Surpreendi-me a mim próprio porque naquela manhã
luminosa os campos e as flores ficaram esperando o meu olhar para que, num
repente abrissem, e foi quando abandonei de todo as conversas dos velhos e me
concentrei nesse mister que os rebentos finalmente desabrocharam e sacudiram as
amarras da vontade que neles oprimida estava.
Olhei ao longe, até Elvas, e na esteira do meu olhar
as giesteiras agitaram-se num tremor estrepitoso e abriram em uníssono, pelo
que posso garantir-vos que de todas as flores campestres é a giesta aquela cuja
melodia mais se destaca na manta de retalhos colorida dos campos que se
estendem até Badajoz e de Monsaraz se avistam.
Temia a canícula das tardes quentes em que bastava o restolhar
duma cobra nas ervas secas para me pôr os sentidos em alerta, por isso
aproveitava as manhãs em que elas pasmadas se quedavam enroladas sob as fragas,
aquecendo sangue que lhes desse alma para, como eu, cabriolarem, pois cavalgava
os muretes da entrada da vila e entretinha-me ouvindo ociosos sem jorna, apostando
os sentidos no Alquerque* que a todos arrebanhava em intermináveis gestas.
Espojado nas lajes frescas do murete manuseava as pedrinhas,* aliviava o elástico dos suspensórios, o ouvido
pendendo-me para as histórias marteladas no canto onde os homens mijavam e de
mão sobre o sobrolho punham a vista nos fumos que se soltavam dos fornos das
olarias da Aldeia do Mato, numa tentativa vã de catalogarem pelas suas formas e
cores a cerâmica que vomitavam, porque do “Santiago”, que só pratos cozia,
jamais poderiam ser aqueles novelos em catadupa, quando muito do “Beijinho”,
esse sim mestre dos melhores potes e louças dali à raia e até Espanha, era
sabido de todos.
Pasmava ouvi-los dissertando sobre o fumo branco e o fumo negro das cerâmicas e nem o seu cantado linguajar abafava o silêncio rumorejante das águas da ribeira que se avistavam daqui, faiscando, e cujo morse eu traduzia manipulando as pedrinhas* ao sabor desses segredos em código emanados das violetas bravas que lhe salpicavam as margens.
Pasmava ouvi-los dissertando sobre o fumo branco e o fumo negro das cerâmicas e nem o seu cantado linguajar abafava o silêncio rumorejante das águas da ribeira que se avistavam daqui, faiscando, e cujo morse eu traduzia manipulando as pedrinhas* ao sabor desses segredos em código emanados das violetas bravas que lhe salpicavam as margens.
Foi somente quando o rosnar do motor da camioneta da
tarde espumando na ladeira se fez ouvir que os homens se benzeram e largaram
fugindo de chapéu na mão, trancando as portas de casa, porque um motor era um
ser estranho e lembrava os idos de antanho, e certa manhã de cerrado nevoeiro
em que um igual ruído, trazido por um biplano, alarmara todo o termo por
tonitruante impacto e ígneo incêndio de cujos destroços, desabados junto à
torre de menagem do castelo só um cadáver carbonizado restou, o do desditoso
aviador, pela sina ludibriado, e que Humberto se chamara.
Tal como Humberto deram de nome ao meu padrinho e
todos esperaram na família que cedo aprendesse a voar e lhe nascessem asas para
que se sumisse daquele inferno para fora, como um pássaro, como o perfume duma
giesta ou de uma violeta brava, ou como um rio, porque a uns a vila abafava os
destinos num novelo e nem as mãos delicadas das mulheres lhes soltavam as
pontas, e a outros os engalfinhava uma serpente camuflada nas esquinas do
porvir e os esventrava para que jamais fossem além das muralhas da sua própria
coragem ou das ameias do seu ímpeto, e no fosso, por trás de onde elas mais
altas eram, podiam ver-se ainda por nem terem mais de cem anos, os esqueletos
desossados dos últimos mártires cuja carne acicatara o apetite dos milhafres.
Por isso eu não vi, juro que não vi nunca vi, as
mulheres à noite, escondendo nas trevas os seus trajes negros, ajoelhando num
mar sobre as lajes frias do largo, orando compenetradas e erguendo as mãos a
Nossa Senhora da Lagoa num painel de azulejos no frontão da igreja do mesmo
nome, venerada há mais de quinhentos anos, pisando e repisando a víbora que se
alimentava dos destinos das gentes e cujas gargalhadas se ouviam nas noites
luciferinas de tempestade.
Mau grado o fadário da vila a minha vida decorria
toda ela sob o signo da leveza e, uma vez, depois de ouvir a avó Inácia :
- Raio do gaiato que nem pára em casa, parece ter
asas !
Pelo que nem será de admirar que tenha acautelado se seriam
asas que me brotariam das costas, tal a coceira por vezes ali sentida, ou que
já no liceu exultasse sempre que o professor de atletismo :
- Parece que tem asas nos pés o raio do miúdo !
Nem foi preciso mais para acentuar a minha queda pelos
clássicos, pelos mitos de Hermes e Pégaso, tudo factos que, contudo, não saciaram
a minha ânsia de realização pessoal, cousa que até hoje persigo.
Depois de cinco divórcios de sucesso ressoam todavia em minha mente os gritos de cinco esposas indolentes, que em sonhos inda hoje
me convidam a assentar os pés na terra, pelo que me interrogo em introspecção pessoalíssima
se não seria já tempo de se terem concretizado todas as esperanças depositadas
neste nome que carrego.
Porque ou o milagre se dá ou o paizinho e muita
namorada que servi tinham razão e de um tolo de cabeça no ar não passarei
jamais …
* Alquerque – velho jogo árabe cuja
origem ninguém na vila conhecia. Uma espécie de “jogo do galo” em que cada
contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras.