terça-feira, 23 de junho de 2015

249 - PENDURADO D’A TRAVE ................................

                                          
                 - Conheceste-o ?

Infelizmente não o conheci bem, nem bem nem tempo suficiente.

- O que andavas a fazer em 74 quando ele morreu ?

Em 73 ou já em 74 lembro-me de ter visitado a galeria A Trave, nem recordo bem quem além dele lá estava, só lembro a galeria no geral, eu era ainda muito novo, aliás eu era um tipo ainda demasiado novo para dar excessiva atenção aos pormenores que não me suscitassem ou prendessem a atenção. Outras memórias ficaram até hoje, que registei como um impacto no meu cérebro, à guisa de flashes que te irei passando como se de diapositivos se tratasse:

Uma mesa corrida central, comprida, que de início me levara a julgar ser uma bancada de carpinteiro e, sobre ela, inimaginável desarrumo e profusão, de godés, frascos, pincéis, bisnagas, panos sujíssimos, paletes improvisadas, tintas ressequidas, endurecidas, cerdas duras, tinta pingada, escorrida e salpicada por todo o lado, os copos sujos, o vidro baço conspurcado de magenta, restos de comida. Fosse hoje e diria que tinham sobrado restos de várias pizas.

O tecto todo branco, tabuas brancas, barrotes e traves brancas, de um branco sujo, donde pendiam ainda serpentinas, balões esvaziados, e vários holofotes forrados a celofane vermelho, azul e verde. Num canto afastado uma tarimba nojenta e nela sentado um jovem de barbas, jaqueta moderna de ganga, azul e cabelos compridos. Passados dois ou três anos dei por mim a achar o meu irmão mais novo parecidíssimo com ele. Teria dormido ali ? Desgrenhado, de olheiras…

Tudo eu revejo ainda “fotograma a fotograma”, os cavaletes, um casaco e um blusão atirados ao calhas para cima de um sofá, as gargalhadas dos homens, mas quem esses homens ? O mais novo, o tal da farta cabeleira desgrenhada riu como um desalmado, levantou-se, pegou num tubo porta desenhos em cartão que mais pareci uma bazuca e:

- Adeus maninho, adeus Raminhos que me vou embora, que me vou embora para não mais voltar.

E atirando com a bazuca à tiracolo preparava-se para abalar, assobiando, quando o maninho o abraçou, o ergueu nos ares, quase derribando uma pipa de pratos pintados pendentes de pregos na parede, nalguns, pássaros do poeta começados, noutros a meio ou por começar, até o largar pendurado duma trave, esperneando e reclamando ter horas para estar no café do Rosa, onde combinara encontrar-se com o José Cachatra a fim de aproveitar a boleia do Amado da Urbana (a quem muita gente, confundida, chamava senhor Urbano).

O maninho que assim o mimava era nem mais nem menos o mestre Palolo, técnico de serralharia mecânica na Somefe Ldª, empresa onde eu anos atrás debutara no mundo do trabalho como paquete e onde durante seis meses aprendera o abc do mister, éramos portanto colegas, ainda que isso não me ajude a lembrar porque e por quem eu ali fora levado. No chão ficara um rasto de garrafas vazias, por pouco não tropeçaram, quase se estatelando, num molhe de varas de perfis para molduras. Foi a vez dos outros rirem a bandeiras despregadas.

O ambiente tinha algo de surreal, as paredes preenchidas de quadros, flores, bonecos grandes, arlequins, palhaços, desenhos, esquiços, aguarelas, ou, penduradas, composições aleatórias, umas acabadas outras a meio, grandes vasos com flores, mirradas, mortas, pregos como bengaleiros, e no centro do salão quatro ou cinco cavaletes de diversos tamanhos, trabalhos em curso, um Templo, a Sé, as Portas de Moura, um grupo de cantadores alentejanos, um enorme pássaro de poeta aparentemente acabado, nisto uma estridente buzinadela:

- É o Urbano, deve ser ele que já nos estranha a demora.

Mas onde vais tu mermão, com tanta pressa, logo tu que parece teres nascido com todo o vagar do mundo e que amas esta cidade mais que a tua própria mãe ?

- Estás enganado maninho, só levo saudades desta rua das Lousadas, por ter aqui deixado o coração, de resto já sabes que penso como Eça, ou Pessoa, esta cidade fede a "provincianismo", de gente incapaz de reflectir, incapaz de criticar o que vê, lê ou lhe dizem, quando digo criticar quero dizer analisar, pensar, é gente desconfiada, descrente, má, individualista, sem ideias próprias, ignorante, porém capaz de perfilhar ideias de outrem sem sequer as mastigar, sem as remoer, é uma cidade de atrasados mentais que me sufoca, esta falta de desenvolvimento civilizacional, esta ausência de ideias abafa-me, asfixia-me, vou para Paris, Bruxelas, Berlim, vou conhecer mundo maninho.

Oh ! Mermão ! Mas onde vais tu ao periquito mermão ? Tu que andas sempre mais teso que um carapau ?

- A Cambra pagou-me esta semana o Dragão que lhe fiz para as piscinas, tenho narda para ir até à Cochinchina maninho, não voltarei acredita.

Dragão ? Estás a delirar mermão ? Que conversa é essa ?

