Mal
me reconheceu corou. Não que lhe tivesse alguma vez dado razões para isso.
Aliás nem a via vai para mais de vinte anos, muito mais. Éramos ambos muito
jovens, à época ela pregava ou leccionava Religião e Moral, ou algo parecido,
numa das primeiras escolas onde eu fora colocado e onde desde o primeiro
momento chocámos.
Eu,
já por esses tempos efusivo e extrovertido ao máximo, ela, introvertida
compulsiva e sempre distante, sempre recolhida, (em recolhimento) ainda por
cima uma fraca figura, (nem cu tinha), seca de carnes, olhos fundos e mortiços,
uma boca sem lábios que nunca sorria, e num pregador o eterno símbolo da cruz, num broche ao peito, e num pendente de fino fio de ouro. Segurando-o eternamente nas
mãos magras cujos dedos, finos, esguios, nunca se afadigavam de ir passando as
contas ao rosário, um vistoso terço. Certo dia vislumbrei-lhe os brincos sob o
cabelo curto, de onde pendiam naturalmente mais cruzes e com os quais brinquei,
talvez por isso nunca mais os tivesse voltado a usar. Enfim, obedecia a todos
os quesitos para que não se gostasse dela, parecendo até primar por isso.
Fora
essas divergências, e nem eram poucas, partilhávamos o mesmo dia de anos, o
mês, logo o mesmo signo, o mesmo gosto pela leitura, ela era também a
responsável pela biblioteca da escola e eu conservo ainda uma Bíblia
luxuosamente encadernada, oferta dela há uns trinta anos, trinta e muitos.
Divergíamos solenemente num aspecto crucial, enquanto eu partilhava vera
afeição pela astronomia e pela ciência, ela era dada à astrologia, às coisas de
Deus e do oculto, persignando-se sempre que alguma coisa ou alguém pudessem,
ainda que remotamente, inscrever-se no agrado do maligno.
A
passagem do cometa Halley junto à Terra em 9 de Fevereiro de 1986 colocara em
alvoroço jornais, revistas e televisões, que não largavam o caso, e foi
precisamente nesse ambiente que ela me surpreendeu com a oferta de uma carta
astral. Como se fosse hoje relembro-a:
-
Acreditas no destino Baião ?
Mas
só quando ela abriu a carta, tamanho A4, e vi o meu nome e o dela traçados a
par das órbitas de Saturno, Júpiter e Marte entendi todo o alcance da pergunta,
fazer-me acreditar no destino traçado na leitura do imponderável mundo da sua
carta astrológica, aliás da minha, de mim, eu, que no alinhamento traçado pelos
planetas era Marte e colidia inequivocamente com Vénus, cujo choque se
inscreveria no abraço inexorável de Saturno, o meu ascendente, ou no de
Júpiter, o dela, derivando a dúvida do facto da carta exibir uma valência de
alguns dias, enquanto para deslindar se nos braços de Saturno, ou de Júpiter,
haveria que efectuar mais cálculos, com projecções a um mês ou talvez mesmo
mais.
-
Que vamos colidir vamos, disso não me resta a mínima dúvida, se ao abrigo de
Saturno ou Júpiter mais tarde o saberemos.
E
sorria-me, pela primeira vez vi um sorriso naquele rosto miudinho, diria até
que pela primeira vez aqueles olhos deram ares de vida, brilharam.
- Ou
choque ou absorção, passa lá por casa uma destas tardes, tenho que descobrir a
verdade dos astros, mirar-te bem a palma da mão.
Confesso
que banzei, ou embatuquei, ela era a única pessoa com quem mal me dava, com
quem chocava aliás propositadamente, nunca evitava antes procurara
deliberadamente o confronto com ela, com quem não simpatizava, não engraçava,
nem escondia isso a ninguém, muito menos a ela, estaria mesmo a convidar-me
para ir a sua casa ?
- Ok
ta bem, um dia.
Atirei-lhe
a resposta automaticamente, sem a mínima intenção de cumprir, mais para a
despachar, para arrumar a questão, para me desenvencilhar do incómodo que o
convite me provocara com um mínimo de fair play. Com o tempo resolveria a
questão, pensaria como furtar-me elegantemente a um convite desagradável sem
parecer mal-educado ou detestável.
Mas
não me furtei. Não me perguntem como mas além de não me ter furtado vi-me uma
tarde em casa da incontornável astróloga, mão na mão, lendo as linhas na palma.
Para os que não sabem a mão dominante (a que usamos para escrever) apresenta a
vida presente e passada, enquanto a outra revela a vida futura. Ambas
apresentam a linha do coração, a linha da inteligência, a linha da vida, longa
ou curta, e a linha do destino, que nem toda a gente tem e que deve
preocupar-nos se tal nos acontecer.
Depois
é ver medir observar, se essas linhas se encontram muito próximo do polegar, se
são mais ou menos curvilíneas, se compridas e profundas ou não, se em forma de
semicírculo, se rectilíneas ou quebradas, descontínuas, se se aproximam ou não
da borda da palma ou apresentam círculos tangentes ou intercalados numa linha
ou em mais do que uma linha. Eu pasmava com tanto pormenor nos quais jamais
havia reparado, mas reparei no toque suave da sua mão, na pele macia,
perfumada, nas unhas extremamente arranjadas coloridas a fúxia, sem atentar
minimamente nas frases que me atirava, meio sussurradas entre risadas e
confrontando-me com os desígnios astrais.
