sexta-feira, 11 de setembro de 2015

275 - AZULEJOS ...........................................................


Nos brancos e alvos azulejos da parede da cozinha, onde eu preguiçosa e indolentemente me encostava enquanto tomava o pequeno-almoço, cirandavam duas pequeníssimas formigas a um palmo uma da outra. Que buscariam ? Por onde teriam entrado ? Apesar de mastigando uma sande de manteiga e queijo “Terra Nostra”, daquele em bola, vermelho, dos Açores, apesar disso estendi a língua e molhei nela a ponta do indicador para assim melhor as agarrar. Pousei-o sobre uma das desgraçadas formigas, apanhei-a e papei-a. Depois fiz o mesmo à outra e dei paulatinamente continuidade ao pequeno-almoço.

Na Tv uma data de choramingas faziam o funeral e choramingavam (desculpem-me a redundância) as recentes mortes na Quinta do Conde, como se não fosse da nossa natureza matarmo-nos uns aos outros por dá cá aquela palha. Somos um povo e um país desestruturado, disfuncional, mais sugado por quarenta anos de democracia que por idêntica fatalidade em igual período de Salazar e Caetano.

Somos incapazes de impor a nossa vontade, aliás nem se nos conhece vontade e tudo que saia do rame-rame habitual já é romper com o marasmo, marasmo que é para nós uma fórmula de estabilidade e progresso, todavia achámos sempre risível a divisa de Salazar "Revolução na continuidade”, ou seria de Caetano ? E seria assim tão ridícula ?

Temos é queda para estes folclores, funerais e coiso e tal, a catarse da malta, colectiva, o fortalecimento da coesão do clã, quero dizer dos corpos da GNR e da PSP, das corporações representadas tenham levado estandarte ou não, de todos os “Quinta Condenses”, dos cães, parece ter sido um cão o detonador da cena marada, adorei, confesso que adorei ver todos aqueles lorpas na Tv, acho eu que lorpas, contra meu costume até comi uma sande a mais, entretido que estava com a coisa, com o folclore. Mas pensando bem, antes os da Quinta do Conde, porque a malta de Sesimbra é trinta vezes pior. São marados, deixam os barcos a apitar virados para terra na altura em que a procissão passa na marginal e rebentam com os tímpanos ao maralhal.

Recordei logo ali que mais sentido e mais bonito que aquilo só os esporádicos funerais de um ou outro motard, ou padre motard, com a maralha toda acelerando as motas, rodando devagarinho, nesses momentos adoro estar entre eles, snifando o cheiro dos escapes, o odor da gasolina sem chumbo, mais vivo, mais activo, com menos depósitos, não ultrapassa 130 gramas de CO2 por km e permite uma queima mais limpa, melhores acelerações e respostas mais rápidas à aceleração, uma delicia.

Mas é isto que a malta curte bué pá, a cena marada, o cota preso, a esposa coitadinha que não suportava o ladrar do cão, os manos que se foram desta para melhor por causa de uma pêga neurótica, nada disto teria sucedido se ela tivesse que governar a vidinha, lavar escadas ou atacar licenciosamente na estrada para o Montijo em vez de uma vida de ociosidade e novelas.

Isto não vi nem ouvi na Tv, mas imagino eu tentando não me afastar da verdade dos factos, até por haver ali muito romantismo, o marido provou ser homem dos sete costados e provou amá-la como ninguém, pois nem matou o cão mas os chulos que o alimentavam e se calhar incentivavam a ladrar à lua, exasperando a pobre e citada esposa, sublinho o se calhar, pois eu gosto de ser objectivo e detesto afastar-me da verdade das coisas sem as devidas cautelas, precauções e avisos à navegação, isto é aos que ainda têm paciência de me ouvir, quero dizer ler.

Contudo admito que o façam por comodidade, param e recomeçam quando querem, abandonam se o desejarem, e nem têm que abrir a bocarra, o que resulta extremamente convidativo se atendermos a que o tuga na generalidade detesta debates, discussões, diálogos e tudo que o faça pensar, contestar, contrapor, afirmar, deduzir, induzir, conduzir (no caso um argumento, ou uma temática, uma afirmação, uma ideia), o tuga é comodista e bem pensante, e bem mandado já agora, pois adora obedecer, ao chefe, ao patrão, ao director, ao presidente, ao vereador, ao assistente, ao lente, ao doutor, ao engenheiro, e até ao taberneiro, ao académico, coisa que faz lépido e nunca céptico.