- Sim dragão, aquela escultura para os miúdos brincarem, nas piscinas, junto ao tanque infantil.

E arrancou, lesto, não sem que antes tivesse atirado, à laia de provocação, uma piada e tal encontrão ao Raminhos que o ia atirando para dentro da mal enjorcada chaminé, aliás como estava tudo o resto.

- E tu que fazes aqui salta-pocinhas ? Não tinhas arranjado um salão novo na rua do Alfeirão ó romeu ?

Evidentemente referia-se ao Raminhos e a uma garagem que o “salta-pocinhas”, assim lhe chamavam os amigos íntimos por andar sempre atarefado num passo miúdo e saltitante, uma garagem mais próxima da loja e situada em frente do portão de saída dos rapazes, a entrada principal da Escola de Stª Clara era destinada unicamente às raparigas.

E lá abalou, correndo, enfiando-se logo no Sinca novo do Amado que, para não perder a garantia lhe fazia as revisões em Lisboa, desta levava com ele o Cachatra, a dar as últimas, e que o senhor Amado forçava a ir ao médico, talvez para não perder o negócio da venda dos seus quadros na loja de artesanato que possuía em plena Praça do Geraldo, a URBANA, daí a origem da confusão que amiúde faziam quanto ao seu nome.

Mas quem era afinal este senhor Amado ?

O senhor Urbano, por vezes assim erradamente conhecido, era homem de uma extrema urbanidade e decoro, o que não obstara a que, seis meses atrás, tivesse deixado o meu paizinho em polvorosa, de dignidade ofendida e em negação, ao ter-lhe manifestado o desejo de me inscrever no 1º ano liceal, ser meu encarregado de educação e passar a custear-me os estudos. Porquê tanta generosidade ? Perguntar-me-ão V. Exªs., e com razão. Por mor do milagre do amor, retorquir-vos – ei.

O senhor Amado, senhor muito urbano, tornara-se amásio de enfermeira parteira moradora à Travessa dos Mascarenhas, a quem tinha montado casa, consultório e todas as particularidades e peculiaridades a que a posse de uma senhora de tais predicados nunca deixa de obrigar…

Ora sucede que na verdade o dito e urbano senhor apenas pretendera oficializar ou institucionalizar uma situação de facto, que na prática já existia, pois me custeava os estudos por via dessa minha tia que se fizera enfermeira. Portanto podeis facilmente deduzir que a vida deste amigo que aqui se vos confessa poderia ter tomado outro rumo, completamente diferente e, tivesse eu frequentado o liceu e não o ensino industrial e comercial, como veio a acontecer, teria pelo menos diferente escol de amigos e conhecidos coisa extremamente útil nos dias de hoje, ao invés dos inúteis que me rodeiam. Mas a vida é assim, e nem perdi tudo pois continuei fazendo, quando calhava, recados e mandados ao senhor Urbano da URBANA e ganhando as respectivas gorjetas, pelo menos até ter crescido e a mama se ter acabado claro, que o homem tinha mulher e filhos, honra e brio a manter.

- Você não pinta mal António, pena não ser coisa que se venda na minha loja, os camones querem é material very tipical entende ? Umas ceifeiras, uns cantadores, umas cenas campestres, bucólicas, aqui o seu amigo Cachatra ajeita-se bem, é sempre a facturar !

Sim sim, vou fazendo uns risquinhos, mas é como diz, nesta cidade não me safo, além de ser pequena, andamos sempre a encalhar uns nos outros, nos mesmos.

- Constou-me que vai dar o salto, é verdade ? Se é faz bem…

E ouvido isto o António só não deu um pulo por ir entalado entre mantas de Reguengos, capotes e peliças alentejanas em pele de borrego, porém:

Mas… ! Como sabe ! Quem lho bufou ? Isso é coisa que nem ás paredes confesso ! Estou tramado !

- Não se assuste, foi confidência do seu amigo Cachatra ao solicitar-me boleia para si, fez bem, de contrário não me teria convencido.

Sim, na verdade sinto-me apertado nesta cidade, em especial entre as gentes ligadas à cultura e que fui descobrindo serem, na generalidade,  quem menos cultura tem, já aguentei choques que cheguem, ando sempre a encalhar nos mesmos para onde quer que me vire, por estas bandas o ambiente está soturno, de cortar à faca, especialmente depois desse tal Gonçalves Rapazote**** ter ido a ministro, agora até as paredes têm ouvidos…  

- Meu caro António para viver aqui tem que se saber viver, aprenda comigo que não viverei sempre, nesta cidade as gentes têm medo e inveja de quem tenha alguma inteligência ou alguma cultura, por isso com os que não tenham nem uma coisa ou outra, ou até as duas, eu faço-me ignorante, por vezes até parvo, e com os que são inteligentes e cultos faço-me mais parvo ainda, mais ignorante, mais estúpido, é vê-los felizes, tenho um amigo em cada eborense, não podemos ferir susceptibilidades António, e você ainda é demasiado jovem…

Era gaiato eu, mas testemunhara imensas vezes a vergonha que constituíam para o café as tentativas do Cachatra de nele promover a venda dos seus quadros, e quanto à sua demência, poucos lhe conheceriam os problemas de degenerescência, era inúmeras vezes confundida com alcoolismo. Não raramente cada compra implicava a galhofa e chiste do pintor que contudo se sujeitava, garantindo ao menos a sobrevivência, já que a dignidade lhe era recusada. Ainda assim a venda de obras na URBANA providenciavam-lhe melhadura certa e regular, sem o submeterem a desconsideração ou achincalhamento.

