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domingo, 29 de novembro de 2015

291 - “ PÁSSAROS DE POETA “ .................................



Naturalmente não entendi a coisa senão passados dois ou três anos, a coisa era a termodinâmica, ainda que por esses dias já estivesse familiarizado com a Tabela Periódica e pela mão da Drª Escária Santos me entretivesse, nos entretivéssemos todos, encerrados nas catacumbas do laboratório de Físico-química de Santa Clara, experimentando alavancas e fulcros, planos inclinados e inércias, soluto, solução e saturação, e através da observação de fenómenos de sublimação entrando sorrateiramente nas propriedades da matéria, dos líquidos, sólidos e gasosos, tudo coisas que contudo não ajudavam no imediato a entender o Mestre Paulino, debruçado sobre uma chapa de cobre aquecida, falando sozinho, pois era assim que falava comigo;

- Entendes Humberto ?

- Percebes Humberto ?

Ele abanando a cabeça, eu de olhos postos no relógio ao fundo da oficina temendo se esgotasse o tempo do feriado e a campainha tocasse a qualquer minuto, abeirado da ombreira espiando a eclosão alquímica de um qualquer “Pássaro do poeta”, nascimento que nunca deixava de me impressionar.

Foi assim que passados uns anos, talvez menos, talvez mais, entendi as propriedades ideais do cobre, um bom condutor de electricidade e calor, cujos efeitos se replicavam ou reflectiam nas cores, digo tintas que ele aplicava na placa, mais liquidas ou menos liquidas, devo dizer densas não é ? E no modo como naquele tabuleiro mágico, fosse ele redondo, quadrado ou rectangular se aglutinavam ou dispersavam as pinceladas, como átomos numa molécula, perdão, como protões, electrões, neutrões e positrões em redor do núcleo do átomo, para ser mais exacto, que isto da Físico-química não é o cadinho de fusão da pedra filosofal mas método de ciência certa e não nos podemos dar ao luxo de divagar sob pena do resultado, ou produto final, não apresentar os atributos, elementos ou propriedades por nós esperadas.

A minha constância a vê-lo sempre que tinha um feriado fosse ele de duas horas ou apenas de uma, e a familiaridade que com ele granjeei mercê da minha ocupação aos fins-de-semana como marçano da “Urbana” do senhor Amado, e aqui devo abrir um parêntesis de dupla intencionalidade, a primeira aproveitando a pergunta da minha amiga Mariazinha que desejava saber se na exposição haveria “Passarinhas”, e a segunda para recordar Mestre Paulino que certo sábado, ou domingo, enquanto eu embrulhava artesanato variado, incluindo quadros seus para ir levar aos CTT, ao recoveiro e ao estafeta Semião, já não recordo bem, lembro apenas que tinham como destino França Itália, GB e USA, lembro dizia eu, Mestre Paulino com muita brejeirice matreira engatilhada ter disparado para o magnata e senhor Amado:

- Ouve lá ó passarão, conta lá como foi que deitaste as garras àquela passarinha ?

E o deitar as garras era nem mais nem menos que alusão soez ao facto do senhor Amado ter montado casa a uma senhora jovem, a quem mantinha, pois nessa altura o handcraft dava para tudo e todos. Quanto a mim, ao ouvir o dislate enfronhei-me nas encomendas fingindo nem ter ouvido nadinha, visto a jovem senhora em questão ser minha tia. Pelo canto do olho vi sua excelência o educadíssimo senhor Amado, surpreendidíssimo, esbugalhar os olhos a Mestre Paulino, enquanto esticava e apontava o queixo na minha direcção, em silêncio, como quem diz; porra Paulino está ali o sobrinho dela foda-se.

Esclareço que a Urbana* era uma grande loja de artesanato ali à Praça do Giraldo e a dois passos do café Arcada, onde Mestre Paulino também expunha e vendia os seus pássaros e outras metamorfoses da cidade. Desse convívio adianto-vos, nasceram os convites para as festas da “Trave” * e a possibilidade de um acompanhamento muito mais próximo da sua obra que, contudo, não aproveitei cabalmente, em especial no período da minha juventude entre os dezasseis e os dezassete anos, período em que a vida me foi deveras agitada, não podendo esquecer nela o acontecimento inolvidável que foi o 25A, o qual me agitaria, sublevaria e excitaria sobremaneira a adolescência que se ia.

