-
Conheceste-o ?
Infelizmente
não o conheci bem, nem bem nem tempo suficiente.
- O
que andavas a fazer em 74 quando ele morreu ?
Em
73 ou já em 74 lembro-me de ter visitado a galeria A Trave, nem recordo bem quem além dele lá estava, só lembro a galeria no geral, eu era ainda muito novo,
aliás eu era um tipo ainda demasiado novo para dar excessiva atenção aos
pormenores que não me suscitassem ou prendessem a atenção. Outras
memórias ficaram até hoje, que registei como um impacto no meu cérebro, à guisa
de flashes que te irei passando como se de diapositivos se tratasse:
Uma
mesa corrida central, comprida, que de início me levara a julgar ser uma
bancada de carpinteiro e, sobre ela, inimaginável desarrumo e profusão, de
godés, frascos, pincéis, bisnagas, panos sujíssimos, paletes improvisadas, tintas
ressequidas, endurecidas, cerdas duras, tinta pingada, escorrida e salpicada
por todo o lado, os copos sujos, o vidro baço conspurcado de magenta, restos de
comida. Fosse hoje e diria que tinham sobrado restos de várias pizas.
O
tecto todo branco, tabuas brancas, barrotes e traves brancas, de um branco
sujo, donde pendiam ainda serpentinas, balões esvaziados, e vários
holofotes forrados a celofane vermelho, azul e verde. Num canto afastado uma
tarimba nojenta e nela sentado um jovem de barbas, jaqueta moderna de ganga,
azul e cabelos compridos. Passados dois ou três anos dei por mim a achar o meu
irmão mais novo parecidíssimo com ele. Teria dormido ali ? Desgrenhado, de
olheiras…
Tudo
eu revejo ainda “fotograma a fotograma”, os cavaletes, um casaco e um blusão
atirados ao calhas para cima de um sofá, as gargalhadas dos homens, mas quem esses
homens ? O mais novo, o tal da farta cabeleira desgrenhada riu como um
desalmado, levantou-se, pegou num tubo porta desenhos em cartão que mais pareci
uma bazuca e:
-
Adeus maninho, adeus Raminhos que me vou embora, que me vou embora para não
mais voltar.
E
atirando com a bazuca à tiracolo preparava-se para abalar, assobiando, quando o
maninho o abraçou, o ergueu nos ares, quase derribando uma pipa de pratos
pintados pendentes de pregos na parede, nalguns, pássaros do poeta começados,
noutros a meio ou por começar, até o largar pendurado duma trave, esperneando e
reclamando ter horas para estar no café do Rosa, onde combinara encontrar-se com
o José Cachatra a fim de aproveitar a boleia do Amado da Urbana (a quem muita
gente, confundida, chamava senhor Urbano).
O
maninho que assim o mimava era nem mais nem menos o mestre Palolo, técnico de
serralharia mecânica na Somefe Ldª, empresa onde eu anos atrás debutara no mundo do
trabalho como paquete e onde durante seis meses aprendera o abc do mister, éramos
portanto colegas, ainda que isso não me ajude a lembrar porque e por quem eu ali
fora levado. No chão ficara um rasto de garrafas vazias, por pouco não
tropeçaram, quase se estatelando, num molhe de varas de perfis para molduras.
Foi a vez dos outros rirem a bandeiras despregadas.
O
ambiente tinha algo de surreal, as paredes preenchidas de quadros, flores,
bonecos grandes, arlequins, palhaços, desenhos, esquiços, aguarelas, ou,
penduradas,
composições aleatórias, umas acabadas outras a meio, grandes vasos com flores,
mirradas, mortas, pregos como bengaleiros, e no centro do salão quatro ou cinco
cavaletes de diversos tamanhos, trabalhos em curso, um Templo, a Sé, as Portas
de Moura, um grupo de cantadores alentejanos, um enorme pássaro de poeta
aparentemente acabado, nisto uma estridente buzinadela:
- É
o Urbano, deve ser ele que já nos estranha a demora.
Mas
onde vais tu mermão, com tanta
pressa, logo tu que parece teres nascido com todo o vagar do mundo e que amas
esta cidade mais que a tua própria mãe ?
-
Estás enganado maninho, só levo saudades desta rua das Lousadas, por ter aqui deixado
o coração, de resto já sabes que penso como Eça, ou Pessoa, esta cidade fede a "provincianismo",
de gente incapaz de reflectir, incapaz de criticar o que vê, lê ou lhe dizem,
quando digo criticar quero dizer analisar, pensar, é gente desconfiada, descrente,
má, individualista, sem ideias próprias, ignorante, porém capaz de perfilhar
ideias de outrem sem sequer as mastigar, sem as remoer, é uma cidade de
atrasados mentais que me sufoca, esta falta de desenvolvimento civilizacional,
esta ausência de ideias abafa-me, asfixia-me, vou para Paris, Bruxelas, Berlim,
vou conhecer mundo maninho.
Oh !