- Não se precipite António, isto há-de mudar, se para pior ou para melhor não lhe afianço, mas vai mudar, a tentativa de 16 do mês passado** não foi um acaso, estou bem informado e garanto-lhe que mudará em breve. O poder quando muito concentrado acaba por explodir, quando muito disperso, por implodir, é aquela situação em que são demais a mandar, onde todos mandam mas ninguém obedece, isto do orgulhosamente sós *** foi chão que já deu uvas, está prestes a era do venha a nós o vosso reino, para mim deverá ser bom, decerto venderei mais, tempos virão e todo o pequeno burguês quererá parecer tu cá tu lá com a “arte e a cultura”. António, queira Deus que o seu amigo se aguente, tenho algum receio que ele tenha que ficar internado sabe ?

- Não fico, nem sei se isto algum dia mudará, o país resume-se a fado, futebol, Fátima e folclore, (o folclore dava para tudo, como agora dá o cante alentejano) não há uma política descentralizada para a cultura, ainda se vive no tempo do António Ferro*, que com Duarte Pacheco* completam a trilogia salazarista que governa este país, vou, já me decidi há muito, esta cidade tresanda, cheira a bafio, a vulgaridade e ignorância, além de poucos abatemo-nos à mínima inveja, à falta de melhor até o assobiar é invejado.

Nem decorrido um mês o turbilhão do 25 de Abril engolir-nos-ia a todos, António desapareceu por completo, soube pelos jornais do sucesso de exposições suas em Madrid, Paris, Bruxelas, Nova Iorque, Salamanca, Bolonha, Roma, Cáceres, S. Paulo, Iowa EUA, para citar somente as estrangeiras. José Cachatra ficara mesmo internado, o seu estado anímico, e anémico, era mais grave que o suposto, viria a falecer a meia dúzia de dias da data que nos engoliu. O urbano senhor Amado, foi de tal modo prejudicado pela instabilidade do PREC que ficou sem turistas (as aquisições dos nacionais sempre tinham sido residuais) e foi obrigado a fechar a URBANA, grande loja que distava poucos passos do Arcada, e que assim se manteve largos anos até terem feito dela um salão de jogos, entretanto falido e encerrado.

Eu, influenciado, ainda experimentei uma incursão pela pintura, até que alguém em quem muito confio e muito considero, olhando para os meus quadros proclamou cheio de empatia e sinceridade:

- Cagas melhor do que pintas.

Foi quanto bastou para que, mau grado tanto prémio nos jogos florais e noutras exposições, passasse a dedicar-me às letras e à poesia, mas essa é outra história que um dia aqui vos contarei.

Quanto ao urbano senhor Urbano, a quem muita consideração devo, morreu no seio da sagrada e amada família Amado.

Não me restam dúvidas de que acertara em pleno, o poder explodiu primeiro e implodiu quarenta anos depois, ou não estivéssemos por mor de tanta democracia e tanto poder democrático de novo agarrados aos tomates.



Notas : A primeira foto apresentada é o “Dragão”, escultura colocada junto às piscinas infantis e obra de António Palolo.

*  A. Ferro, responsável pela politica cultural , D. Pacheco, ministro das Obras Públicas e Comunicações de Salazar.


 ** tentativa de golpe das “Caldas da Rainha” a 16 de Março e que antecedeu o 25 de Abril.

*** Frase célebre atribuída a Salazar.



                                            Pintura de António Palolo
                                Pássaro de Poeta, pintura de Paulino Ramos
                                           Meu irmão Manuel Baião
                                 Portas de Moura, pintura de Paulino Ramos
                                 Cidade de Évora, pintura de Paulino Ramos
                                   Sé catedral, pintura de Paulino Ramos
                                Templo de Diana, pintura de Paulino Ramos

                                            Pintura de António Palolo
                                           Pintura de António Palolo
                                             Pintura de António Palolo
cantadores de cante em Pintura de José Cachatra
 


                                    Arlequim, pintura de Paulino Ramos

sexta-feira, 19 de junho de 2015

248 - CACHATRA EM S. VICENTE …………………


              Não me recordo já como era aquela canção do J.M. Branco, ou do Fausto... louco ou marinheiro... lólarélóli... Mas procurá-la-ei e colocarei aqui o link, fica jurado. Assim confuso me senti ante a restrita mas rica colecção de pinturas de José Cachatra (1933-1974), o esquecido, enlouquecido, extrovertido, exuberante, doutor, aviador e pintor José Carlos Cachatra,  de Borba mas eborense claro, o indizível, o maldito, o inexplicável, o inclassificável e, por acréscimo ou silenciamento, o inominável.

Já por três vezes visitei esta exposição, (no primeiro dia praticamente só metera o pé na porta) e nem me cansei, há pormenores que nos ocupam uma eternidade a entender. E será que os entendi ? No mínimo conjecturei, o que não deixa de ser uma prerrogativa ou intenção de qualquer artista ou autor, julgo.

