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terça-feira, 23 de junho de 2015

249 - PENDURADO D’A TRAVE ................................

                                          
                 - Conheceste-o ?

Infelizmente não o conheci bem, nem bem nem tempo suficiente.

- O que andavas a fazer em 74 quando ele morreu ?

Em 73 ou já em 74 lembro-me de ter visitado a galeria A Trave, nem recordo bem quem além dele lá estava, só lembro a galeria no geral, eu era ainda muito novo, aliás eu era um tipo ainda demasiado novo para dar excessiva atenção aos pormenores que não me suscitassem ou prendessem a atenção. Outras memórias ficaram até hoje, que registei como um impacto no meu cérebro, à guisa de flashes que te irei passando como se de diapositivos se tratasse:

Uma mesa corrida central, comprida, que de início me levara a julgar ser uma bancada de carpinteiro e, sobre ela, inimaginável desarrumo e profusão, de godés, frascos, pincéis, bisnagas, panos sujíssimos, paletes improvisadas, tintas ressequidas, endurecidas, cerdas duras, tinta pingada, escorrida e salpicada por todo o lado, os copos sujos, o vidro baço conspurcado de magenta, restos de comida. Fosse hoje e diria que tinham sobrado restos de várias pizas.

O tecto todo branco, tabuas brancas, barrotes e traves brancas, de um branco sujo, donde pendiam ainda serpentinas, balões esvaziados, e vários holofotes forrados a celofane vermelho, azul e verde. Num canto afastado uma tarimba nojenta e nela sentado um jovem de barbas, jaqueta moderna de ganga, azul e cabelos compridos. Passados dois ou três anos dei por mim a achar o meu irmão mais novo parecidíssimo com ele. Teria dormido ali ? Desgrenhado, de olheiras…

Tudo eu revejo ainda “fotograma a fotograma”, os cavaletes, um casaco e um blusão atirados ao calhas para cima de um sofá, as gargalhadas dos homens, mas quem esses homens ? O mais novo, o tal da farta cabeleira desgrenhada riu como um desalmado, levantou-se, pegou num tubo porta desenhos em cartão que mais pareci uma bazuca e:

- Adeus maninho, adeus Raminhos que me vou embora, que me vou embora para não mais voltar.

E atirando com a bazuca à tiracolo preparava-se para abalar, assobiando, quando o maninho o abraçou, o ergueu nos ares, quase derribando uma pipa de pratos pintados pendentes de pregos na parede, nalguns, pássaros do poeta começados, noutros a meio ou por começar, até o largar pendurado duma trave, esperneando e reclamando ter horas para estar no café do Rosa, onde combinara encontrar-se com o José Cachatra a fim de aproveitar a boleia do Amado da Urbana (a quem muita gente, confundida, chamava senhor Urbano).

O maninho que assim o mimava era nem mais nem menos o mestre Palolo, técnico de serralharia mecânica na Somefe Ldª, empresa onde eu anos atrás debutara no mundo do trabalho como paquete e onde durante seis meses aprendera o abc do mister, éramos portanto colegas, ainda que isso não me ajude a lembrar porque e por quem eu ali fora levado. No chão ficara um rasto de garrafas vazias, por pouco não tropeçaram, quase se estatelando, num molhe de varas de perfis para molduras. Foi a vez dos outros rirem a bandeiras despregadas.

O ambiente tinha algo de surreal, as paredes preenchidas de quadros, flores, bonecos grandes, arlequins, palhaços, desenhos, esquiços, aguarelas, ou, penduradas, composições aleatórias, umas acabadas outras a meio, grandes vasos com flores, mirradas, mortas, pregos como bengaleiros, e no centro do salão quatro ou cinco cavaletes de diversos tamanhos, trabalhos em curso, um Templo, a Sé, as Portas de Moura, um grupo de cantadores alentejanos, um enorme pássaro de poeta aparentemente acabado, nisto uma estridente buzinadela:

- É o Urbano, deve ser ele que já nos estranha a demora.

Mas onde vais tu mermão, com tanta pressa, logo tu que parece teres nascido com todo o vagar do mundo e que amas esta cidade mais que a tua própria mãe ?