Mermão ! Mas onde vais tu ao periquito mermão ? Tu que andas sempre mais teso
que um carapau ?
- A Cambra pagou-me esta semana o Dragão que
lhe fiz para as piscinas, tenho narda para ir até à Cochinchina maninho, não
voltarei acredita.
Dragão
? Estás a delirar mermão ? Que conversa é essa ?
-
Sim dragão, aquela escultura para os miúdos brincarem, nas piscinas, junto ao tanque infantil.
E
arrancou, lesto, não sem que antes tivesse atirado, à laia de provocação, uma
piada e tal encontrão ao Raminhos que o ia atirando para dentro da mal
enjorcada chaminé, aliás como estava tudo o resto.
- E
tu que fazes aqui salta-pocinhas ? Não tinhas arranjado um salão novo na rua do
Alfeirão ó romeu ?
Evidentemente
referia-se ao Raminhos e a uma garagem que o “salta-pocinhas”, assim lhe
chamavam os amigos íntimos por andar sempre atarefado num passo miúdo e
saltitante, uma garagem mais próxima da loja e situada em frente do portão de
saída dos rapazes, a entrada principal da Escola de Stª Clara era destinada unicamente
às raparigas.
E lá
abalou, correndo, enfiando-se logo no Sinca novo do Amado que, para não perder
a garantia lhe fazia as revisões em Lisboa, desta levava com ele o Cachatra, a
dar as últimas, e que o senhor Amado forçava a ir ao médico, talvez para não
perder o negócio da venda dos seus quadros na loja de artesanato que possuía em
plena Praça do Geraldo, a URBANA, daí a origem da confusão que amiúde faziam
quanto ao seu nome.
Mas
quem era afinal este senhor Amado ?
O
senhor Urbano, por vezes assim erradamente conhecido, era homem de uma extrema
urbanidade e decoro, o que não obstara a que, seis meses atrás, tivesse deixado
o meu paizinho em polvorosa, de dignidade ofendida e em negação, ao ter-lhe
manifestado o desejo de me inscrever no 1º ano liceal, ser meu encarregado de
educação e passar a custear-me os estudos. Porquê tanta generosidade ?
Perguntar-me-ão V. Exªs., e com razão. Por mor do milagre do amor,
retorquir-vos – ei.
O
senhor Amado, senhor muito urbano, tornara-se amásio de enfermeira parteira moradora à
Travessa dos Mascarenhas, a quem tinha montado casa, consultório e todas as
particularidades e peculiaridades a que a posse de uma senhora de tais
predicados nunca deixa de obrigar…
Ora
sucede que na verdade o dito e urbano senhor apenas pretendera oficializar ou
institucionalizar uma situação de facto, que na prática já existia, pois me
custeava os estudos por via dessa minha tia que se fizera enfermeira. Portanto
podeis facilmente deduzir que a vida deste amigo que aqui se vos confessa
poderia ter tomado outro rumo, completamente diferente e, tivesse eu
frequentado o liceu e não o ensino industrial e comercial, como veio a
acontecer, teria pelo menos diferente escol de amigos e conhecidos coisa extremamente
útil nos dias de hoje, ao invés dos inúteis que me rodeiam. Mas a vida é assim,
e nem perdi tudo pois continuei fazendo, quando calhava, recados e mandados ao
senhor Urbano da URBANA e ganhando as respectivas gorjetas, pelo menos até ter
crescido e a mama se ter acabado claro, que o homem tinha mulher e filhos,
honra e brio a manter.
-
Você não pinta mal António, pena não ser coisa que se venda na minha loja, os
camones querem é material very tipical entende ? Umas ceifeiras, uns
cantadores, umas cenas campestres, bucólicas, aqui o seu amigo Cachatra
ajeita-se bem, é sempre a facturar !
Sim
sim, vou fazendo uns risquinhos, mas é como diz, nesta cidade não me safo, além
de ser pequena, andamos sempre a encalhar uns nos outros, nos mesmos.
- Constou-me
que vai dar o salto, é verdade ? Se é faz bem…
E
ouvido isto o António só não deu um pulo por ir entalado entre mantas de
Reguengos, capotes e peliças alentejanas em pele de borrego, porém:
Mas…
! Como sabe ! Quem lho bufou ? Isso é coisa que nem ás paredes confesso ! Estou tramado !
-
Não se assuste, foi confidência do seu amigo Cachatra ao solicitar-me boleia
para si, fez bem, de contrário não me teria convencido.