Mas não nos afastemos do tema, e para rimar, é pena, é pena que as composições não estejam datadas, porque seria mais fácil entender, ou não, se os diferentes períodos da sua tão curta vida se reflectiram, e de que modo, na pintura e nas opções temáticas e cromáticas que fez. Aproveito porém para deixar eu também os meus agradecimentos aos proprietários das obras, e a todos aqueles que de alguma forma intervieram nesta linda exposição.

Uma coisa é certa, o tema Alentejo quase monopoliza as obras expostas, motivos, paisagens, gentes, e, segundo creio o grosso das obras conhecidas. O que sabemos é que o período vivido em Évora foi dos mais produtivos da sua curta mas profícua e atribulada carreira.

Atentei nos pormenores disse-vos há pouco, na firmeza e domínio do pincel, na inclinação progressão e certeza das pinceladas, em cuja direcção não vislumbrei a mínima hesitação. Casos há em que, ao invés de cerda, ou de espátula, se terá servido dos dedos, o que nos aparece nítido numa pequena composição (talvez 30X20cm, nº PP01 nas imagens que vos cedo) em que até a unha parece ter sido utilizada e, aqui sim, embora em pequeníssima dimensão, hipotéticamente com recurso a uma técnica de Pollock, designada "action painting". Sabe-se que Pollock executava obras gigantescas, saltando para o meio das telas e pintando do interior para o exterior, neste aspecto o catálogo da exposição apresenta alguma ligeireza, ao não ter sido dado a verificar ou rever por autoridade na matéria, induzindo em erro o visitante mais incauto ao comparar a técnica de Cachatra ao "dripping" de Pollock, o que constitui erro grosseiro, o "dripping" é uma técnica de gotejamento ou salpico da tela pelo pincel com a qual nenhuma obra nesta exposição de José Cachatra nos autoriza a fazer tal afirmação ou comparação.

Cachatra modernista ? Sim, claro, mas de um modernismo muito próprio, nele se nota abertamente uma aversão à tradição com a adopção clara de novas formas e fórmulas de expressão a que não terá sido alheia a extinta e brevíssima "Orpheu", (surgida em 1915 mas da qual só se publicaram 2 números), revista que subverteu e durante muito tempo influenciou artistas e autores portugueses em cujo círculo o nosso homem, embora arriscando afirmá-lo, decerto privou. 

           Quase sem excepção as suas figuras, os seus motivos, são fruto das novas correntes já firmadas na Europa, e desenvolvidos num traço estilizado mas nunca deixando de ser firme, o que nos prova uma mão segura, um domínio genuíno da arte e da palete, até naqueles quadros em que, não um "sfumato" mas uma indefinida penumbra anima os contornos. Expressão de estado de alma ? Embora artista seguro surgem-nos por vezes composições suas cujo jogo cromático nos apresenta propositadamente tons esbatidos, a par de outras em cores mais vivas, casos em que me atreveria mesmo a falar de cores limitada ou condicionadamente exuberantes, em Cachatra o deslumbramento nunca nos advém das cores, antes das formas, (exemplo de Flores, na minha designação).

Embora vasta, à volta de cinquenta quadros expostos, acredito que a ausência de muitas obras por dispersão ou desconhecimento delas, não nos permitem que, exclusivamente com base nestas, possamos classificar ou catalogar levianamente o autor. As "poucas" obras expostas mostram-nos uma amplitude temática rica, de onde sobressaem grupos que pela sua afinidade estilística ou cromática, ou técnica, se isolam dos demais, ou antes sobressaem dos demais, já que algumas telas não fazem de modo algum jus à personalidade conhecida do pintor, reservada, e, segundo se conhece, de um dramatismo que o conhecimento precoce e interiorizado de uma morte prematura acelerou, pois a doença e a instabilidade, sabemo-lo, foi uma sua constante e cruz.

Cachatra reproduz Picasso (1881-1973) e o cubismo, com os seus Palhaços Músicos, e Les demoiselles d'Avignon e os seus nus, ou Paul Cézanne (1839-1906) e Les Grands Baigneuses, Cachatra foi um modernista, viveu como um modernista, conviveu com modernistas na sua fase Lisboeta, e eu apostaria ter frequentado tertúlias e partilhado a companhia de outros modernistas portugueses hoje muito conhecidos. A sua pintura no-lo diz, que inclusive muito se assemelha à de alguns pintores europeus, especialmentes franceses, que por pouco não foram também seus contemporâneos.

O nosso homem foi estudante de Belas Artes, foi estudante trabalhador, boémio, professor, oficial da Força Aérea, pintor... Cachatra terá sido, a crer nalgumas telas mais exuberantes, um "bon vivant", um "play boy", um homem com a vida cheia, preenchida, até de problemas creio, a sua saída tumultuosa do liceu de Évora, em confronto com o reitor (homem do regime), faz com que o considere um inadaptado à bonomia e pasmaceira do Alentejo, mais concretamente de Évora, cidade onde, parafraseando salvo erro Vergílio Ferreira, quem tivesse menos de quatrocentos porcos ou mais que a quarta classe não seria gente fiável nem para levar a sério. Sabemos que Vergílio Ferreira deu por essa época aulas no mesmo liceu, mas penso que Cachatra terá leccionado entre 63 e 65, Vergílio Ferreira andara por aqui somente meia dúzia de anos antes, entre 45 e 48. Teria sido engraçada a sua simultaneidade e convívio, que temas lhes teriam açambarcado as conversas e a camaradagem ?

