá, eu e o
Kayaka, foi lá que me apaixonei pelo Hélio, e sofremos ou vivemos nesses dias
umas aventuras danadas em Luanda, na altura da independência aquilo esteve mesmo
muito bravo lá.
- Pois
foi Patrícia, sei, lembro-me de me contares as peripécias e temores do Hélio, e
olha tão bravo era o ambiente em Luanda nessa altura que ela já não voltou a
Angola.
Foi
por essa época que a conheci na estrela, onde eu fora operado a um ouvido, foi
nesse Verão quente. E foi por essa altura que também ela e a Luisinha se
conheceram, a festa de fim de curso das duas fora feita em simultâneo, em
conjunto, e ficaram amigas. é uma velha amiga de família, estivemos quase quarenta
anos sem nos vermos, sem sabermos uns do outro.
- Sim, então evaporou-se ? politraumatizou-se ?
voltou à Suécia ? Inquiriu a Patrícia ávida de curiosidade.
- Nada
disso pá, por cá fartaram-se de lhe chamar fascista, reaccionária, mercenária e outros apodos indizíveis, compelindo-a a abandonar a enfermagem e a enveredar por ir
trabalhar para o Porto, voltou à empresa do pai como secretária e tradutora,
casou-se, teve dois filhos lindos, diz ela, divorciou-se e desapareceu do radar.
Por esse motivo só de tempos a tempos trocávamos impressões ou um cartão de
boas festas.
Isso
também aconteceu com muitas amigas e amigos meus Baião, bem, a uns ou nunca
mais os vi ou nunca mais soube nada deles, ou só de quando em quando nos vemos,
a vida separa-nos, trama-nos, é dos livros, acontece-nos a todos, e sim esse Verão
quente foi mesmo quente, não me admiro que tenha passado por isso, por muito
menos houve gente a passar por coisas piores, é a vida, foi, mas por essa
altura todos os ânimos andavam exaltados em demasia, isso é verdade.
A bem
dizer só a doença da Luisinha a traria de modo mais frequente até nós Patrícia,
efectiva e tristemente há males que veem por bem costuma o povo dizer, já eu
quanto a isso calo-me para não errar, nada digo, não digo nada para não sair asneirada.
- Então
a pintura na capa do livro... Disse a Patrícia.
Sim,
a Fátima pinta ou faz que pinta e essa capa resultou dum quadro em acrílico que
a Fátima oferecera à Luisinha, depois disso soubemos tinha sido operada à
coluna devido à tal queda dada há quase cinquenta anos e as relações reataram-se
com mais afinco. Se quisesse ser inconveniente diria ter-se tratado de um surto
súbito de solidariedade na desgraça, a Luisinha também tivera a sua recaída por
essa época, causada pelo cancro da mama e que na altura julgávamos ultrapassado…
- Pois,
pois, recaída tiveste tu pois houve quem te tivesse visto a falhares o degrau
do Rato Bicho e a ser amparado pelo senhor padre Ramalho…
Uma
jóia de homem ! Almoçou connosco, almoçou na nossa mesa, quanto ao meu estado
de saúde nesse dia alegarei em minha defesa ter passado a noite anterior acordado
e agitado, não dormira, e apesar de não ter dormido não caí, tive a sensação a
emoção, estremeci, estava cansado, mas também estava muito excitado e muito
feliz, não chegou a ser uma queda, não passou de um susto…
Coisas da vida ...
Coisas da vida ...
* https://www.facebook.com/Restaurante-O-Rato-Bicho-1054631951232728/
** Linköping - https://www.google.com/search?q=LINK%C3%96PING+su%C3%A9cia&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjLtZW5utrjAhX2D2MBHR-CBxEQ_AUIESgB&biw=1024&bih=625