Quando me ocorreu que Mestre Paulino poderia ter tido a intenção de inocular em mim o bichinho da pintura era demasiado tarde e já dera outro rumo à minha existência. A admiração pelos “Pássaros do Poeta” ficou-me porém para sempre, foi magia que me tocou, recorrendo à linguagem da arte diria ter sido expressão que me impressionou, ou impressão que em mim se expressou, se recorrendo ao ponto de vista da Físico-química diria ter sido condição que me alterou.

Os “Pássaros do Poeta” eram e são de uma beleza a que ninguém ficará indiferente, em boa hora alguém se lembrou de os propagandear e sobretudo alguém ousou dar-lhe continuidade, corpo, matéria, existência, expressão. Voltando a eles e às “Passarinhas”, prendeu-me a atenção o anúncio da exposição, pois de imediato uma miríade de razões me acudiu ao cérebro, naturalmente poder de novo extasiar-me ou regalar-me ante a saudosa riqueza cromática das composições, cuja magia tantas horas me prendera encostado à ombreira da oficina da Rua do Alfeirão, o que me mergulhou numa década prodigiosa e na recordação das festas na Trave * na entrada no mundo adulto, nos braços e abraços da Luisinha, que conheci num bailarico ainda antes do incontornável 25A, no PREC, na aprendizagem de palavras novas, e na dificuldade e no tempo que demorei a soletrar correctamente a palavra solidariedade. Com Mestre Paulino cedo aprendi o conceito boémio de Rive Gauche, enquanto em casa repetia o disco de Georges Moustaki, “Avril au Portugal” **. Ricos tempos.

Entre as razões que me alegraram quanto à expectativa de voltar a ver os “Pássaros do Poeta” encontra-se o facto, nada despiciendo, aliás para mim o vero e primordial facto de saber se a nova e pré anunciada proposta de co-laboração inter-geracional conseguiria re-criar, re-inventar novas formas de continuidade que lograssem o re-surgimento de tão peculiar passarada, como anunciava a pintora Maria Caxuxa, que durante a visita tive oportunidade de conhecer e com ela travar interessante diálogo. As minhas dúvidas fundamentavam-se na capacidade dela saber, conseguir, e estar à altura de tamanha responsabilidade, à altura do Mestre, um enorme desafio. Não digo que fosse impossível dar continuidade ao Mestre, mas seria obra certamente muito difícil já que o problema se colocaria não tanto em imitar ou falsificar a Sua pintura, os Seus “motivos”, mas antes em dar-Lhe continuidade, o que implicaria perceber, entender o espirito dos “Pássaros” e do Mestre, significaria captar e sobretudo reproduzir a alma e a magia, o ânimo e âmago desse poeta que foi o Mestre Paulino Ramos.

Mais que tudo, foi essa curiosidade que me levou à igreja de S. Vicente, avaliar, aquilatar o propagandeado e publicitado, ver com os meus olhos o desfecho desse desmedido desafio, ou se tudo não passaria de prosápia e vontade de facturar com base em prestigio obtido no passado e no apelido do Mestre. Por isso mal entrei na igreja precipitei-me na busca da nova “passarada”, que é como quem diz na busca das novas composições pictóricas, desejoso de as comparar com as verdadeiras, com as verídicas, ímpeto que me foi sendo travado na justa e exacta medida em que me debati com dificuldade em distinguir as “novas” das “velhas”, tendo cedido completamente quando para as diferenciar, destrinçar, tive que recorrer aos óculos de ver ao perto e à leitura dos pequenos textos que acompanhavam cada uma das composições.