No fundo, raros tugas têm ideias próprias e convicções, usam as alheias por ser mais cómodo e como tal vivem atafulhados de contradições… O tuga raramente se engana e nunca tem dúvidas (tem dividas) por isso somos um país de encantar, um país de purguesso, moderno, desenvolvido, o tuga tem ideias feitas, alavancadas, bem fundamentadas, por isso está servido e já nem discorre, já não regateia, já não discute, nem debate, nem chateia.

Duvidas? Experimenta partilhar numa qualquer rede social um qualquer pensamento profundo ou um ditirambo e repara como a malta se alheia, contudo, se lá colocares um dichote, um piadão alarve junto de uma poia de merda os comentários e os likes caem como moscas. Queres melhor exemplo ?

O tuga é sabichão, o tuga não aceita um não, e se aceita é porque rola em circuito fechado, no circuito vicioso dos sim, seja académico seja familiar seja de amigos. Um estranho jamais lhe dirá um não, pois o tuga nem lhe estende a mão, mantem-no fora da conversa, fora do circuito impresso do que interessa, e ao tuga pouca coisa interessa, o tuga adora chafurdar na merda e foge do confronto sério como gato de água, ou então circunscreve-o, aos acólitos, aos apaniguados, aos irmãos e aos cunhados, é endogamia pura, disse-o já por várias vezes, e isso mata, e além de matar não ata nem desata, e a kultura ? Kultura vem de kolt ? Se lhe falam de kultura na melhor das hipóteses o tuga puxa da pistola.

O mundo oscila, a Europa abana, o país deu uma cambalhota completa, e o que nos dizem as sondagens ?

- Tudo como dantes Quartel General em Abrantes !

E se ainda tens dúvidas vai chatear a tua tia. Vou almoçar. Almoçar e papar mais umas formigas se por lá aparecerem. Afinal quantas cada um de nós terá já comido sem se aperceber ?  Um dia destes até vi na National Geographic um bicharoco qualquer, robusto, cheio de saúde, e que só comia formigas. E então ? Soltai a língua. Agitai os neurónios, sacudi os miolos, usai os axónios !

- Eh eh eh eh eh eh eh ! A Super Bock a copo diz ele, continua a melhor !

Diz ele, o Honório…


A DAMA ACOMPANHANTE DO SENHOR REITOR

 274 A DAMA E ACOMPANHANTE DO SENHOR REITOR *


                 - Estás a topá-lo ? Jamais faríamos alguma coisa dele…

A frase, sibilina, concentrava todo um mundo, delineava todo o futuro, julguei ter sido o único a ouvi-la, mas estava enganado, a acompanhante do senhor reitor também a ouvira, conforme eu teria meia hora depois oportunidade de constatar e confirmar.

Embora a triste noticia não tenha sido novidade para mim deixou-me alguma apreensão, e, para ser sincero, também alguma curiosidade. Adoeceu o meu amigo reitor, que já há algum tempo padecia de males sezões e febres manhosas, coisa que era somente do conhecimento dos mais chegados pois temia-se que o estigma da doença afastasse as pessoas de casa, o que foi duramente conseguido graças à cumplicidade de todos, em especial da família que escondeu muito bem a marosca.

Lamento-o, e lamento sobretudo que, mau grado o esforço que durante anos ele colocara em pôr-se nos bicos dos pés não tenha servido para nada, tanto trabalho desenvolvido, tanto golpe de rins, tanto sapo engolido, vai-se a ver para nada, é triste. Foi triste de ver. Certamente tudo aquilo fazia sem esforço, quem corre por gosto não cansa, mais a mais depois da aposentação entendia essas jogadas diplomáticas como um hobby, um entretém, uma distracção, embora nós, os mais próximos, estivéssemos bem cientes dele mesmo estar apenas a projectar o seu orgulho, a sua vaidade pessoal, coisa deveras íntima e para ele muito importante, talvez mais importante que tudo.

