Estou
habituado ao ar festivaleiro com que por vezes sou recebido, agrada-me a
empatia que muitos dos meus amigos me prodigalizam e procuro retribuir-lhes na
mesma moeda, mas ontem, mais precisamente segunda-feira, ainda estaria a cem
metros da Igreja de S. Vicente quando, repentinamente, campainhas tinindo e
luzinhas piscando, de tal modo que, não fossem dez da manhã e pensaria ter entrado
pelo S. João dentro.
Lesto
enfiei a mota no estacionamento e desliguei a chave com brusquidão calando a
charanga. Nunca tal me acontecera, e afinal tanto banzé nem festejava a minha
chegada ao vicentino santuário, para visita a mais uma iniciativa levada a cabo
pelos Ciclos de S. Vicente, e que até depois de amanhã, portanto 30, estará
patente em exposição no dito templo. A charanga, chamando a atenção de todos
sobre mim, afinal tinha que ver com a gasolina que entrara na reserva, coisa
que apesar de ter a mota há dois para três anos nunca me acontecera. Raio de
modernismos.
Os
CS~V, Ciclos de S. Vicente são uma meritória iniciativa da Colecção B, Associação
Cultural, que de uma forma inteligente e expedita procura ocupar positivamente
um espaço nobre no centro do burgo e, em simultâneo, presentear-nos com mostras
culturais que animem a urbe com um tipo de oferta em que ela é manifestamente
carente. Não é fácil. A exposição desta vez apresentava-se como
“Definitivamente q.b.” embora eu tenha ao chegar a casa aberto no pc uma pasta
com um ficheiro a que dei o nome de “até sempre”. Mas vamos com calma e não dêmos
o corpo pela alma, pois é a alma que a exposição ali instalada, ou a instalação ali
exposta, nos quer acicatar.
Tenho pena de vos não
trazer aqui fotos, pela segunda vez no momento crucial a bateria nem um flash
vomitou, pelo que me
fiquei p’la contemplação dos folheto explicativos da Beatriz Agria e da Inês
Gomes e, lendo os folhetos e avançando pela igreja adentro, andando isto tudo
ligado cada palavra delas despoletava uma conexão entre os meus neurónios, já
avivados pela charanga da indicação de reserva do combustível e portanto excitadíssimos,
pulando contentes na penumbra fresca e sacra pelo que abandonei o pensamento, afim de que as ideias fluíssem entre mim e um outro ser que também eu, um de nós
encafuado na sua capsula do tempo o outro tentando sair da casca,
interligando-se ambos, entrecruzando-se num sistema de vasos comunicantes em
que o percebido e o sabido finalmente se equilibraram devendo ter sido aqui que
confidenciei ao Marco;
- Já
valeu a pena Marco, só pelos folhetos já valeu a pena, “… a conexão de todo o
conhecimento adquirido… “ então não é Marco que só ontem ao ler o Expresso
soube, soube eu e devem tê-lo sabido uns milhares de pessoas, que aqueles céus vermelhos tão característicos nas pinturas de Turner não se devem à sua suposta
vontade de impressionar, mas ao facto de na época não sabermos o que se
passava na rua ao lado, quanto mais do outro lado do mundo. Conectar é somar, é saber tudo.
O
simpático Marco Miguel é o guardião da igreja, o seu anjo da guarda, ou cão de
fila, cada um que o julgue que eu nada lhe devo nem sou seu confessor, a mim
tem-me demonstrado bastas vezes a sua gentileza e empatia ainda que nunca me
tenha pago um gelado ou sequer uma bica na Zoka, ali mesmo à frente, mas enfim, feitios.
Meia porta da igreja de S. Vicente comida pelo sol.
Mas
voltando a S. Vicente, bem sei que aquilo não é o Guggenheim, a Tate Modern ou
o Grand Palais, onde há pouco o nosso Amadeo de Sousa-Cardoso marcou presença,
nem eu sou o prof. Jorge Calado, mas mantenho-me au pair como dizem os franciús,
até deambulo por lá nas minhas visitinhas online que nem sempre são à borliú.
Parece
que o nosso Amadeo Sousa-Cardoso será finalmente promovido a Amadeo, como
Matisse o foi a Matisse, Picasso a Picasso, Cézanne a Cézanne e Vincent a van
Gogh, Monet, Gauguin, para citar aqueles que toda a gente conhece, Amadeo sim,
Amadeo simplesmente, como Bosch, Bosch, Black e Decker Black + Decker, Junkers
Junkers, Mazda Mazda, que nestas coisas o nome conta, conta contra tudo e de
modo singular contra os preconceitos.
Mas
ia eu meditando nos folhetos da Inês e da Beatriz e pensando que valeu a pena
lê-los. Dizia eu para o Marco que isto anda tudo ligado e não vale a pena a
Inês condenar-me ou forçar-me à participação como o folheto observava, pois há coisas em que acreditamos
mas pelas quais jamais seremos capazes de mexer um dedo, um pé, ou dar um passo. Como raio vou eu habitante pobre de uma pobre cidade provinciana fazer frente à
frota baleeira japonesa operando na Antárctida e chacinando baleias ? Ou como
raio posso lutar contra os machos dinamarqueses que num festival anual de
excessos e sangue se fazem homens desfazendo golfinhos ? Ou como iria eu
enfrentar as petrolíferas que ameaçam os mares do norte cujas plataformas, mais
de seiscentas, irão ser desmontadas, mas apenas quatrocentas e setenta delas nos
próximos trinta anos ?