Parabéns à Maria Caxuxa, por ter conseguido o inimaginável, captar o espírito do mestre, captar o espirito dos “Pássaros do Poeta”, dar nova vida aos pássaros, e parabéns à minha amiga Mariazinha que não deixa de ter razão e a quem responderei sim, também lá havia “Passarinhas”, aliás a partir de agora passará a haver muitas mais “Passarinhas da Poetisa” neste nosso mundo da arte.

Parabéns também à “Associação” cujo bom desempenho tem enriquecido a igreja de S. Vicente, a vida da cidade, os artistas e os amantes da arte, facto que justifica por si só que deveria pensar numa reestruturação à altura das responsabilidades a que se propõe, diga-se que apesar do trabalho positivo até agora. Reestruturação que lhe retirasse o caracter de carolice ou voluntariado em que parece movimentar-se, com claro prejuízo para os artistas, para os visitantes e naturalmente para si mesma. Recordo que com a exposição de José Cachatra *** cometera erro de palmatória na apresentação de tendência do citado pintor, e desta vez houve para com Mestre Paulino e descendentes desconsideraçãoa redacção do texto da apresentação da exposição dava-o como vivo. Ninguém merecia isto, é hora dos voluntários cederem o lugar a profissionais, ou estes, se entrados pela porta do cavalo, isto é com cunha, cederem o lugar ao mérito e a quem por concurso se mostre capaz e digno da missão. Obrigado.

Nota: as fotos  foram roubadas ao meu amigo Joaquim Alberto Lourinho Carrapato :D 



terça-feira, 23 de junho de 2015

249 - PENDURADO D’A TRAVE ................................

                                          
                 - Conheceste-o ?

Infelizmente não o conheci bem, nem bem nem tempo suficiente.

- O que andavas a fazer em 74 quando ele morreu ?

Em 73 ou já em 74 lembro-me de ter visitado a galeria A Trave, nem recordo bem quem além dele lá estava, só lembro a galeria no geral, eu era ainda muito novo, aliás eu era um tipo ainda demasiado novo para dar excessiva atenção aos pormenores que não me suscitassem ou prendessem a atenção. Outras memórias ficaram até hoje, que registei como um impacto no meu cérebro, à guisa de flashes que te irei passando como se de diapositivos se tratasse:

Uma mesa corrida central, comprida, que de início me levara a julgar ser uma bancada de carpinteiro e, sobre ela, inimaginável desarrumo e profusão, de godés, frascos, pincéis, bisnagas, panos sujíssimos, paletes improvisadas, tintas ressequidas, endurecidas, cerdas duras, tinta pingada, escorrida e salpicada por todo o lado, os copos sujos, o vidro baço conspurcado de magenta, restos de comida. Fosse hoje e diria que tinham sobrado restos de várias pizas.

O tecto todo branco, tabuas brancas, barrotes e traves brancas, de um branco sujo, donde pendiam ainda serpentinas, balões esvaziados, e vários holofotes forrados a celofane vermelho, azul e verde. Num canto afastado uma tarimba nojenta e nela sentado um jovem de barbas, jaqueta moderna de ganga, azul e cabelos compridos. Passados dois ou três anos dei por mim a achar o meu irmão mais novo parecidíssimo com ele. Teria dormido ali ? Desgrenhado, de olheiras…

Tudo eu revejo ainda “fotograma a fotograma”, os cavaletes, um casaco e um blusão atirados ao calhas para cima de um sofá, as gargalhadas dos homens, mas quem esses homens ? O mais novo, o tal da farta cabeleira desgrenhada riu como um desalmado, levantou-se, pegou num tubo porta desenhos em cartão que mais pareci uma bazuca e:

- Adeus maninho, adeus Raminhos que me vou embora, que me vou embora para não mais voltar.

E atirando com a bazuca à tiracolo preparava-se para abalar, assobiando, quando o maninho o abraçou, o ergueu nos ares, quase derribando uma pipa de pratos pintados pendentes de pregos na parede, nalguns, pássaros do poeta começados, noutros a meio ou por começar, até o largar pendurado duma trave, esperneando e reclamando ter horas para estar no café do Rosa, onde combinara encontrar-se com o José Cachatra a fim de aproveitar a boleia do Amado da Urbana (a quem muita gente, confundida, chamava senhor Urbano).