Foi por esses anos que Cachatra recusou ser reintegrado como tenente na Força Aérea, coarctando a continuidade ou curso de uma carreira militar que interrompera, porquê ? Inconformismo e recusa do regime Salazarista ? A guerra ultramarina irrompera feroz em 61...

Não esqueçamos que Humberto Delgado, general nomeado em 59 Director-Geral da Aeronáutica, posteriormente oposicionista, fora perseguido, em 59 exilado, e posteriormente assassinado a 13 de Fevereiro desse ano de 65. A atitude de Cachatra teria sido de insurgência ? Subversão ? Recordemos a veia "modernista" e por acréscimo "futurista" de José Cachatra, e os aviões, os quais eram nesse período histórico as máquinas futuristas por excelência, que o terá levado a abandoná-las ?  Igualmente por esses anos Henrique Galvão, mais precisamente em 1961, organizara e comandara o assalto ao paquete Santa Maria, numa tentativa de provocar uma crise política contra o regime de Salazar e desse modo acicatando os meios oposicionistas, onde decerto Cachatra se moveria, e então efervescentes.

São estes episódios de rebeldia que me autorizam a arriscar afirmar que muito singelamente poderão testemunhá-lo, ou pelo menos assim nos autorizam, a inscreve-lo como um independente, ou portador de um pensamento libertário, ou mais que isso, um independentista formado e empedernido, um sólido ponto referencial de coerência na aparente volatilidade da sua agitada vida.

Seria o antinacionalismo dele, ou nele, que talvez expliquem a sua faceta irreverente, ou anárquica, demolidora de cânones, é sabido que as correntes neo-realistas nasceram daí, da recusa da sobranceria e da exploração ou escravização do homem. O neo-realismo de Cachatra é sobretudo alentejano, pois noutras suas composições não é visível esta corrente, nessas outras está bem vincado o tal impressionismo e proto cubismo órfico que a brochura bem cita, o abstraccionismo e o expressionismo, tudo movimentos, tendências e correntes que nitidamente grassaram igualmente entre outros que lhe foram contemporâneos e com quem terá sido impossível não se ter cruzado em tertúlias e debates.

José Carlos Cachatra dar-me-ia, se o quisesse, pano para mangas, e torna-se tentador um seu estudo sincrónico / diacrónico abrangendo contemporaneidades suas como Almada Negreiros (1893-1970), Júlio Pomar (1926 -…), Júlio Resende (1917-2011), Fausto Sampaio (1893-1956), Dordio Gomes (1890-1976), Manuel Cargaleiro (1927-…), Nadir Afonso (1920-2013), Helena Vieira da Silva (1908-1992), António Charrua (1925-2008), António Palolo (1946-2000) e Paulino Ramos (1923-1999) os dois últimos autodidactas,  e muitos outros, todos eles imbuídos desse espirito de uma época que tudo revolucionara e até já enterrara muitos dos seus principais debutantes e intervenientes, quer a nível europeu quer mundial.

Contudo todavia mas porém a vidinha está má, difícil, e nem me pagam para isso, portanto deixo a oportunidade a quem queira desenvolver sobre o tema quaisquer teses de mestrado ou doutoramento, a gente nova e cheia de garra, acreditem que não brinco.

Infelizmente Cachatra morreu meia dúzia de dias antes do bambúrrio de 25 de Abril de 74, deve ter sido homem de esperanças, felizmente para ele morreu com elas, nós certamente morreremos desiludidos. 

P.S. – Deixo uma nota breve, o desejo que daqui a 50 anos não estejamos de igual forma a tentar adivinhar, ou compor, a vida e percurso de Marcelino Bravo, é eborense, e ainda é vivo).
                                                         PP 01
                                                      FLORES
                                             PALHAÇOS MÚSICOS
                                             




                                                        ÉVORA

terça-feira, 16 de junho de 2015

247 - A PARÓDIA DOS 460 ..........................................

     Eu já esquecera a coisa, mas as circunstâncias encarregaram-se das trazer de volta à minha memória. Ao arrumar e dar uma limpeza na garagem achei uma caixa de velhas cassetes, uma delas, cópia de excertos de várias reportagens que para a RDP fizera em directo e debaixo de fogo no longínquo ano de 2003.

Muitos amigos e colegas, após o meu regresso, se riram comigo e eu com eles, relembrando a panorâmica de 460º que eu afirmara ter a partir da localização onde me encontrava observando e vivendo os acontecimentos. Rimos que nos fartámos, e já bebemos e brindámos à pala disso umas centenas de vezes. O que muita gente não conhece, porque fora desse exclusivo e restrito grupo, são as circunstâncias especiais em que os relatos decorreram, particularmente esse.

Esclareçam-se as coisas, quer esse quer os outros foram feitos em directo, todos eles, o que aliás se perceberá pelo ruído de fundo, não poucas vezes rebentamentos próximos e fogo de retaliação, de artilharia ou de antiaéreas disparando ao acaso contra um inimigo invisível, ao acaso até serem detectadas e pronta e sistematicamente silenciadas. Passados dias coube-me ver a parafernália defensiva montada em camiões que se deslocavam, céleres, após cada disparo, mas convém admitir que essa estratégia foi gizada tarde demais e nada ter adiantado.

