Pintura de Lucia Parra
O clamor da horda ululante que em décadas precedeu as
claques do futebol fazia tremer as fundações do velho baluarte que é Monsaraz, e por momentos
chegava a parecer-me que as próprias pedras, e até as ameias, se sacudiam numa
dança frenética, tal e qual anos mais tarde veria num documentário sobre os
núcleos atómicos, em que o colorido da mole humana que assim se agitava fazia
lembrar os neutrões, electrões, positrões e tutti quanti dançam
em redor.
Nessa noite nem conseguira dormir. Muito antes do
encher da praça já a mui antiga e medieval vila de Monsaraz vivia num transe excitante. A orquestra da artística animava a festa e a cada
pasodoble uma enchente de coragem inundava a arena numa maré-cheia, cujo refluxo
se sincronizava com a entrada de quaisquer touros escassos momentos depois de
iniciada a corrida.
Maré e refluxo comandavam a multidão que, ora sentada
ora em pé, aplaudia ou vaiava os pouco confiantes mas intrépidos aventureiros
que contra as feras acometiam. Eu ria gritava chorava emocionado ou calava-me
assustado e apesar das cenas bem na minha frente desenhadas, gelados, pirolitos, rebuçados, chupa chupas e pevides eram, no calor
então vivido, e apesar da preferência, muitas vezes por mim esquecidos.
O estalar dos foguetes, a orquestra e a festa, a tudo
se sobrepunham num êxtase sacralizado que ungia a populaça enraivecida num
ritual anual. Julgávamos desse modo expurgar de nós os demónios de um ano inteiro, senão
de uma vida, sublimando velhas e incompreensíveis pulsões que cada um arrastava, mas que se chamado negaria do primeiro ao último cantar do mesmo galo que em julgamento expôs S.
Pedro.
Assim me fazia
eu homem, descarregando, sátiro, a raiva das minhas impossibilidades vendo os
outros, que um dia eu seria, submetendo-se às mais infames vilanias e, um após
outro, os animais corridos numa inenarrável litania que os clamores de
trombones trombetas e clarins açulavam para edificação do bicho homem, que eu
seria quando tomasse o lugar dos que agora davam corpo ao rito.
No fluxo e refluxo desse desejo e devir me inscrevia
eu, aplaudindo cavaleiros e bandarilheiros, mas igualmente exaltando-me a cada
investida das feras sempre na esperança do supremo sacrifício, da besta ou do
homem, era-me indiferente, conquanto me saciasse os instintos que descobria
em mim com mais surpresa que agrado, que sentia estarem algures e escondidos,
mas serem meus, tanto mais que nas brincas com outros rapazes, e em especial
com as primas, era eu quem punha e dispunha, era já eu treinando e tomando o
lugar do macho, do homem, do ser implacável que cada um de nós alimenta com
maior ou menor fervor e resultado, ou proveito.
Sentado na fiada de lugares à minha frente não raro o
Julinho aguentava-me os pontapés e os murros, que desferidos nos momentos de
maior fricion e aficion eu distribuía, profícuo, e na razão directa da
velocidade a que no meu intimo sentia capacitar-me para as mais esdrúxulas e
coloridas tarefas, por mais hediondas que fossem as cores de que pudessem
travestir-se.
Não muito mais tarde haveria de experimentar-me e
medir-me, apanhando cobras na ribeira e afogando sem complacência ninhadas de
gatinhos acabados de nascer. Ou, desafiando incompreensões que só os anos
esclareceram, pegando a Rosário pelos cabelos, ou torcendo-lhe um braço até que
ante mim ajoelhasse e rezasse, se submetesse ao castigo, para somente quando a visse chorar ou
engasgar-se e babar-se lhe conceder a complacência do meu perdão, o favor da
minha amizade, a honra da minha atenção.
Um homem não nasce feito, constrói-se, constroem-no,
construo-me, construí-me, defenderei : i’m a self made man !
De um modo um tanto ou quanto desregrado se iam
inculcando em mim as regras, latinas, ibéricas, marialvas, machistas,
preponderantes na zona raiana onde nasci, uso moda e fuso de afirmação do ser
que em mim se construía, colonizado não pela razão, antes pela emoção e soberba
numa mistura aleatória, perigosa, e simultaneamente explosiva.
Desta maneira enviesada eu matava o homem bom ou o
bom selvagem inato em mim, não sem sofrimento, não sem conhecimento, daí o
estremecer cada vez que na arena o lidador dava a estocada final iludida na
muleta e enterrava até ao punho a espada, ou os capas as bandarilhas e os
cavaleiros os ferros.
O delírio final vivia-o eu a dois passos de mim, ali
na beira da arena, ante os meus olhos, o martírio do touro, enredado nas cordas
e incapaz de fugir ao destino, totalmente imobilizado e sacrificado ao espigão
cravado na nuca, entre os chifres, o sangue espirrando, jorrando, e a cada urro
um estremeção meu, o homem bom tentando erguer-se, a minha soberba abafando-o,
um sorriso esforçado, um esgar, uma náusea, um vómito, mas venci, recompus-me e
abalei correndo à travessa do matadouro ver esquartejar a fera e confesso-vos,
da última vez que o fiz estremeci, delirei, vibrei, um orgasmo tomou-me, e foi
mesmo a última vez, nunca mais me permiti ver a morte do touro na arena porque
às primeiras mulheres que fiz minhas as tomei como um matador numa praça e
depois da estocada dada, do ferro cravado, tomei consciência do perigo em mim e
retirei-me em recolhimento, confuso, perdendo-me em olhares sem fim, na
família, na mamã, numa pulsão indómita de matar o pai por honra e amor à mãezinha.
Foi-me turbulenta a eclosão da barba e da
adolescência, prenhe de dúvidas, parca de certezas. Curou-me a légua a que
distava dali a ribeira da Guadiana, a caça com armadilhas, os ninhos, o cansaço
do percurso tantas vezes palmilhado, mas também os novos horizontes, a oração,
o seminário, o padre Geraldes, que tão bem soube guiar-me na
manifesta falta de vocação em que soçobrei.
Assim aprendi a esperar que a razão se sobrepusesse à
emoção, fui um feixe de músculos ao qual dessem tempo após distender-se para
cair na realidade, na verdade, na razão que deveria guiar a humanidade.
Fiz-me a mim mesmo, a escopro e martelo, com dor.
Não teria sido conforme relatei caso não tivesses
nascido ali, frente à igreja de Nossa senhora da Lagoa,* naquela linda casa
branca de esquina…
Foto da casa onde nasci,* no largo da vila de Monsaraz, da autoria de António Caeiro, clike se desejar ampliar.
* ver esta http://mentcapto.blogspot.pt/2014/03/179-nossa-senhora-da-lagoa.html
Pintura de Sónia Barreto - Évora 2017