Eu já esquecera
a coisa, mas as circunstâncias encarregaram-se das trazer de volta à minha
memória. Ao arrumar e dar uma limpeza na garagem achei uma caixa de velhas
cassetes, uma delas, cópia de excertos de várias reportagens que para a RDP
fizera em directo e debaixo de fogo no longínquo ano de 2003.
Muitos amigos
e colegas, após o meu regresso, se riram comigo e eu com eles, relembrando a panorâmica
de 460º que eu afirmara ter a partir da localização onde me encontrava
observando e vivendo os acontecimentos. Rimos que nos fartámos, e já bebemos e
brindámos à pala disso umas centenas de vezes. O que muita gente não conhece,
porque fora desse exclusivo e restrito grupo, são as circunstâncias especiais em
que os relatos decorreram, particularmente esse.
Esclareçam-se
as coisas, quer esse quer os outros foram feitos em directo, todos eles, o que
aliás se perceberá pelo ruído de fundo, não poucas vezes rebentamentos próximos
e fogo de retaliação, de artilharia ou de antiaéreas disparando ao acaso contra
um inimigo invisível, ao acaso até serem detectadas e pronta e sistematicamente
silenciadas. Passados dias coube-me ver a parafernália defensiva montada em
camiões que se deslocavam, céleres, após cada disparo, mas convém admitir que
essa estratégia foi gizada tarde demais e nada ter adiantado.
A
conquista da cidade processara-se com o cronos decorrendo intensamente, e o que
era compreensível ou aceitável ou lógico pela manhã poderia estar absurdamente
subvertido à tarde, e fazia das tropas defensivas autênticas baratas tontas
sucumbindo paulatinamente ao avanço do agente DUM DUM.
Algumas eram literalmente pulverizadas.
Adiante-se
que quer a minha calma quer a minha coragem eram igualmente aparentes. A calma decorria do
facto de ter interiorizado (de bombardeamentos anteriores, aquele não era nem
de longe o primeiro) processarem-se os mesmos cirurgicamente, e não ver qual o
interesse que poderia haver em atirar o Sheraton abaixo. Tínhamos sido mudados
do famoso Palestina para este, cuja construção, mais recente, já obedecia a
directrizes de Saddam, (abrigos nas caves), situado em frente e na mesma rua.
Acrescia o facto de eu não ter então, ou ainda, conhecimento de danos colaterais
sofridos algures, o que também contribuía para a minha calma. A coragem
advinha-me de me negar a gorar o prazer aos ouvintes que em directo seguissem
as peripécias daquela guerra, da circunstância do edifício abanar mas
dificilmente cair, e de me encontrar havia vários dias ensopado de adrenalina.
Por duas
ou três vezes apostara comigo mesmo que alvo se seguiria de quantos se
encontravam ao alcance da minha visão, e ter ganho essas apostas. Mas a minha recusa decorria também da pouca disposição para descer (e posteriormente ter que subir) quinze andares de escadas, pois a energia passava a maior parte do dia
ausente e sem ela colapsavam elevadores e aumentava exponencialmente o perigo de
um incêndio em qualquer andar do hotel, onde tudo funcionava à luz das velas.
Foi por
essa a razão que, quando os simpáticos encarregados árabes da segurança do
hotel me apareceram intimando-me a descer aos abrigos das caves eu me recusara
terminantemente a ponto de lhes responder, ou gritar, no fear, no fear, NO FEAR
! numa linguagem que sabia entenderem (que se ouve na gravação). A minha
táctica não surtiu contudo efeito, acabariam por levar-me quase à força, não
sem que antes acabasse o meu relato, em boa hora, pois que os bombardeamentos se
aproximavam a cada minuto e numa linha recta na qual o Sheraton se inseria de
modo nítido.
Evidentemente
as minhas calma e coragem eram mais aparentes que outra coisa e encontravam-se
até muito longe de dominadas ou controladas por mim, se estar às voltas no
carrocel do Alverca já nos inebria, imaginem-me, um pacato alentejano naquela
situação. A primeira ameaça residia nos vidros das janelas, se se estilhaçassem
seriam arremessados contra mim deixando-me que nem um passador… A segunda
ameaça consistia, citava-se por todo o lado, no perigo da forte deslocação de
ar provocada pelos rebentamentos estar a arrancar as cabeças do lugar a muita boa
gente, mesmo que afastada do epicentro das mesmas, isto para não falar de um
impacto directo em que pura e simplesmente reduzisse a pó ou provocasse a
derrocada do hotel de 20 ou mais andares.
Confesso
ter sentido um fascínio inexplicável em toda aquela situação, o tremer do
prédio, que contagiava as minhas pernas com um tremor que se apossou de todo o
meu corpo, e o espectáculo de luz e som em que inconscientemente olvidamos quem
ou quantos o alimentam, isto é, nele perecem. É um festival de luz cor e som
inimitável, um cheiro a pólvora que inebria, e em que uma falsa sensação de
segurança prodigiosa nos cola agarra e fixa ao lugar, em que um misterioso encantamento nos torna admiradores
inconfessáveis do homem e da técnica ou os extremos a que a aliança deles nos
conduziu, como é possível tanta maravilha ?
- Tanta
precisão, tanta pontaria
- Tanta
capacidade, tanta destruição
- Tanta
indiferença, tanta intenção
- Tamanho absurdo,
tal maldição ?
Não foi
portanto o maravilhoso mistério da criação que me tomou, antes o deslumbramento
da perdição e, por momentos fui cúmplice do diabo e exultei, teimei mesmo nele
durante o meu relato e foi esse deslumbramento, colado nessa frase, que inda
hoje de vez em quando os amigos me soletram aos ouvidos rindo.
- Da
janela deste 15º andar do Sheraton desfruto de uma panorâmica de 460º bla bla
bla, tudo isto seria cómico se não tivesse sido trágico e, soube-o depois,
choque e pavor premeditados numa operação destinada a subjugar um ditador mas
também uma nação, um povo.
Claro que
fiz prognósticos, quem os não fazia por aquele dias ? A diferença é que os meus
foram passados a livro, estão lá, estão plasmados ali para que quem se dignar
os avalie, infelizmente não falhei um dos muitos e muitos que formulei.
O ISIS, o
porquê do Isis ? Está lá o prognóstico, ele e a resposta. O país, o seu futuro,
as várias confissões religiosas, a dificuldade ou impossibilidade da
reconstrução, está lá tudo, preto no branco, e temo, sim temo, não que o futuro
me desminta mas antes que me ultrapasse, que vá ainda mais longe no absurdo do
que alguma vez julguei ser possível, ou até inimaginável.
Irei
editar em CD essa famosa e divertida gravação (e que Deus me perdoe),
colar-lhe-ei algumas fotos desses momentos traumáticos para aquela que era uma
grande e linda cidade, desde já me comprometo
colocar, acrescentar, o link
neste texto, os primeiros contactos com o técnico de som e vídeo estão feitos,
vamos esperar que ele goze o S. João, como me prometeu.