A conquista da cidade processara-se com o cronos decorrendo intensamente, e o que era compreensível ou aceitável ou lógico pela manhã poderia estar absurdamente subvertido à tarde, e fazia das tropas defensivas autênticas baratas tontas sucumbindo paulatinamente ao avanço do agente DUM DUM. Algumas eram literalmente pulverizadas.

Adiante-se que quer a minha calma quer a minha coragem eram igualmente aparentes. A calma decorria do facto de ter interiorizado (de bombardeamentos anteriores, aquele não era nem de longe o primeiro) processarem-se os mesmos cirurgicamente, e não ver qual o interesse que poderia haver em atirar o Sheraton abaixo. Tínhamos sido mudados do famoso Palestina para este, cuja construção, mais recente, já obedecia a directrizes de Saddam, (abrigos nas caves), situado em frente e na mesma rua. Acrescia o facto de eu não ter então, ou ainda, conhecimento de danos colaterais sofridos algures, o que também contribuía para a minha calma. A coragem advinha-me de me negar a gorar o prazer aos ouvintes que em directo seguissem as peripécias daquela guerra, da circunstância do edifício abanar mas dificilmente cair, e de me encontrar havia vários dias ensopado de adrenalina.

Por duas ou três vezes apostara comigo mesmo que alvo se seguiria de quantos se encontravam ao alcance da minha visão, e ter ganho essas apostas. Mas a minha recusa decorria também da pouca disposição para descer (e posteriormente ter que subir) quinze andares de escadas, pois a energia passava a maior parte do dia ausente e sem ela colapsavam elevadores e aumentava exponencialmente o perigo de um incêndio em qualquer andar do hotel, onde tudo funcionava à luz das velas.


Foi por essa a razão que, quando os simpáticos encarregados árabes da segurança do hotel me apareceram intimando-me a descer aos abrigos das caves eu me recusara terminantemente a ponto de lhes responder, ou gritar, no fear, no fear, NO FEAR ! numa linguagem que sabia entenderem (que se ouve na gravação). A minha táctica não surtiu contudo efeito, acabariam por levar-me quase à força, não sem que antes acabasse o meu relato, em boa hora, pois que os bombardeamentos se aproximavam a cada minuto e numa linha recta na qual o Sheraton se inseria de modo nítido. 

Evidentemente as minhas calma e coragem eram mais aparentes que outra coisa e encontravam-se até muito longe de dominadas ou controladas por mim, se estar às voltas no carrocel do Alverca já nos inebria, imaginem-me, um pacato alentejano naquela situação. A primeira ameaça residia nos vidros das janelas, se se estilhaçassem seriam arremessados contra mim deixando-me que nem um passador… A segunda ameaça consistia, citava-se por todo o lado, no perigo da forte deslocação de ar provocada pelos rebentamentos estar a arrancar as cabeças do lugar a muita boa gente, mesmo que afastada do epicentro das mesmas, isto para não falar de um impacto directo em que pura e simplesmente reduzisse a pó ou provocasse a derrocada do hotel de 20 ou mais andares.

Confesso ter sentido um fascínio inexplicável em toda aquela situação, o tremer do prédio, que contagiava as minhas pernas com um tremor que se apossou de todo o meu corpo, e o espectáculo de luz e som em que inconscientemente olvidamos quem ou quantos o alimentam, isto é, nele perecem. É um festival de luz cor e som inimitável, um cheiro a pólvora que inebria, e em que uma falsa sensação de segurança prodigiosa nos cola agarra e fixa ao lugar, em que um misterioso encantamento nos torna admiradores inconfessáveis do homem e da técnica ou os extremos a que a aliança deles nos conduziu, como é possível tanta maravilha ?

- Tanta precisão, tanta pontaria
- Tanta capacidade, tanta destruição
- Tanta indiferença, tanta intenção
- Tamanho absurdo, tal maldição ?

Não foi portanto o maravilhoso mistério da criação que me tomou, antes o deslumbramento da perdição e, por momentos fui cúmplice do diabo e exultei, teimei mesmo nele durante o meu relato e foi esse deslumbramento, colado nessa frase, que inda hoje de vez em quando os amigos me soletram aos ouvidos rindo.

- Da janela deste 15º andar do Sheraton desfruto de uma panorâmica de 460º bla bla bla, tudo isto seria cómico se não tivesse sido trágico e, soube-o depois, choque e pavor premeditados numa operação destinada a subjugar um ditador mas também uma nação, um povo.

Claro que fiz prognósticos, quem os não fazia por aquele dias ? A diferença é que os meus foram passados a livro, estão lá, estão plasmados ali para que quem se dignar os avalie, infelizmente não falhei um dos muitos e muitos que formulei.

O ISIS, o porquê do Isis ? Está lá o prognóstico, ele e a resposta. O país, o seu futuro, as várias confissões religiosas, a dificuldade ou impossibilidade da reconstrução, está lá tudo, preto no branco, e temo, sim temo, não que o futuro me desminta mas antes que me ultrapasse, que vá ainda mais longe no absurdo do que alguma vez julguei ser possível, ou até inimaginável.

