Todos estranharam. Tão novo, nem sequer fumava. Porém
não amava as coisas como dantes. Em vez disso já só a imagem delas o bastava.
Há muito que se quedara. Talvez “quebrara” seja o termo exacto.
Concluíra que não tinha amigos, ou antes, não
acreditava ter amigos. Não cria mesmo na amizade.
– “Tudo falsidades” , dizia.
Encarar a mulher e os filhos há muito se lhe igualara
a pesado fardo. Estava vencido. Assim se sentia, assim entendia que o viam.
Quisera mesmo morrer e não achara como, nem como nem coragem para o fazer.
Mais um sinal que eu notara na lista das suas intuídas
imensas fraquezas, debilidades. Incapacidades que agora se perfilavam umas
atrás das outras preenchendo-lhe de pesadelos o pensamento e o viver, cada vez
mais insuportável para ele.
Fechava-se portas dentro, não tolerava ninguém. Saía
à rua numa necessidade interior de estar com os outros, cuja presença não
aguentava, volvendo a casa e aos seus pensamentos inconfessáveis de
inutilidade, os mesmos que o não deixavam dormir, nem estar acordado.
A dignidade em cacos.
Confessara-me há alguns anos que, quando casara, se
desfizera por tuta-e-meia de uma courela deixada em herança pelos pais e rumara
à cidade.
- A pior estupidez da sua vida, dissera-me.
Por vaidade abandonara o campo e uma tão desvirtuada,
creio que empregara a expressão desvalorizada vida rural e a pobreza a ela
associada, esperançando a cidade.
- Uma parvoíce, admitia agora.
– “Ao menos não estaríamos neste estado. Umas couves,
umas hortaliças, umas galinhas e uns coelhos, ou mesmo uns porquitos e uns
borreguitos. Pelo menos não morreríamos à fome”.
Sempre tinha sido homem honesto. Agora achava ter
sido essa a causa da sua perdição. Dei-lhe o desconto, o período que atravessava
não o deixava ver claro. Até o 25 de Abril abjurava. Não podia estar no seu
perfeito juízo. Assim pensei nessa altura.
Era trabalhador. Fora coveiro num cemitério, lavador
de carros numa estação de serviço, distribuidor de gás, bombeiro, pintor de
casas nas horas livres para compor os fins de meses.
Nos últimos dos seus bons anos servira numa grande
serralharia que houve em Évora.
Depois disso chamaram-lhe velho, e à medida que o
subsídio de desemprego minguava, até desaparecer, foi-se chamando a si mesmo de
inútil, incapaz, traste.
Poucos mais anos teria que cinquenta, mas a barba,
sempre por fazer, denunciando os cuidados ou a paciência que já não tinha para
consigo, faziam-no mais velho aos olhos de todos. Chamaram-lhe velho, e daí até
se assumir como tal foi um passo.
Conheci-o quando das primeiras desavenças que
irromperam em sua casa. Casa onde não há pão…
Sei que muitas vezes não comia, e sempre acreditei de
mim para mim que fosse por não ter fome. Uma ou outra vez dei-lhe biscates a
fazer, a sofreguidão com que os almoços e lanches desapareciam da sua frente
denunciavam-no.
Procurei ajudá-lo a solucionar o problema e muitas
promessas ouvi. Ainda hoje por cumprir. Agora já não vale a pena.
Incapaz de encarar os filhos, ou estes de o encararem
a ele, trocavam-se uns aos outros as horas de encontro, ao almoço, ao jantar.
A mulher sempre em pranto, a vida em desencanto, os filhos
exigindo, o pecúlio não bastando, o drama evoluindo.
Maria Genoveva, a mulher, trabalhara de doméstica
desde que se lembrava numa casa de família classe média. Classe média que foi
encolhendo, encolhendo, e quando ficou abaixo da mediania descobriu que não
podia dar-se ao luxo de ter uma Maria.
A pobreza tem sempre as suas fundações, mesmo sem razões.
Assim se acabaram as sopas da patroa, como há muito se haviam acabado as sopas
nos quartéis. Nunca mais os filhos teriam de engolir o orgulho ao vestir as
roupas sobradas aos meninos.
A vida de Manuel recuando. Não era homem de beber ou
de outros vícios. Talvez melhor se os tivesse, ao menos poderia descarregar as
frustrações. Amuava, interiorizava, teorizava, e não compreendia. Os filhos a
ficarem homens. Sem uma profissão, um emprego, uma esperança de trabalho.
Ao menos um futuro, Manuel não pedia mais.
– “Ao menos não estaríamos neste estado. Pelo menos
não morreríamos à fome, umas galinhas, uns coelhos. Talvez tivesse dado um bom
agricultor ”.
Desenraizado, Manuel sufocava sob o peso das
arbitrariedades da vida. Não tinha escolha, aliás nunca tivera.
Por mero acaso escanhoara-se naquele dia. Quem sabe
se um pressentimento de que os seus sofrimentos teriam finalmente fim.
Os médicos estranharam. Todos eles estranharam. Tão
novo, nem sequer fumava. Manuel morreu no passado dia 21, dia em que começaria
a sua quinquagésima quarta primavera.
Foi encontrado fulminado por um enfarte junto às
ruínas da antiga serralharia onde tivera sido feliz durante tantos anos.
Ninguém sabe explicar o que por ali andaria fazendo,
tão longe de casa, tão longe de todos, tão longe de tudo.
Paz à sua alma.
* Publicado por Maria Luísa Baião in Diário do Sul, Kota De
Mulher, Évora, em finais de 2003 ou princípios de 2004.