- Estás enganado maninho, só levo saudades desta rua das Lousadas, por ter aqui deixado o coração, de resto já sabes que penso como Eça, ou Pessoa, esta cidade fede a "provincianismo", de gente incapaz de reflectir, incapaz de criticar o que vê, lê ou lhe dizem, quando digo criticar quero dizer analisar, pensar, é gente desconfiada, descrente, má, individualista, sem ideias próprias, ignorante, porém capaz de perfilhar ideias de outrem sem sequer as mastigar, sem as remoer, é uma cidade de atrasados mentais que me sufoca, esta falta de desenvolvimento civilizacional, esta ausência de ideias abafa-me, asfixia-me, vou para Paris, Bruxelas, Berlim, vou conhecer mundo maninho.

Oh ! Mermão ! Mas onde vais tu ao periquito mermão ? Tu que andas sempre mais teso que um carapau ?

- A Cambra pagou-me esta semana o Dragão que lhe fiz para as piscinas, tenho narda para ir até à Cochinchina maninho, não voltarei acredita.

Dragão ? Estás a delirar mermão ? Que conversa é essa ?

- Sim dragão, aquela escultura para os miúdos brincarem, nas piscinas, junto ao tanque infantil.

E arrancou, lesto, não sem que antes tivesse atirado, à laia de provocação, uma piada e tal encontrão ao Raminhos que o ia atirando para dentro da mal enjorcada chaminé, aliás como estava tudo o resto.

- E tu que fazes aqui salta-pocinhas ? Não tinhas arranjado um salão novo na rua do Alfeirão ó romeu ?

Evidentemente referia-se ao Raminhos e a uma garagem que o “salta-pocinhas”, assim lhe chamavam os amigos íntimos por andar sempre atarefado num passo miúdo e saltitante, uma garagem mais próxima da loja e situada em frente do portão de saída dos rapazes, a entrada principal da Escola de Stª Clara era destinada unicamente às raparigas.

E lá abalou, correndo, enfiando-se logo no Sinca novo do Amado que, para não perder a garantia lhe fazia as revisões em Lisboa, desta levava com ele o Cachatra, a dar as últimas, e que o senhor Amado forçava a ir ao médico, talvez para não perder o negócio da venda dos seus quadros na loja de artesanato que possuía em plena Praça do Geraldo, a URBANA, daí a origem da confusão que amiúde faziam quanto ao seu nome.

Mas quem era afinal este senhor Amado ?

O senhor Urbano, por vezes assim erradamente conhecido, era homem de uma extrema urbanidade e decoro, o que não obstara a que, seis meses atrás, tivesse deixado o meu paizinho em polvorosa, de dignidade ofendida e em negação, ao ter-lhe manifestado o desejo de me inscrever no 1º ano liceal, ser meu encarregado de educação e passar a custear-me os estudos. Porquê tanta generosidade ? Perguntar-me-ão V. Exªs., e com razão. Por mor do milagre do amor, retorquir-vos – ei.

O senhor Amado, senhor muito urbano, tornara-se amásio de enfermeira parteira moradora à Travessa dos Mascarenhas, a quem tinha montado casa, consultório e todas as particularidades e peculiaridades a que a posse de uma senhora de tais predicados nunca deixa de obrigar…

Ora sucede que na verdade o dito e urbano senhor apenas pretendera oficializar ou institucionalizar uma situação de facto, que na prática já existia, pois me custeava os estudos por via dessa minha tia que se fizera enfermeira. Portanto podeis facilmente deduzir que a vida deste amigo que aqui se vos confessa poderia ter tomado outro rumo, completamente diferente e, tivesse eu frequentado o liceu e não o ensino industrial e comercial, como veio a acontecer, teria pelo menos diferente escol de amigos e conhecidos coisa extremamente útil nos dias de hoje, ao invés dos inúteis que me rodeiam. Mas a vida é assim, e nem perdi tudo pois continuei fazendo, quando calhava, recados e mandados ao senhor Urbano da URBANA e ganhando as respectivas gorjetas, pelo menos até ter crescido e a mama se ter acabado claro, que o homem tinha mulher e filhos, honra e brio a manter.