Há muito alcançara e ultrapassara o patamar da realização pessoal, esta jogada, este hobby deveria antes ser inserido no âmbito dos desafios individuais, inda que fosse um projecto envolvendo outros, que arrastasse outros e outras, aspecto meramente instrumental, e que conviria a mais alguém que não ele, no fundo era um projecto colectivo, perdão, retiro o colectivo pela conotação que pode dar à jogada, coisa que de todo não pretendo, diria portanto antes abrangente, mobilizador, congregador de mais intenções e vontades, ah! e de interesses, é muito importante não esquecer porque essa é uma das razões em que se funda tal projecto, desculpem, fundava. Com ele adoentado tudo terá ido por água abaixo, até as aspirações do senhor arquitecto, mas em especial a táctica e a estratégia do grande obreiro, porém doenças terminais ou velhice são mesmo isso, o findar ou finalizar de projectos e intenções, e destas, feliz ou infelizmente, sabemos como o inferno está cheio.

Era um segredo bem guardado cuja manutenção se não justifica já, com ele adoentado serão ignorados todos os seus ideais, ideias, projectos, sonhos, pesadelos, jogadas, tacticismos e estratégias. Que eu tenha conhecimento não serão um dia enterrados com ele os criados, os animais de estimação nem objectos pessoais, mais a mais todos sabíamos há muito da sua intenção e expressa vontade em ser cremado, e não consta que a família esteja pensando vir a contrariá-lo, portanto…

Portanto, pela óptica (com P) dos apaniguados quem perderá será sobretudo a cidade, os seus acólitos sempre tinham feito questão de fazer-se saber a todos que ele tinha um projecto para a cidade, ainda que alguém alguma vez o tivesse visto, que de certeza não vira, seria pois coisa bem guardada, guardada e resguardada que no segredo é que está a alma do negócio, e agora com ele assim, pelo menos o negócio já se foi, a menos que arranjem outro personagem, o que não é fácil, a julgar pelo guião que há tanto tempo o nosso amigo reitor vinha desempenhando e colocando em cena. 

Estava-se aproximando o timing para o tornar mais visível, mais actuante, mais impactante, e nem imagino o que irão fazer com as dezenas de artigos que já tinha preparados para difusão nos jornais locais, embora isso pouco me interesse. Tanto quanto sei os que calharam ao Rebocho escrever foram-lhe pagos a tempo e horas, isto é dentro do prazo, e nem terá o direito de reclamar se os aproveitarem noutro qualquer substituto, que isto das dedicações à cidade é mal que acaba mais cedo ou mais tarde por acometer todos os candidatos, e que os leva a jurar-lhe a sua fidelidade ou a escrever-lhe e dedicar-lhe um livro depois de baterem três vezes seguidas com a mão no peito, o que se aconselha façam preferencialmente de punho fechado e ar compungido.

Mas rei morto rei posto, e ainda que o meu lamento vá para o querido amigo reitor a minha curiosidade aponta contudo para o substituto. Quem irão desenterrar agora ? E com que passado ? Com que pergaminhos ? Bem sei como alguns são fáceis de fabricar, (mas nem todos) e que este povo abre a boca e come tudo quanto pela goela abaixo lhe enfiem, tudo… Mas mesmo assim a minha mórbida curiosidade (desculpai-me no contexto o recurso a esta expressão) não desarma.  

                Não será fácil, quando muito do material a dar à estampa (tudo?) e já preparado, textos laudatórios, fotos com bebés ou velhotas, fotos sorridente e bronzeado como se o futuro fossem umas férias na praia, textos com as suas radiantes ideias para a cidade, fotos com os amigos, em especial o arquitecto, e com o povo, em vários ângulos, poses e situações, confesso admirar-me como as terá conseguido, ou onde, tão elitista e pouco amigo de misturas que o meu amigo reitor era, mas enfim, estratégias são estratégias e coisa com a qual nunca tive nem tenho a ver.

  Claro que eu sabia que o senhor reitor jamais seria eleito, o senhor reitor podia ser o homem perfeito mas carregava um defeito pessoal irrevogável que inviabilizava por completo a sua escolha. O senhor reitor não dobrava nem quebrava, o senhor reitor estava habituado a mandar e não a que mandassem nele, o senhor reitor estava habituado a ordenar e não a cumprir, o senhor reitor não se enquadrava no perfil desejado, pura e simplesmente o senhor reitor não tinha perfil, tinha perfil a mais. Eu cedo compreendera, e a sua acompanhante compreendeu-o naquela noite, andar entre aquela gente em bicos dos pés nunca passaria de tempo perdido, o seu reitor jamais seria o escolhido.