Irei editar em CD essa famosa e divertida gravação (e que Deus me perdoe), colar-lhe-ei algumas fotos desses momentos traumáticos para aquela que era uma grande e linda cidade, desde já me comprometo  colocar, acrescentar,  o link neste texto, os primeiros contactos com o técnico de som e vídeo estão feitos, vamos esperar que ele goze o S. João, como me prometeu. 

                  https://youtu.be/E1EazTwjCcU



quarta-feira, 10 de junho de 2015

246 - PUDICÍCIA E PUNDONOR ................................

                          

          Mal me reconheceu corou. Não que lhe tivesse alguma vez dado razões para isso. Aliás nem a via vai para mais de vinte anos, muito mais. Éramos ambos muito jovens, à época ela pregava ou leccionava Religião e Moral, ou algo parecido, numa das primeiras escolas onde eu fora colocado e onde desde o primeiro momento chocámos.

Eu, já por esses tempos efusivo e extrovertido ao máximo, ela, introvertida compulsiva e sempre distante, sempre recolhida, (em recolhimento) ainda por cima uma fraca figura, (nem cu tinha), seca de carnes, olhos fundos e mortiços, uma boca sem lábios que nunca sorria, e num pregador o eterno símbolo da cruz, num broche ao peito, e num pendente de fino fio de ouro. Segurando-o eternamente nas mãos magras cujos dedos, finos, esguios, nunca se afadigavam de ir passando as contas ao rosário, um vistoso terço. Certo dia vislumbrei-lhe os brincos sob o cabelo curto, de onde pendiam naturalmente mais cruzes e com os quais brinquei, talvez por isso nunca mais os tivesse voltado a usar. Enfim, obedecia a todos os quesitos para que não se gostasse dela, parecendo até primar por isso.

Fora essas divergências, e nem eram poucas, partilhávamos o mesmo dia de anos, o mês, logo o mesmo signo, o mesmo gosto pela leitura, ela era também a responsável pela biblioteca da escola e eu conservo ainda uma Bíblia luxuosamente encadernada, oferta dela há uns trinta anos, trinta e muitos. Divergíamos solenemente num aspecto crucial, enquanto eu partilhava vera afeição pela astronomia e pela ciência, ela era dada à astrologia, às coisas de Deus e do oculto, persignando-se sempre que alguma coisa ou alguém pudessem, ainda que remotamente, inscrever-se no agrado do maligno.

A passagem do cometa Halley junto à Terra em 9 de Fevereiro de 1986 colocara em alvoroço jornais, revistas e televisões, que não largavam o caso, e foi precisamente nesse ambiente que ela me surpreendeu com a oferta de uma carta astral. Como se fosse hoje relembro-a:

- Acreditas no destino Baião ?

Mas só quando ela abriu a carta, tamanho A4, e vi o meu nome e o dela traçados a par das órbitas de Saturno, Júpiter e Marte entendi todo o alcance da pergunta, fazer-me acreditar no destino traçado na leitura do imponderável mundo da sua carta astrológica, aliás da minha, de mim, eu, que no alinhamento traçado pelos planetas era Marte e colidia inequivocamente com Vénus, cujo choque se inscreveria no abraço inexorável de Saturno, o meu ascendente, ou no de Júpiter, o dela, derivando a dúvida do facto da carta exibir uma valência de alguns dias, enquanto para deslindar se nos braços de Saturno, ou de Júpiter, haveria que efectuar mais cálculos, com projecções a um mês ou talvez mesmo mais.

- Que vamos colidir vamos, disso não me resta a mínima dúvida, se ao abrigo de Saturno ou Júpiter mais tarde o saberemos.

E sorria-me, pela primeira vez vi um sorriso naquele rosto miudinho, diria até que pela primeira vez aqueles olhos deram ares de vida, brilharam.

- Ou choque ou absorção, passa lá por casa uma destas tardes, tenho que descobrir a verdade dos astros, mirar-te bem a palma da mão.

Confesso que banzei, ou embatuquei, ela era a única pessoa com quem mal me dava, com quem chocava aliás propositadamente, nunca evitava antes procurara deliberadamente o confronto com ela, com quem não simpatizava, não engraçava, nem escondia isso a ninguém, muito menos a ela, estaria mesmo a convidar-me para ir a sua casa ?

- Ok ta bem, um dia.

Atirei-lhe a resposta automaticamente, sem a mínima intenção de cumprir, mais para a despachar, para arrumar a questão, para me desenvencilhar do incómodo que o convite me provocara com um mínimo de fair play. Com o tempo resolveria a questão, pensaria como furtar-me elegantemente a um convite desagradável sem parecer mal-educado ou detestável.

Mas não me furtei. Não me perguntem como mas além de não me ter furtado vi-me uma tarde em casa da incontornável astróloga, mão na mão, lendo as linhas na palma. Para os que não sabem a mão dominante (a que usamos para escrever) apresenta a vida presente e passada, enquanto a outra revela a vida futura. Ambas apresentam a linha do coração, a linha da inteligência, a linha da vida, longa ou curta, e a linha do destino, que nem toda a gente tem e que deve preocupar-nos se tal nos acontecer.