- Você não pinta mal António, pena não ser coisa que se venda na minha loja, os camones querem é material very tipical entende ? Umas ceifeiras, uns cantadores, umas cenas campestres, bucólicas, aqui o seu amigo Cachatra ajeita-se bem, é sempre a facturar !

Sim sim, vou fazendo uns risquinhos, mas é como diz, nesta cidade não me safo, além de ser pequena, andamos sempre a encalhar uns nos outros, nos mesmos.

- Constou-me que vai dar o salto, é verdade ? Se é faz bem…

E ouvido isto o António só não deu um pulo por ir entalado entre mantas de Reguengos, capotes e peliças alentejanas em pele de borrego, porém:

Mas… ! Como sabe ! Quem lho bufou ? Isso é coisa que nem ás paredes confesso ! Estou tramado !

- Não se assuste, foi confidência do seu amigo Cachatra ao solicitar-me boleia para si, fez bem, de contrário não me teria convencido.

Sim, na verdade sinto-me apertado nesta cidade, em especial entre as gentes ligadas à cultura e que fui descobrindo serem, na generalidade,  quem menos cultura tem, já aguentei choques que cheguem, ando sempre a encalhar nos mesmos para onde quer que me vire, por estas bandas o ambiente está soturno, de cortar à faca, especialmente depois desse tal Gonçalves Rapazote**** ter ido a ministro, agora até as paredes têm ouvidos…  

- Meu caro António para viver aqui tem que se saber viver, aprenda comigo que não viverei sempre, nesta cidade as gentes têm medo e inveja de quem tenha alguma inteligência ou alguma cultura, por isso com os que não tenham nem uma coisa ou outra, ou até as duas, eu faço-me ignorante, por vezes até parvo, e com os que são inteligentes e cultos faço-me mais parvo ainda, mais ignorante, mais estúpido, é vê-los felizes, tenho um amigo em cada eborense, não podemos ferir susceptibilidades António, e você ainda é demasiado jovem…

Era gaiato eu, mas testemunhara imensas vezes a vergonha que constituíam para o café as tentativas do Cachatra de nele promover a venda dos seus quadros, e quanto à sua demência, poucos lhe conheceriam os problemas de degenerescência, era inúmeras vezes confundida com alcoolismo. Não raramente cada compra implicava a galhofa e chiste do pintor que contudo se sujeitava, garantindo ao menos a sobrevivência, já que a dignidade lhe era recusada. Ainda assim a venda de obras na URBANA providenciavam-lhe melhadura certa e regular, sem o submeterem a desconsideração ou achincalhamento.

- Não se precipite António, isto há-de mudar, se para pior ou para melhor não lhe afianço, mas vai mudar, a tentativa de 16 do mês passado** não foi um acaso, estou bem informado e garanto-lhe que mudará em breve. O poder quando muito concentrado acaba por explodir, quando muito disperso, por implodir, é aquela situação em que são demais a mandar, onde todos mandam mas ninguém obedece, isto do orgulhosamente sós *** foi chão que já deu uvas, está prestes a era do venha a nós o vosso reino, para mim deverá ser bom, decerto venderei mais, tempos virão e todo o pequeno burguês quererá parecer tu cá tu lá com a “arte e a cultura”. António, queira Deus que o seu amigo se aguente, tenho algum receio que ele tenha que ficar internado sabe ?

- Não fico, nem sei se isto algum dia mudará, o país resume-se a fado, futebol, Fátima e folclore, (o folclore dava para tudo, como agora dá o cante alentejano) não há uma política descentralizada para a cultura, ainda se vive no tempo do António Ferro*, que com Duarte Pacheco* completam a trilogia salazarista que governa este país, vou, já me decidi há muito, esta cidade tresanda, cheira a bafio, a vulgaridade e ignorância, além de poucos abatemo-nos à mínima inveja, à falta de melhor até o assobiar é invejado.