O maninho que assim o mimava era nem mais nem menos o mestre Palolo, técnico de serralharia mecânica na Somefe Ldª, empresa onde eu anos atrás debutara no mundo do trabalho como paquete e onde durante seis meses aprendera o abc do mister, éramos portanto colegas, ainda que isso não me ajude a lembrar porque e por quem eu ali fora levado. No chão ficara um rasto de garrafas vazias, por pouco não tropeçaram, quase se estatelando, num molhe de varas de perfis para molduras. Foi a vez dos outros rirem a bandeiras despregadas.

O ambiente tinha algo de surreal, as paredes preenchidas de quadros, flores, bonecos grandes, arlequins, palhaços, desenhos, esquiços, aguarelas, ou, penduradas, composições aleatórias, umas acabadas outras a meio, grandes vasos com flores, mirradas, mortas, pregos como bengaleiros, e no centro do salão quatro ou cinco cavaletes de diversos tamanhos, trabalhos em curso, um Templo, a Sé, as Portas de Moura, um grupo de cantadores alentejanos, um enorme pássaro de poeta aparentemente acabado, nisto uma estridente buzinadela:

- É o Urbano, deve ser ele que já nos estranha a demora.

Mas onde vais tu mermão, com tanta pressa, logo tu que parece teres nascido com todo o vagar do mundo e que amas esta cidade mais que a tua própria mãe ?

- Estás enganado maninho, só levo saudades desta rua das Lousadas, por ter aqui deixado o coração, de resto já sabes que penso como Eça, ou Pessoa, esta cidade fede a "provincianismo", de gente incapaz de reflectir, incapaz de criticar o que vê, lê ou lhe dizem, quando digo criticar quero dizer analisar, pensar, é gente desconfiada, descrente, má, individualista, sem ideias próprias, ignorante, porém capaz de perfilhar ideias de outrem sem sequer as mastigar, sem as remoer, é uma cidade de atrasados mentais que me sufoca, esta falta de desenvolvimento civilizacional, esta ausência de ideias abafa-me, asfixia-me, vou para Paris, Bruxelas, Berlim, vou conhecer mundo maninho.

Oh ! Mermão ! Mas onde vais tu ao periquito mermão ? Tu que andas sempre mais teso que um carapau ?

- A Cambra pagou-me esta semana o Dragão que lhe fiz para as piscinas, tenho narda para ir até à Cochinchina maninho, não voltarei acredita.

Dragão ? Estás a delirar mermão ? Que conversa é essa ?

- Sim dragão, aquela escultura para os miúdos brincarem, nas piscinas, junto ao tanque infantil.

E arrancou, lesto, não sem que antes tivesse atirado, à laia de provocação, uma piada e tal encontrão ao Raminhos que o ia atirando para dentro da mal enjorcada chaminé, aliás como estava tudo o resto.

- E tu que fazes aqui salta-pocinhas ? Não tinhas arranjado um salão novo na rua do Alfeirão ó romeu ?

Evidentemente referia-se ao Raminhos e a uma garagem que o “salta-pocinhas”, assim lhe chamavam os amigos íntimos por andar sempre atarefado num passo miúdo e saltitante, uma garagem mais próxima da loja e situada em frente do portão de saída dos rapazes, a entrada principal da Escola de Stª Clara era destinada unicamente às raparigas.

E lá abalou, correndo, enfiando-se logo no Sinca novo do Amado que, para não perder a garantia lhe fazia as revisões em Lisboa, desta levava com ele o Cachatra, a dar as últimas, e que o senhor Amado forçava a ir ao médico, talvez para não perder o negócio da venda dos seus quadros na loja de artesanato que possuía em plena Praça do Geraldo, a URBANA, daí a origem da confusão que amiúde faziam quanto ao seu nome.

Mas quem era afinal este senhor Amado ?