Depois é ver medir observar, se essas linhas se encontram muito próximo do polegar, se são mais ou menos curvilíneas, se compridas e profundas ou não, se em forma de semicírculo, se rectilíneas ou quebradas, descontínuas, se se aproximam ou não da borda da palma ou apresentam círculos tangentes ou intercalados numa linha ou em mais do que uma linha. Eu pasmava com tanto pormenor nos quais jamais havia reparado, mas reparei no toque suave da sua mão, na pele macia, perfumada, nas unhas extremamente arranjadas coloridas a fúxia, sem atentar minimamente nas frases que me atirava, meio sussurradas entre risadas e confrontando-me com os desígnios astrais.

Para minha surpresa o futuro atirava-nos para Saturno, o planeta dos anéis, pelo que, afirmava ela, tal era sinónimo de envolvimento e não valeria a pena fugir pois os astros sempre encontrariam um modo de fazer cumprir os seus ditames. Eu interrogava-me e meditava, por que raio esta minorca, que me passeava pela casa pegando-me na mão e conduzindo-me, por que raio engraçaria comigo, que nunca me esforçara por lhe ser agradável, a ela, com quem ninguém engraçava, ou achava engraçada. Mas também me perguntava a mim mesmo que me levaria a deixar-me levar que nem um cachorrinho pela trela…

Ali a cozinha, acolá a despensa, a sala já conheces, aqui o quarto, entra, não tenhas medo anda ver, e vi, uma cama larga e singela, as pagelas emolduradas na mesinha de cabeceira, o crucifixo ao centro da parede, ladeado pelo Espirito Santo sob a forma de um coração envolvido em espinhos, e do outro lado a imagem de Nossa Senhora dos Mártires. Foi quando ela, alisando com a mão a colcha vermelha e mirando-me de alto a baixo e me sorriu que verdadeiramente acordei.

- Ainda não viste nada, sou muito devota da Senhora dos Mártires, vem comigo, anda ver o meu retiro.

 Fui, fomos, quer dizer o cachorrinho lá foi, abanando a cauda ávido de curiosidade, até que ela abriu a porta de acesso à cave e uma penumbra espessa carregada de odores a igreja e onde pontificava um forte cheiro a velas queimadas incenso e jasmim tomou conta de mim. Enquanto descia e o olhar se me habituava àquela semiobscuridade pude ver os ganchos no tecto, as argolas chumbadas nas paredes, as máscaras de couro, o entrançado dos chicotes, algemas aveludadas, jogos de bolas ou esferas, um atordoador “Taser” e um vibrador “Pleasure” numa caixa luxuosa da “Bijoux Indiscrets”, uma estante com creme unguentos e pomadas misteriosas junto a uma espécie de altar coberto de flores, que posteriormente confirmei serem plásticas embora uma imitação prodigiosa das naturais.

Uma cruz gigante adossada à parede de fundo irradiava por trás luz forte que a destacava e, quando ela accionou o interruptor dessa cave uma luz estroboscópica fez surgir nas paredes e tecto frases aleatórias como “Jesus é o meu senhor”, “Deus Pai abençoai-nos”, “Só o amor alimenta a alma”, “Escrava do amor escrava do Senhor” e “ Deus é amor”, que me recorde, tantas eram elas…

Ainda não fechara a boca de estupefacção e já ela se jogara ao chão, de joelhos, numa prece que vos descrevo sussurrada, uma ladainha em que abria e fechava os braços como se oferecendo-se à cruz iluminada quando, num repente, tirou pela cabeça o camisolão que envergava e pude ver-lhe as costas, mais as costelas que as costas, os vergões, alguns ainda ensanguentados ou apresentando chagas purulentas, que me causaram um asco que ela não viu por estar agora debruçada sobre um tapete tal qual se colocaria um árabe orando na direcção de Meca e nisto, virando-se para mim e descortinando finalmente o ar nauseabundo que eu apresentava:

- Não me julgues, sobretudo não me julgues mal, sou virgem, toma-me se o desejares, quando e como desejares, mas jamais esqueças, a minha virgindade é sagrada, sou noiva do Senhor, sou mártir e escrava deste amor platónico.

Virou-se para mim com os braços cruzados sobre e escondendo o peito, e vi na sua nudez uma magreza tentadora, recheada de curvas que o incenso fazia ondular na minha mente.

De Fevereiro a Julho daquele ano posso afirmar ter vivido como um selvagem, um selvagem eremita, que, embora respeitando os cânones e os limites por ela impostos se deliciou e a deliciou sodomizando-a a desejo e a pedido, de tal modo que, como que conduzido pelo maligno, me tornei horrivelmente íntimo das mais abjectas práticas de BDSM, a ponto de, no prazo legal ter esquecido o concurso de professores e ter ficado sem concorrer nesse ano. Envergonhado, extenuado, magro que nem um cão, acedi confessar-me a um colega e amigo padre, que não só me absolveu como integrou no Colégio Salesiano onde durante três anos leccionei e esqueci a experiência absorvente daquela descida aos infernos.

Olhei-a, ela olhou-me, corada, abanámos as cabeças em simultâneo num leve cumprimento e nada dissémos um ao outro. Separámo-nos sem nos olharmos sequer. Pelas gentes que a acompanhavam pertencerá aos círculos da Cáritas, Cruz Vermelha, ou Banco Alimentar. Colega da Jonet, deixei-me sorrir involuntariamente.

O Senhor a proteja. A ela e a mim.