Naturalmente
não entendi a coisa senão passados dois ou três anos, a coisa era a
termodinâmica, ainda que por esses dias já estivesse familiarizado com a Tabela
Periódica e pela mão da Drª Escária Santos me entretivesse, nos entretivéssemos
todos, encerrados nas catacumbas do laboratório de Físico-química de Santa Clara,
experimentando alavancas e fulcros, planos inclinados e inércias, soluto,
solução e saturação, e através da observação de fenómenos de sublimação
entrando sorrateiramente nas propriedades da matéria, dos líquidos, sólidos e
gasosos, tudo coisas que contudo não ajudavam no imediato a entender o Mestre
Paulino, debruçado sobre uma chapa de cobre aquecida, falando sozinho, pois era
assim que falava comigo;
-
Entendes Humberto ?
-
Percebes Humberto ?
Ele abanando
a cabeça, eu de olhos postos no relógio ao fundo da oficina temendo se
esgotasse o tempo do feriado e a campainha tocasse a qualquer minuto, abeirado
da ombreira espiando a eclosão alquímica de um qualquer “Pássaro do poeta”, nascimento
que nunca deixava de me impressionar.
Foi
assim que passados uns anos, talvez menos, talvez mais, entendi as propriedades
ideais do cobre, um bom condutor de electricidade e calor, cujos efeitos se
replicavam ou reflectiam nas cores, digo tintas que ele aplicava na
placa, mais liquidas ou menos liquidas, devo dizer densas não é ? E no modo
como naquele tabuleiro mágico, fosse ele redondo, quadrado ou rectangular se
aglutinavam ou dispersavam as pinceladas, como átomos numa molécula, perdão,
como protões, electrões, neutrões e positrões em redor do núcleo do átomo, para
ser mais exacto, que isto da Físico-química não é o cadinho de fusão da pedra
filosofal mas método de ciência certa e não nos podemos dar ao luxo de divagar
sob pena do resultado, ou produto final, não apresentar os atributos, elementos
ou propriedades por nós esperadas.
A
minha constância a vê-lo sempre que tinha um feriado fosse ele de duas horas ou
apenas de uma, e a familiaridade que com ele granjeei mercê da minha ocupação
aos fins-de-semana como marçano da “Urbana” do senhor Amado, e aqui devo abrir
um parêntesis de dupla intencionalidade, a primeira aproveitando a pergunta da
minha amiga Mariazinha que desejava saber se na exposição haveria “Passarinhas”, e a
segunda para recordar Mestre Paulino que certo sábado, ou domingo, enquanto eu
embrulhava artesanato variado, incluindo quadros seus para ir levar aos CTT, ao
recoveiro e ao estafeta Semião, já não recordo bem, lembro apenas que tinham
como destino França Itália, GB e USA, lembro dizia eu, Mestre Paulino com muita
brejeirice matreira engatilhada ter disparado para o magnata e senhor Amado:
-
Ouve lá ó passarão, conta lá como foi que deitaste as garras àquela passarinha
?
E o
deitar as garras era nem mais nem menos que alusão soez ao facto do senhor
Amado ter montado casa a uma senhora jovem, a quem mantinha, pois nessa altura
o handcraft dava para tudo e todos. Quanto a mim, ao ouvir o dislate
enfronhei-me nas encomendas fingindo nem ter ouvido nadinha, visto a jovem
senhora em questão ser minha tia. Pelo canto do olho vi sua excelência o
educadíssimo senhor Amado, surpreendidíssimo, esbugalhar os olhos a Mestre
Paulino, enquanto esticava e apontava o queixo na minha direcção, em silêncio,
como quem diz; porra Paulino está ali o sobrinho dela foda-se.
Esclareço
que a Urbana* era uma grande loja de artesanato ali à Praça do Giraldo e a dois
passos do café Arcada, onde Mestre Paulino também expunha e vendia os seus
pássaros e outras metamorfoses da cidade. Desse convívio adianto-vos, nasceram
os convites para as festas da “Trave” * e a possibilidade de um acompanhamento
muito mais próximo da sua obra que, contudo, não aproveitei cabalmente, em
especial no período da minha juventude entre os dezasseis e os dezassete anos, período em que a vida me foi deveras agitada, não podendo
esquecer nela o acontecimento inolvidável que foi o 25A, o qual me agitaria,
sublevaria e excitaria sobremaneira a adolescência que se ia.
Quando
me ocorreu que Mestre Paulino poderia ter tido a intenção de inocular em mim o
bichinho da pintura era demasiado tarde e já dera outro rumo à minha existência.
A admiração pelos “Pássaros do Poeta” ficou-me porém para sempre, foi magia que
me tocou, recorrendo à linguagem da arte diria ter sido expressão que me
impressionou, ou impressão que em mim se expressou, se recorrendo ao ponto de
vista da Físico-química diria ter sido condição que me alterou.