Nem decorrido um mês o turbilhão do 25 de Abril engolir-nos-ia a todos, António desapareceu por completo, soube pelos jornais do sucesso de exposições suas em Madrid, Paris, Bruxelas, Nova Iorque, Salamanca, Bolonha, Roma, Cáceres, S. Paulo, Iowa EUA, para citar somente as estrangeiras. José Cachatra ficara mesmo internado, o seu estado anímico, e anémico, era mais grave que o suposto, viria a falecer a meia dúzia de dias da data que nos engoliu. O urbano senhor Amado, foi de tal modo prejudicado pela instabilidade do PREC que ficou sem turistas (as aquisições dos nacionais sempre tinham sido residuais) e foi obrigado a fechar a URBANA, grande loja que distava poucos passos do Arcada, e que assim se manteve largos anos até terem feito dela um salão de jogos, entretanto falido e encerrado.

Eu, influenciado, ainda experimentei uma incursão pela pintura, até que alguém em quem muito confio e muito considero, olhando para os meus quadros proclamou cheio de empatia e sinceridade:

- Cagas melhor do que pintas.

Foi quanto bastou para que, mau grado tanto prémio nos jogos florais e noutras exposições, passasse a dedicar-me às letras e à poesia, mas essa é outra história que um dia aqui vos contarei.

Quanto ao urbano senhor Urbano, a quem muita consideração devo, morreu no seio da sagrada e amada família Amado.

Não me restam dúvidas de que acertara em pleno, o poder explodiu primeiro e implodiu quarenta anos depois, ou não estivéssemos por mor de tanta democracia e tanto poder democrático de novo agarrados aos tomates.



Notas : A primeira foto apresentada é o “Dragão”, escultura colocada junto às piscinas infantis e obra de António Palolo.

*  A. Ferro, responsável pela politica cultural , D. Pacheco, ministro das Obras Públicas e Comunicações de Salazar.


 ** tentativa de golpe das “Caldas da Rainha” a 16 de Março e que antecedeu o 25 de Abril.

*** Frase célebre atribuída a Salazar.



                                            Pintura de António Palolo
                                Pássaro de Poeta, pintura de Paulino Ramos
                                           Meu irmão Manuel Baião
                                 Portas de Moura, pintura de Paulino Ramos
                                 Cidade de Évora, pintura de Paulino Ramos
                                   Sé catedral, pintura de Paulino Ramos
                                Templo de Diana, pintura de Paulino Ramos

                                            Pintura de António Palolo
                                           Pintura de António Palolo
                                             Pintura de António Palolo
cantadores de cante em Pintura de José Cachatra
 


                                    Arlequim, pintura de Paulino Ramos

sexta-feira, 19 de junho de 2015

248 - CACHATRA EM S. VICENTE …………………


              Não me recordo já como era aquela canção do J.M. Branco, ou do Fausto... louco ou marinheiro... lólarélóli... Mas procurá-la-ei e colocarei aqui o link, fica jurado. Assim confuso me senti ante a restrita mas rica colecção de pinturas de José Cachatra (1933-1974), o esquecido, enlouquecido, extrovertido, exuberante, doutor, aviador e pintor José Carlos Cachatra,  de Borba mas eborense claro, o indizível, o maldito, o inexplicável, o inclassificável e, por acréscimo ou silenciamento, o inominável.

Já por três vezes visitei esta exposição, (no primeiro dia praticamente só metera o pé na porta) e nem me cansei, há pormenores que nos ocupam uma eternidade a entender. E será que os entendi ? No mínimo conjecturei, o que não deixa de ser uma prerrogativa ou intenção de qualquer artista ou autor, julgo.

Mas não nos afastemos do tema, e para rimar, é pena, é pena que as composições não estejam datadas, porque seria mais fácil entender, ou não, se os diferentes períodos da sua tão curta vida se reflectiram, e de que modo, na pintura e nas opções temáticas e cromáticas que fez. Aproveito porém para deixar eu também os meus agradecimentos aos proprietários das obras, e a todos aqueles que de alguma forma intervieram nesta linda exposição.

Uma coisa é certa, o tema Alentejo quase monopoliza as obras expostas, motivos, paisagens, gentes, e, segundo creio o grosso das obras conhecidas. O que sabemos é que o período vivido em Évora foi dos mais produtivos da sua curta mas profícua e atribulada carreira.