O senhor Urbano, por vezes assim erradamente conhecido, era homem de uma extrema urbanidade e decoro, o que não obstara a que, seis meses atrás, tivesse deixado o meu paizinho em polvorosa, de dignidade ofendida e em negação, ao ter-lhe manifestado o desejo de me inscrever no 1º ano liceal, ser meu encarregado de educação e passar a custear-me os estudos. Porquê tanta generosidade ? Perguntar-me-ão V. Exªs., e com razão. Por mor do milagre do amor, retorquir-vos – ei.

O senhor Amado, senhor muito urbano, tornara-se amásio de enfermeira parteira moradora à Travessa dos Mascarenhas, a quem tinha montado casa, consultório e todas as particularidades e peculiaridades a que a posse de uma senhora de tais predicados nunca deixa de obrigar…

Ora sucede que na verdade o dito e urbano senhor apenas pretendera oficializar ou institucionalizar uma situação de facto, que na prática já existia, pois me custeava os estudos por via dessa minha tia que se fizera enfermeira. Portanto podeis facilmente deduzir que a vida deste amigo que aqui se vos confessa poderia ter tomado outro rumo, completamente diferente e, tivesse eu frequentado o liceu e não o ensino industrial e comercial, como veio a acontecer, teria pelo menos diferente escol de amigos e conhecidos coisa extremamente útil nos dias de hoje, ao invés dos inúteis que me rodeiam. Mas a vida é assim, e nem perdi tudo pois continuei fazendo, quando calhava, recados e mandados ao senhor Urbano da URBANA e ganhando as respectivas gorjetas, pelo menos até ter crescido e a mama se ter acabado claro, que o homem tinha mulher e filhos, honra e brio a manter.

- Você não pinta mal António, pena não ser coisa que se venda na minha loja, os camones querem é material very tipical entende ? Umas ceifeiras, uns cantadores, umas cenas campestres, bucólicas, aqui o seu amigo Cachatra ajeita-se bem, é sempre a facturar !

Sim sim, vou fazendo uns risquinhos, mas é como diz, nesta cidade não me safo, além de ser pequena, andamos sempre a encalhar uns nos outros, nos mesmos.

- Constou-me que vai dar o salto, é verdade ? Se é faz bem…

E ouvido isto o António só não deu um pulo por ir entalado entre mantas de Reguengos, capotes e peliças alentejanas em pele de borrego, porém:

Mas… ! Como sabe ! Quem lho bufou ? Isso é coisa que nem ás paredes confesso ! Estou tramado !

- Não se assuste, foi confidência do seu amigo Cachatra ao solicitar-me boleia para si, fez bem, de contrário não me teria convencido.

Sim, na verdade sinto-me apertado nesta cidade, em especial entre as gentes ligadas à cultura e que fui descobrindo serem, na generalidade,  quem menos cultura tem, já aguentei choques que cheguem, ando sempre a encalhar nos mesmos para onde quer que me vire, por estas bandas o ambiente está soturno, de cortar à faca, especialmente depois desse tal Gonçalves Rapazote**** ter ido a ministro, agora até as paredes têm ouvidos…  

- Meu caro António para viver aqui tem que se saber viver, aprenda comigo que não viverei sempre, nesta cidade as gentes têm medo e inveja de quem tenha alguma inteligência ou alguma cultura, por isso com os que não tenham nem uma coisa ou outra, ou até as duas, eu faço-me ignorante, por vezes até parvo, e com os que são inteligentes e cultos faço-me mais parvo ainda, mais ignorante, mais estúpido, é vê-los felizes, tenho um amigo em cada eborense, não podemos ferir susceptibilidades António, e você ainda é demasiado jovem…

Era gaiato eu, mas testemunhara imensas vezes a vergonha que constituíam para o café as tentativas do Cachatra de nele promover a venda dos seus quadros, e quanto à sua demência, poucos lhe conheceriam os problemas de degenerescência, era inúmeras vezes confundida com alcoolismo. Não raramente cada compra implicava a galhofa e chiste do pintor que contudo se sujeitava, garantindo ao menos a sobrevivência, já que a dignidade lhe era recusada. Ainda assim a venda de obras na URBANA providenciavam-lhe melhadura certa e regular, sem o submeterem a desconsideração ou achincalhamento.