Os
“Pássaros do Poeta” eram e são de uma beleza a que ninguém ficará indiferente,
em boa hora alguém se lembrou de os propagandear e sobretudo alguém ousou
dar-lhe continuidade, corpo, matéria, existência, expressão. Voltando a eles e
às “Passarinhas”, prendeu-me a atenção o anúncio da exposição, pois de imediato
uma miríade de razões me acudiu ao cérebro, naturalmente poder de novo
extasiar-me ou regalar-me ante a saudosa riqueza cromática das composições, cuja
magia tantas horas me prendera encostado à ombreira da oficina da Rua do
Alfeirão, o que me mergulhou numa década prodigiosa e na recordação
das festas na Trave * na entrada no mundo adulto, nos braços e abraços da
Luisinha, que conheci num bailarico ainda antes do incontornável 25A, no PREC, na aprendizagem
de palavras novas, e na dificuldade e no tempo que demorei a soletrar
correctamente a palavra solidariedade. Com Mestre Paulino cedo aprendi o
conceito boémio de Rive Gauche, enquanto em casa repetia o disco de Georges Moustaki,
“Avril au Portugal” **. Ricos tempos.
Entre
as razões que me alegraram quanto à expectativa de voltar a ver os “Pássaros do
Poeta” encontra-se o facto, nada despiciendo, aliás para mim o vero e primordial facto de saber
se a nova e pré anunciada proposta de co-laboração inter-geracional conseguiria
re-criar, re-inventar novas formas de continuidade que lograssem o
re-surgimento de tão peculiar passarada, como anunciava a pintora
Maria Caxuxa, que durante a visita tive oportunidade de conhecer e com
ela travar interessante diálogo. As minhas dúvidas fundamentavam-se na
capacidade dela saber, conseguir, e estar à altura de tamanha responsabilidade,
à altura do Mestre, um enorme desafio. Não digo que fosse
impossível dar continuidade ao Mestre, mas seria obra certamente muito difícil
já que o problema se colocaria não tanto em imitar ou falsificar a Sua pintura,
os Seus “motivos”, mas antes em dar-Lhe continuidade, o que implicaria
perceber, entender o espirito dos “Pássaros” e do Mestre, significaria captar e
sobretudo reproduzir a alma e a magia, o ânimo e âmago desse poeta que foi o Mestre
Paulino Ramos.
Mais
que tudo, foi essa curiosidade que me levou à igreja de S. Vicente, avaliar,
aquilatar o propagandeado e publicitado, ver com os meus olhos o desfecho desse
desmedido desafio, ou se tudo não passaria de prosápia e vontade de facturar
com base em prestigio obtido no passado e no apelido do Mestre. Por
isso mal entrei na igreja precipitei-me na busca da nova
“passarada”, que é como quem diz na busca das novas composições pictóricas,
desejoso de as comparar com as verdadeiras, com as verídicas, ímpeto que me foi
sendo travado na justa e exacta medida em que me debati com dificuldade em
distinguir as “novas” das “velhas”, tendo cedido completamente quando para as
diferenciar, destrinçar, tive que recorrer aos óculos de ver ao perto e à leitura dos pequenos textos que
acompanhavam cada uma das composições.
Parabéns
à Maria Caxuxa, por ter conseguido o
inimaginável, captar o espírito do mestre, captar o espirito dos “Pássaros do
Poeta”, dar nova vida aos pássaros, e parabéns à minha amiga Mariazinha que não
deixa de ter razão e a quem responderei sim, também lá havia “Passarinhas”, aliás
a partir de agora passará a haver muitas mais “Passarinhas da Poetisa” neste
nosso mundo da arte.
Parabéns
também à “Associação” cujo bom desempenho tem enriquecido a igreja de S.
Vicente, a vida da cidade, os artistas e os amantes da arte, facto que
justifica por si só que deveria pensar numa reestruturação à altura das
responsabilidades a que se propõe, diga-se que apesar do trabalho positivo até
agora. Reestruturação que lhe retirasse o caracter de carolice ou voluntariado em que
parece movimentar-se, com claro prejuízo para os artistas, para os visitantes e
naturalmente para si mesma. Recordo que com a exposição de José Cachatra ***
cometera erro de palmatória na apresentação de tendência do citado pintor, e desta vez
houve para com Mestre Paulino e descendentes desconsideração, a redacção do texto da apresentação da
exposição dava-o como vivo. Ninguém merecia isto, é hora dos
voluntários cederem o lugar a profissionais, ou estes, se entrados pela porta
do cavalo, isto é com cunha, cederem o lugar ao mérito e a quem por concurso se
mostre capaz e digno da missão. Obrigado.
Nota: as fotos foram roubadas ao meu amigo Joaquim Alberto Lourinho Carrapato :D