Atentei nos pormenores disse-vos há pouco, na firmeza e domínio do pincel, na inclinação progressão e certeza das pinceladas, em cuja direcção não vislumbrei a mínima hesitação. Casos há em que, ao invés de cerda, ou de espátula, se terá servido dos dedos, o que nos aparece nítido numa pequena composição (talvez 30X20cm, nº PP01 nas imagens que vos cedo) em que até a unha parece ter sido utilizada e, aqui sim, embora em pequeníssima dimensão, hipotéticamente com recurso a uma técnica de Pollock, designada "action painting". Sabe-se que Pollock executava obras gigantescas, saltando para o meio das telas e pintando do interior para o exterior, neste aspecto o catálogo da exposição apresenta alguma ligeireza, ao não ter sido dado a verificar ou rever por autoridade na matéria, induzindo em erro o visitante mais incauto ao comparar a técnica de Cachatra ao "dripping" de Pollock, o que constitui erro grosseiro, o "dripping" é uma técnica de gotejamento ou salpico da tela pelo pincel com a qual nenhuma obra nesta exposição de José Cachatra nos autoriza a fazer tal afirmação ou comparação.

Cachatra modernista ? Sim, claro, mas de um modernismo muito próprio, nele se nota abertamente uma aversão à tradição com a adopção clara de novas formas e fórmulas de expressão a que não terá sido alheia a extinta e brevíssima "Orpheu", (surgida em 1915 mas da qual só se publicaram 2 números), revista que subverteu e durante muito tempo influenciou artistas e autores portugueses em cujo círculo o nosso homem, embora arriscando afirmá-lo, decerto privou. 

           Quase sem excepção as suas figuras, os seus motivos, são fruto das novas correntes já firmadas na Europa, e desenvolvidos num traço estilizado mas nunca deixando de ser firme, o que nos prova uma mão segura, um domínio genuíno da arte e da palete, até naqueles quadros em que, não um "sfumato" mas uma indefinida penumbra anima os contornos. Expressão de estado de alma ? Embora artista seguro surgem-nos por vezes composições suas cujo jogo cromático nos apresenta propositadamente tons esbatidos, a par de outras em cores mais vivas, casos em que me atreveria mesmo a falar de cores limitada ou condicionadamente exuberantes, em Cachatra o deslumbramento nunca nos advém das cores, antes das formas, (exemplo de Flores, na minha designação).

Embora vasta, à volta de cinquenta quadros expostos, acredito que a ausência de muitas obras por dispersão ou desconhecimento delas, não nos permitem que, exclusivamente com base nestas, possamos classificar ou catalogar levianamente o autor. As "poucas" obras expostas mostram-nos uma amplitude temática rica, de onde sobressaem grupos que pela sua afinidade estilística ou cromática, ou técnica, se isolam dos demais, ou antes sobressaem dos demais, já que algumas telas não fazem de modo algum jus à personalidade conhecida do pintor, reservada, e, segundo se conhece, de um dramatismo que o conhecimento precoce e interiorizado de uma morte prematura acelerou, pois a doença e a instabilidade, sabemo-lo, foi uma sua constante e cruz.

Cachatra reproduz Picasso (1881-1973) e o cubismo, com os seus Palhaços Músicos, e Les demoiselles d'Avignon e os seus nus, ou Paul Cézanne (1839-1906) e Les Grands Baigneuses, Cachatra foi um modernista, viveu como um modernista, conviveu com modernistas na sua fase Lisboeta, e eu apostaria ter frequentado tertúlias e partilhado a companhia de outros modernistas portugueses hoje muito conhecidos. A sua pintura no-lo diz, que inclusive muito se assemelha à de alguns pintores europeus, especialmentes franceses, que por pouco não foram também seus contemporâneos.

O nosso homem foi estudante de Belas Artes, foi estudante trabalhador, boémio, professor, oficial da Força Aérea, pintor... Cachatra terá sido, a crer nalgumas telas mais exuberantes, um "bon vivant", um "play boy", um homem com a vida cheia, preenchida, até de problemas creio, a sua saída tumultuosa do liceu de Évora, em confronto com o reitor (homem do regime), faz com que o considere um inadaptado à bonomia e pasmaceira do Alentejo, mais concretamente de Évora, cidade onde, parafraseando salvo erro Vergílio Ferreira, quem tivesse menos de quatrocentos porcos ou mais que a quarta classe não seria gente fiável nem para levar a sério. Sabemos que Vergílio Ferreira deu por essa época aulas no mesmo liceu, mas penso que Cachatra terá leccionado entre 63 e 65, Vergílio Ferreira andara por aqui somente meia dúzia de anos antes, entre 45 e 48. Teria sido engraçada a sua simultaneidade e convívio, que temas lhes teriam açambarcado as conversas e a camaradagem ?