- Não se precipite António, isto há-de mudar, se para pior ou para melhor não lhe afianço, mas vai mudar, a tentativa de 16 do mês passado** não foi um acaso, estou bem informado e garanto-lhe que mudará em breve. O poder quando muito concentrado acaba por explodir, quando muito disperso, por implodir, é aquela situação em que são demais a mandar, onde todos mandam mas ninguém obedece, isto do orgulhosamente sós *** foi chão que já deu uvas, está prestes a era do venha a nós o vosso reino, para mim deverá ser bom, decerto venderei mais, tempos virão e todo o pequeno burguês quererá parecer tu cá tu lá com a “arte e a cultura”. António, queira Deus que o seu amigo se aguente, tenho algum receio que ele tenha que ficar internado sabe ?

- Não fico, nem sei se isto algum dia mudará, o país resume-se a fado, futebol, Fátima e folclore, (o folclore dava para tudo, como agora dá o cante alentejano) não há uma política descentralizada para a cultura, ainda se vive no tempo do António Ferro*, que com Duarte Pacheco* completam a trilogia salazarista que governa este país, vou, já me decidi há muito, esta cidade tresanda, cheira a bafio, a vulgaridade e ignorância, além de poucos abatemo-nos à mínima inveja, à falta de melhor até o assobiar é invejado.

Nem decorrido um mês o turbilhão do 25 de Abril engolir-nos-ia a todos, António desapareceu por completo, soube pelos jornais do sucesso de exposições suas em Madrid, Paris, Bruxelas, Nova Iorque, Salamanca, Bolonha, Roma, Cáceres, S. Paulo, Iowa EUA, para citar somente as estrangeiras. José Cachatra ficara mesmo internado, o seu estado anímico, e anémico, era mais grave que o suposto, viria a falecer a meia dúzia de dias da data que nos engoliu. O urbano senhor Amado, foi de tal modo prejudicado pela instabilidade do PREC que ficou sem turistas (as aquisições dos nacionais sempre tinham sido residuais) e foi obrigado a fechar a URBANA, grande loja que distava poucos passos do Arcada, e que assim se manteve largos anos até terem feito dela um salão de jogos, entretanto falido e encerrado.

Eu, influenciado, ainda experimentei uma incursão pela pintura, até que alguém em quem muito confio e muito considero, olhando para os meus quadros proclamou cheio de empatia e sinceridade:

- Cagas melhor do que pintas.

Foi quanto bastou para que, mau grado tanto prémio nos jogos florais e noutras exposições, passasse a dedicar-me às letras e à poesia, mas essa é outra história que um dia aqui vos contarei.

Quanto ao urbano senhor Urbano, a quem muita consideração devo, morreu no seio da sagrada e amada família Amado.

Não me restam dúvidas de que acertara em pleno, o poder explodiu primeiro e implodiu quarenta anos depois, ou não estivéssemos por mor de tanta democracia e tanto poder democrático de novo agarrados aos tomates.



Notas : A primeira foto apresentada é o “Dragão”, escultura colocada junto às piscinas infantis e obra de António Palolo.

*  A. Ferro, responsável pela politica cultural , D. Pacheco, ministro das Obras Públicas e Comunicações de Salazar.


 ** tentativa de golpe das “Caldas da Rainha” a 16 de Março e que antecedeu o 25 de Abril.

*** Frase célebre atribuída a Salazar.



                                            Pintura de António Palolo
                                Pássaro de Poeta, pintura de Paulino Ramos
                                           Meu irmão Manuel Baião
                                 Portas de Moura, pintura de Paulino Ramos
                                 Cidade de Évora, pintura de Paulino Ramos
                                   Sé catedral, pintura de Paulino Ramos
                                Templo de Diana, pintura de Paulino Ramos

                                            Pintura de António Palolo
                                           Pintura de António Palolo
                                             Pintura de António Palolo
cantadores de cante em Pintura de José Cachatra
 


                                    Arlequim, pintura de Paulino Ramos