Mais
de 600 ! Quer dizer, nem me atrevo a imaginar ou a ligar a menor importância às três ou
quatro que querem erguer no Allgarve, quem me dera petróleo mais barato que já
não ganho para a gasolina. Confesso estar fartinho de assinar petições online
pelas baleias, pelos golfinhos, pelas girafas, pelo Mar do Norte, contra a
destruição do ambiente, contra a Monsanto, contra o Japão, contra a Dinamarca,
a Noruega a Finlândia a Suécia a Rússia a China a Austrália, pelo Tibete, pelo
Butão, pelos linces, pelas abelhas, pelos magriços, pelo Zico, pelo Palito, e
contra o Palito, contra o Vale e Azevedo o Joe Berardo o Salgado, o Jardim
Gonçalves e o outro Jardim, o da Madeira, o Catroga e o Mexia, o Vara, o Guterres,
o Barroso, o boca de favas, o piquinino, e nada se mexe, o mundo está condenado
a ser consumido, condenado à avidez, à destruição, e ainda o Marco Miguel se preocupa
com o património e as portas da igreja, mas é precisamente por isso mesmo que gosto dele estão vendo ?
Os
folhetos da exposição estão bons, gostei de os ler, provocam, lembram,
relembram, despoletam, criam, motivam, a Beatriz e a Inês deviam apostar nos
folhetos, dedicar-se aos folhetos. Já vos disse que por falta de bateria não
tirei fotos ? Ao menos valha-nos isso, mas deixo-vos aqui ideias, meditações,
invocações, ilustrações, visões, impressões, opiniões, e à borla, que mais
poderiam desejar ?
Ainda a propósito de
William Turner, o tal que se mandava amarrar aos mastros dos navios durante as
tempestades para não perder pitada do espectáculo da mãe natureza e poder
depois replicá-la fielmente na tela, o vermelho dos seus céus tem que ver com o
que o padre bracarense
José Manuel Tedim nos conta sobre o ano de 1815, chuvoso e frio, com as
vindimas a fazerem-se somente nos fins de Novembro e os frutos a amadurecerem
em Janeiro seguinte. Hoje temos uma visão completa e sincrónica do mundo, nessa
época porém muito reduzida, parcial e diacrónica, hoje sabemos ou conhecemos os
efeitos mundiais, i.e. por todo o planeta, da eruptiva convulsão do Tambora em
1815, e sabemos pelo registo dos anais dos estaleiros que o “Temeraire” foi
pintado em 1815, ano em que esse navio veleiro foi rebocado para ser
desmantelado após uma vida gloriosa ao serviço da esquadra de Lorde Almirante
Horatio Nelson tendo participado na célebre batalha de Trafalgar. Turner pintou
o céu vermelho porque o Tambora espalhara por toda a atmosfera e estratosfera o
seu pernicioso efeito, que o fiel pintor captou para a tela. Contrastando com o
dito hoje sabemos o que se passa no mundo e desconhecemos o que fazem na nossa
própria rua.
PS: Procurei o normal livro de presença dos visitantes para deixar a impressão da minha desilusão, mas tinha
sido retirado ou nunca lá tinha estado, então pensei que a Beatriz e a
Inês poderiam não ter culpa naquilo e ter sido simplesmente manobradas e
levadas ao engano, aliciadas a preencher o verbo encher. Como diz um amigo meu bem
informado e por dentro destas coisas, as miúdas podiam ter sido instadas a tal, e todo
aquele estaminé poderia não ter outro propósito que fazer número, a fim de
serem preenchidos os requisitos exigidos pelos concursos de acesso aos
subsídios para as artes, para a cultura. Todavia conheço demasiado bem esse meu gárrulo amigo, demasiado bem para não lhe dar o devido desconto. Contudo não adianta muito perquiri-lo inquisitorialmente
pois é um tipo com uma imaginação muito fértil e muito maus fígados. Recuso-me acreditar
no que diz, mas a gente vê tanta coisa, e cada porcaria…
Quanto
à exposição/instalação em si, e já apreciei algumas cuja critica neste blogue
se encontra*, bem, vamos lá, diria que não é de bom tom desmoralizar a
juventude e que a Inês e a Beatriz são ainda novinhas e coiso e tal,
acrescentarei ser a arte cousa de sua natureza altamente subjectiva, para
acabar recomendando-lhes poisarem os olhos na Áurea, também ela frequentadora do
curso de artes da UE, portanto uma ex-colega, e sobre quem já ficcionei neste
blogue, é verdade que a Áurea às tantas acreditou saber mais que os mestres, ou
o suficiente, mas a Áurea arriscou, arriscou aquilo que se diz couro e cabelo,
singrou, trabalhou, vingou, porque era boa no que fazia, a Inês e a Beatriz que
tentem o mesmo, porque não vale andar a brincar às exposiçõezinhas, alguém tem
que dizer alguma vez às jovenzinhas que melhor que aquilo até a exposição de
garrafas recicladas com que as criancinhas fazem as árvores de Natal que expõem
na Praça do Geraldo na época indicada. Para terminar, se ainda não foi ver
aquilo não vá, nem perca tempo, espere que elas cresçam, elas as artistas.
Quadro de Amadeo Sousa-Cardoso, chamariz da sua recente Expo em Paris.