Sim,
na verdade sinto-me apertado nesta cidade, em especial entre as gentes ligadas
à cultura e que fui descobrindo serem, na generalidade, quem menos cultura tem, já aguentei choques
que cheguem, ando sempre a encalhar nos mesmos para onde quer que me vire, por
estas bandas o ambiente está soturno, de cortar à faca, especialmente depois
desse tal Gonçalves Rapazote**** ter ido a ministro, agora até as paredes têm
ouvidos…
-
Meu caro António para viver aqui tem que se saber viver, aprenda comigo que não
viverei sempre, nesta cidade as gentes têm medo e inveja de quem tenha alguma inteligência ou alguma cultura, por isso com os que não tenham nem uma coisa ou
outra, ou até as duas, eu faço-me ignorante, por vezes até parvo, e com os que
são inteligentes e cultos faço-me mais parvo ainda, mais ignorante, mais estúpido,
é vê-los felizes, tenho um amigo em cada eborense, não podemos ferir
susceptibilidades António, e você ainda é demasiado jovem…
Era gaiato eu, mas testemunhara imensas vezes a vergonha que constituíam para o
café as tentativas do Cachatra de nele promover a venda dos seus quadros, e
quanto à sua demência, poucos lhe conheceriam os problemas de degenerescência, era
inúmeras vezes confundida com alcoolismo. Não raramente cada compra implicava a
galhofa e chiste do pintor que contudo se sujeitava, garantindo ao menos a
sobrevivência, já que a dignidade lhe era recusada. Ainda assim a venda de
obras na URBANA providenciavam-lhe melhadura certa e regular, sem o submeterem
a desconsideração ou achincalhamento.
-
Não se precipite António, isto há-de mudar, se para pior ou para melhor não lhe
afianço, mas vai mudar, a tentativa de 16 do mês passado** não foi um acaso,
estou bem informado e garanto-lhe que mudará em breve. O poder quando muito
concentrado acaba por explodir, quando muito disperso, por implodir, é aquela
situação em que são demais a mandar, onde todos mandam mas ninguém obedece,
isto do orgulhosamente sós *** foi
chão que já deu uvas, está prestes a era do venha
a nós o vosso reino, para mim deverá ser bom, decerto venderei mais, tempos
virão e todo o pequeno burguês quererá parecer tu cá tu lá com a “arte e a
cultura”. António, queira Deus que o seu amigo se aguente, tenho algum receio que
ele tenha que ficar internado sabe ?
-
Não fico, nem sei se isto algum dia mudará, o país resume-se a fado, futebol,
Fátima e folclore, (o folclore dava para tudo, como agora dá o cante
alentejano) não há uma política descentralizada para a cultura, ainda se vive
no tempo do António Ferro*, que com Duarte Pacheco* completam a trilogia
salazarista que governa este país, vou, já me decidi há muito, esta cidade
tresanda, cheira a bafio, a vulgaridade e ignorância, além de poucos
abatemo-nos à mínima inveja, à falta de melhor até o assobiar é invejado.
Nem
decorrido um mês o turbilhão do 25 de Abril engolir-nos-ia a todos, António
desapareceu por completo, soube pelos jornais do sucesso de exposições suas em
Madrid, Paris, Bruxelas, Nova Iorque, Salamanca, Bolonha, Roma, Cáceres, S.
Paulo, Iowa EUA, para citar somente as estrangeiras. José Cachatra ficara mesmo
internado, o seu estado anímico, e anémico, era mais grave que o suposto, viria
a falecer a meia dúzia de dias da data que nos engoliu. O urbano senhor Amado,
foi de tal modo prejudicado pela instabilidade do PREC que ficou sem turistas
(as aquisições dos nacionais sempre tinham sido residuais) e foi obrigado a
fechar a URBANA, grande loja que distava poucos passos do Arcada, e que assim
se manteve largos anos até terem feito dela um salão de jogos, entretanto
falido e encerrado.
Eu,
influenciado, ainda experimentei uma incursão pela pintura, até que alguém em
quem muito confio e muito considero, olhando para os meus quadros proclamou
cheio de empatia e sinceridade:
- Cagas melhor do que pintas.
Foi
quanto bastou para que, mau grado tanto prémio nos jogos florais e noutras
exposições, passasse a dedicar-me às letras e à poesia, mas essa é outra
história que um dia aqui vos contarei.
Quanto
ao urbano senhor Urbano, a quem muita consideração devo, morreu no seio da sagrada e amada família Amado.
Não
me restam dúvidas de que acertara em pleno, o poder explodiu primeiro e
implodiu quarenta anos depois, ou não estivéssemos por mor de tanta democracia
e tanto poder democrático de novo agarrados aos tomates.
Notas : A primeira foto
apresentada é o “Dragão”, escultura colocada junto às piscinas infantis e obra
de António Palolo.
* A. Ferro, responsável
pela politica cultural , D. Pacheco, ministro das Obras Públicas e Comunicações
de Salazar.
**
tentativa de golpe das “Caldas da Rainha” a 16 de Março e que antecedeu o 25 de
Abril.
*** Frase célebre atribuída
a Salazar.
Pássaro de Poeta, pintura de Paulino
Ramos
Meu irmão Manuel Baião
Portas de Moura, pintura de Paulino RamosCidade de Évora, pintura de Paulino Ramos
Sé catedral, pintura de Paulino Ramos
Templo de Diana, pintura de Paulino Ramos
Pintura de António Palolo
cantadores de cante em Pintura de José Cachatra
Arlequim, pintura de Paulino Ramos