Para
minha surpresa o futuro atirava-nos para Saturno, o planeta dos anéis, pelo
que, afirmava ela, tal era sinónimo de envolvimento e não valeria a pena fugir
pois os astros sempre encontrariam um modo de fazer cumprir os seus ditames. Eu
interrogava-me e meditava, por que raio esta minorca, que me passeava pela casa
pegando-me na mão e conduzindo-me, por que raio engraçaria comigo, que nunca me
esforçara por lhe ser agradável, a ela, com quem ninguém engraçava, ou achava
engraçada. Mas também me perguntava a mim mesmo que me levaria a deixar-me
levar que nem um cachorrinho pela trela…
Ali
a cozinha, acolá a despensa, a sala já conheces, aqui o quarto, entra, não
tenhas medo anda ver, e vi, uma cama larga e singela, as pagelas emolduradas na
mesinha de cabeceira, o crucifixo ao centro da parede, ladeado pelo Espirito
Santo sob a forma de um coração envolvido em espinhos, e do outro lado a imagem
de Nossa Senhora dos Mártires. Foi quando ela, alisando com a mão a colcha
vermelha e mirando-me de alto a baixo e me sorriu que verdadeiramente acordei.
-
Ainda não viste nada, sou muito devota da Senhora dos Mártires, vem comigo,
anda ver o meu retiro.
Fui, fomos, quer dizer o cachorrinho lá foi,
abanando a cauda ávido de curiosidade, até que ela abriu a porta de acesso à
cave e uma penumbra espessa carregada de odores a igreja e onde pontificava um
forte cheiro a velas queimadas incenso e jasmim tomou conta de mim. Enquanto
descia e o olhar se me habituava àquela semiobscuridade pude ver os ganchos no
tecto, as argolas chumbadas nas paredes, as máscaras de couro, o entrançado dos
chicotes, algemas aveludadas, jogos de bolas ou esferas, um atordoador “Taser”
e um vibrador “Pleasure” numa caixa luxuosa da “Bijoux Indiscrets”, uma estante
com creme unguentos e pomadas misteriosas junto a uma espécie de altar coberto
de flores, que posteriormente confirmei serem plásticas embora uma imitação
prodigiosa das naturais.
Uma
cruz gigante adossada à parede de fundo irradiava por trás luz forte que a
destacava e, quando ela accionou o interruptor dessa cave uma luz
estroboscópica fez surgir nas paredes e tecto frases aleatórias como “Jesus é o
meu senhor”, “Deus Pai abençoai-nos”, “Só o amor alimenta a alma”, “Escrava do
amor escrava do Senhor” e “ Deus é amor”, que me recorde, tantas eram elas…
Ainda
não fechara a boca de estupefacção e já ela se jogara ao chão, de joelhos, numa
prece que vos descrevo sussurrada, uma ladainha em que abria e fechava os
braços como se oferecendo-se à cruz iluminada quando, num repente, tirou pela
cabeça o camisolão que envergava e pude ver-lhe as costas, mais as costelas que
as costas, os vergões, alguns ainda ensanguentados ou apresentando chagas
purulentas, que me causaram um asco que ela não viu por estar agora debruçada
sobre um tapete tal qual se colocaria um árabe orando na direcção de Meca e
nisto, virando-se para mim e descortinando finalmente o ar nauseabundo que eu
apresentava:
-
Não me julgues, sobretudo não me julgues mal, sou virgem, toma-me se o
desejares, quando e como desejares, mas jamais esqueças, a minha virgindade é
sagrada, sou noiva do Senhor, sou mártir e escrava deste amor platónico.
Virou-se
para mim com os braços cruzados sobre e escondendo o peito, e vi na sua nudez
uma magreza tentadora, recheada de curvas que o incenso fazia ondular na minha
mente.
De
Fevereiro a Julho daquele ano posso afirmar ter vivido como um selvagem, um
selvagem eremita, que, embora respeitando os cânones e os limites por ela
impostos se deliciou e a deliciou sodomizando-a a desejo e a pedido, de tal
modo que, como que conduzido pelo maligno, me tornei horrivelmente íntimo das
mais abjectas práticas de BDSM, a ponto de, no prazo legal ter esquecido o
concurso de professores e ter ficado sem concorrer nesse ano. Envergonhado,
extenuado, magro que nem um cão, acedi confessar-me a um colega e amigo padre,
que não só me absolveu como integrou no Colégio Salesiano onde durante três
anos leccionei e esqueci a experiência absorvente daquela descida aos infernos.
Olhei-a,
ela olhou-me, corada, abanámos as cabeças em simultâneo num leve cumprimento e
nada dissémos um ao outro. Separámo-nos sem nos olharmos sequer. Pelas gentes
que a acompanhavam pertencerá aos círculos da Cáritas, Cruz Vermelha, ou Banco
Alimentar. Colega da Jonet, deixei-me sorrir involuntariamente.
O
Senhor a proteja. A ela e a mim.