terça-feira, 16 de junho de 2015

247 - A PARÓDIA DOS 460 ..........................................

     Eu já esquecera a coisa, mas as circunstâncias encarregaram-se das trazer de volta à minha memória. Ao arrumar e dar uma limpeza na garagem achei uma caixa de velhas cassetes, uma delas, cópia de excertos de várias reportagens que para a RDP fizera em directo e debaixo de fogo no longínquo ano de 2003.

Muitos amigos e colegas, após o meu regresso, se riram comigo e eu com eles, relembrando a panorâmica de 460º que eu afirmara ter a partir da localização onde me encontrava observando e vivendo os acontecimentos. Rimos que nos fartámos, e já bebemos e brindámos à pala disso umas centenas de vezes. O que muita gente não conhece, porque fora desse exclusivo e restrito grupo, são as circunstâncias especiais em que os relatos decorreram, particularmente esse.

Esclareçam-se as coisas, quer esse quer os outros foram feitos em directo, todos eles, o que aliás se perceberá pelo ruído de fundo, não poucas vezes rebentamentos próximos e fogo de retaliação, de artilharia ou de antiaéreas disparando ao acaso contra um inimigo invisível, ao acaso até serem detectadas e pronta e sistematicamente silenciadas. Passados dias coube-me ver a parafernália defensiva montada em camiões que se deslocavam, céleres, após cada disparo, mas convém admitir que essa estratégia foi gizada tarde demais e nada ter adiantado.

A conquista da cidade processara-se com o cronos decorrendo intensamente, e o que era compreensível ou aceitável ou lógico pela manhã poderia estar absurdamente subvertido à tarde, e fazia das tropas defensivas autênticas baratas tontas sucumbindo paulatinamente ao avanço do agente DUM DUM. Algumas eram literalmente pulverizadas.

Adiante-se que quer a minha calma quer a minha coragem eram igualmente aparentes. A calma decorria do facto de ter interiorizado (de bombardeamentos anteriores, aquele não era nem de longe o primeiro) processarem-se os mesmos cirurgicamente, e não ver qual o interesse que poderia haver em atirar o Sheraton abaixo. Tínhamos sido mudados do famoso Palestina para este, cuja construção, mais recente, já obedecia a directrizes de Saddam, (abrigos nas caves), situado em frente e na mesma rua. Acrescia o facto de eu não ter então, ou ainda, conhecimento de danos colaterais sofridos algures, o que também contribuía para a minha calma. A coragem advinha-me de me negar a gorar o prazer aos ouvintes que em directo seguissem as peripécias daquela guerra, da circunstância do edifício abanar mas dificilmente cair, e de me encontrar havia vários dias ensopado de adrenalina.

Por duas ou três vezes apostara comigo mesmo que alvo se seguiria de quantos se encontravam ao alcance da minha visão, e ter ganho essas apostas. Mas a minha recusa decorria também da pouca disposição para descer (e posteriormente ter que subir) quinze andares de escadas, pois a energia passava a maior parte do dia ausente e sem ela colapsavam elevadores e aumentava exponencialmente o perigo de um incêndio em qualquer andar do hotel, onde tudo funcionava à luz das velas.


Foi por essa a razão que, quando os simpáticos encarregados árabes da segurança do hotel me apareceram intimando-me a descer aos abrigos das caves eu me recusara terminantemente a ponto de lhes responder, ou gritar, no fear, no fear, NO FEAR ! numa linguagem que sabia entenderem (que se ouve na gravação). A minha táctica não surtiu contudo efeito, acabariam por levar-me quase à força, não sem que antes acabasse o meu relato, em boa hora, pois que os bombardeamentos se aproximavam a cada minuto e numa linha recta na qual o Sheraton se inseria de modo nítido. 

Evidentemente as minhas calma e coragem eram mais aparentes que outra coisa e encontravam-se até muito longe de dominadas ou controladas por mim, se estar às voltas no carrocel do Alverca já nos inebria, imaginem-me, um pacato alentejano naquela situação. A primeira ameaça residia nos vidros das janelas, se se estilhaçassem seriam arremessados contra mim deixando-me que nem um passador… A segunda ameaça consistia, citava-se por todo o lado, no perigo da forte deslocação de ar provocada pelos rebentamentos estar a arrancar as cabeças do lugar a muita boa gente, mesmo que afastada do epicentro das mesmas, isto para não falar de um impacto directo em que pura e simplesmente reduzisse a pó ou provocasse a derrocada do hotel de 20 ou mais andares.

Confesso ter sentido um fascínio inexplicável em toda aquela situação, o tremer do prédio, que contagiava as minhas pernas com um tremor que se apossou de todo o meu corpo, e o espectáculo de luz e som em que inconscientemente olvidamos quem ou quantos o alimentam, isto é, nele perecem. É um festival de luz cor e som inimitável, um cheiro a pólvora que inebria, e em que uma falsa sensação de segurança prodigiosa nos cola agarra e fixa ao lugar, em que um misterioso encantamento nos torna admiradores inconfessáveis do homem e da técnica ou os extremos a que a aliança deles nos conduziu, como é possível tanta maravilha ?

- Tanta precisão, tanta pontaria
- Tanta capacidade, tanta destruição
- Tanta indiferença, tanta intenção
- Tamanho absurdo, tal maldição ?

Não foi portanto o maravilhoso mistério da criação que me tomou, antes o deslumbramento da perdição e, por momentos fui cúmplice do diabo e exultei, teimei mesmo nele durante o meu relato e foi esse deslumbramento, colado nessa frase, que inda hoje de vez em quando os amigos me soletram aos ouvidos rindo.

- Da janela deste 15º andar do Sheraton desfruto de uma panorâmica de 460º bla bla bla, tudo isto seria cómico se não tivesse sido trágico e, soube-o depois, choque e pavor premeditados numa operação destinada a subjugar um ditador mas também uma nação, um povo.

Claro que fiz prognósticos, quem os não fazia por aquele dias ? A diferença é que os meus foram passados a livro, estão lá, estão plasmados ali para que quem se dignar os avalie, infelizmente não falhei um dos muitos e muitos que formulei.

O ISIS, o porquê do Isis ? Está lá o prognóstico, ele e a resposta. O país, o seu futuro, as várias confissões religiosas, a dificuldade ou impossibilidade da reconstrução, está lá tudo, preto no branco, e temo, sim temo, não que o futuro me desminta mas antes que me ultrapasse, que vá ainda mais longe no absurdo do que alguma vez julguei ser possível, ou até inimaginável.

Irei editar em CD essa famosa e divertida gravação (e que Deus me perdoe), colar-lhe-ei algumas fotos desses momentos traumáticos para aquela que era uma grande e linda cidade, desde já me comprometo  colocar, acrescentar,  o link neste texto, os primeiros contactos com o técnico de som e vídeo estão feitos, vamos esperar que ele goze o S. João, como me prometeu. 

                  https://youtu.be/E1EazTwjCcU