Foi por esses anos que Cachatra recusou ser reintegrado como tenente na Força Aérea, coarctando a continuidade ou curso de uma carreira militar que interrompera, porquê ? Inconformismo e recusa do regime Salazarista ? A guerra ultramarina irrompera feroz em 61...

Não esqueçamos que Humberto Delgado, general nomeado em 59 Director-Geral da Aeronáutica, posteriormente oposicionista, fora perseguido, em 59 exilado, e posteriormente assassinado a 13 de Fevereiro desse ano de 65. A atitude de Cachatra teria sido de insurgência ? Subversão ? Recordemos a veia "modernista" e por acréscimo "futurista" de José Cachatra, e os aviões, os quais eram nesse período histórico as máquinas futuristas por excelência, que o terá levado a abandoná-las ?  Igualmente por esses anos Henrique Galvão, mais precisamente em 1961, organizara e comandara o assalto ao paquete Santa Maria, numa tentativa de provocar uma crise política contra o regime de Salazar e desse modo acicatando os meios oposicionistas, onde decerto Cachatra se moveria, e então efervescentes.

São estes episódios de rebeldia que me autorizam a arriscar afirmar que muito singelamente poderão testemunhá-lo, ou pelo menos assim nos autorizam, a inscreve-lo como um independente, ou portador de um pensamento libertário, ou mais que isso, um independentista formado e empedernido, um sólido ponto referencial de coerência na aparente volatilidade da sua agitada vida.

Seria o antinacionalismo dele, ou nele, que talvez expliquem a sua faceta irreverente, ou anárquica, demolidora de cânones, é sabido que as correntes neo-realistas nasceram daí, da recusa da sobranceria e da exploração ou escravização do homem. O neo-realismo de Cachatra é sobretudo alentejano, pois noutras suas composições não é visível esta corrente, nessas outras está bem vincado o tal impressionismo e proto cubismo órfico que a brochura bem cita, o abstraccionismo e o expressionismo, tudo movimentos, tendências e correntes que nitidamente grassaram igualmente entre outros que lhe foram contemporâneos e com quem terá sido impossível não se ter cruzado em tertúlias e debates.

José Carlos Cachatra dar-me-ia, se o quisesse, pano para mangas, e torna-se tentador um seu estudo sincrónico / diacrónico abrangendo contemporaneidades suas como Almada Negreiros (1893-1970), Júlio Pomar (1926 -…), Júlio Resende (1917-2011), Fausto Sampaio (1893-1956), Dordio Gomes (1890-1976), Manuel Cargaleiro (1927-…), Nadir Afonso (1920-2013), Helena Vieira da Silva (1908-1992), António Charrua (1925-2008), António Palolo (1946-2000) e Paulino Ramos (1923-1999) os dois últimos autodidactas,  e muitos outros, todos eles imbuídos desse espirito de uma época que tudo revolucionara e até já enterrara muitos dos seus principais debutantes e intervenientes, quer a nível europeu quer mundial.

Contudo todavia mas porém a vidinha está má, difícil, e nem me pagam para isso, portanto deixo a oportunidade a quem queira desenvolver sobre o tema quaisquer teses de mestrado ou doutoramento, a gente nova e cheia de garra, acreditem que não brinco.

Infelizmente Cachatra morreu meia dúzia de dias antes do bambúrrio de 25 de Abril de 74, deve ter sido homem de esperanças, felizmente para ele morreu com elas, nós certamente morreremos desiludidos. 

P.S. – Deixo uma nota breve, o desejo que daqui a 50 anos não estejamos de igual forma a tentar adivinhar, ou compor, a vida e percurso de Marcelino Bravo, é eborense, e ainda é vivo).
                                                         PP 01
                                                      FLORES
                                             PALHAÇOS MÚSICOS
                                             




                                                        ÉVORA