Ao menos um dia morrerá feliz, morrerá sem ter compreendido o tapete que sempre lhe fora estendido, e puxado, o senhor reitor sempre tivera o ego envaidecido, sempre fora alimentado na sua vaidade, sempre fora conduzido pela trela que, enquanto garantia a sua disponibilidade, evitava que desorbitasse, mantinha-o eternamente vogando em redor do núcleo, orbitando o núcleo de interesses, quiçá aspirando a incluir os seus próprios neutrões e electrões e alterando toda a física quântica programada, o que os chefões jamais admitiriam, derivado advir daí o perigo de reacção por fissão descontrolada do núcleo.

Meia hora depois, e enquanto eu meditava na sorte do meu amigo reitor, com filhos felizmente já criados, a acompanhante bem sentida, abatida, inteligente, subtil como poucas mulheres o são, ela que percebera de imediato numa impressão mil ideias que ao comum dos mortais escapam toda a vida por entre as mãos, olhou em redor todos quantos cirandavam no salão e, chamando-me com um gesto leve dos lábios, a mim, o único em quem depositava confiança (confidenciou-me depois), deu-me o braço e, sussurrando-me:

- Leve-me daqui Baião que já não posso com esta gentinha…

Desapareceu comigo rumo a casa, parámos naquela esplanada com vista para o Estabelecimento Prisional de Évora, falámos da saúde da minha esposa, do presidiário 44 que há pouco abalara rumo a casa, bebemos umas cervejas com uns caracóis mal amanhados, depois, e como já era tarde, deixei-a triste e desolada em casa e rumei à minha…

* A morte do senhor reitor foi por mim errada e prematuramente anunciada em 11 de Novembro de 2015 como se poderá constatar pela datação deste texto. Verdade que há cinco anos atrás o dei por morto, mas a vida a todos surpreende pelo menos uma vez e ele, que há duas décadas se vinha colocando em bicos dos pés e ambicionando o prestígio duma presidência aí está de novo, renascido das cinzas, e pronto para as curvas e para as rectas.......

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

273 - O FADO DE DEODATA ....................................

                                

               Ela não imagina, mas quis a sorte, a sina, o destino ou o fado que Deodata tivesse nascido numa família numerosa, ainda que não houvesse necessidade de dividir uma sardinha por todos, nunca deixou de existir uma absurda competição pelos mimos prodigalizados numa parentela cujo existir lutava por uma sobrevivência digna. Era uma casa portuguesa com certeza, gente trabalhadora, amante do caldo verde e dos cortinados de chita às florzinhas. Muito provavelmente de um gato ou um cão, que comporiam ainda o quadro em cujo cenário seria desenhado igualmente um equino, preferencialmente em pose garbosa e de crina farta.

Naquela casa a felicidade nunca fora tanta que pudessem andar aos pontapés a ela, é certo que também não eram de temer nuvens negras no horizonte, mas comedimento e parcimónia, como a presunção e a água benta,  seriam os pratos do dia, e Deodata bem o sabia.

Neste ambiente familiar eram disputados quer os miminhos quer o colinho dos pais, já que um deles não seria muito atreito a manifestar exteriormente as suas emoções e afeições, facto que só avivava a disputa pelas graças disponíveis. Sorrateiramente a competição por elas entrava nas suas vidas e esses momentos Deodata passava-os atenta, para não perder a oportunidade e, se calhava uma irmã mais afoita ultrapassá-la no mister não se perdoava e ressentia-se, como se fosse traída, já que o fora nos seus propósitos.

Sem que o pressentisse esta disputa sub-reptícia instalar-se-ia insidiosa no mais fundo do seu ser. Detestava ser ultrapassada, abominava ver escapar-se-lhe por entre os dedos tudo que quer que augurasse e, secretamente alimentava animosidades que se faziam velhas contra quem lhe alterasse o rumo ao destino que traçara. Não gostava de perder nem a feijões. Deodata passou assim a ser senhora de si e de um cada vez mais perceptível e indisfarçável rancor, o qual crescia na razão directa da insegurança que passou a sentir, ou sentia, em cada situação vivida.  

Era um rancor amedrontado, ou antes um medo rancoroso, que tomou conta dela antes de ter conseguido determinar a vontade e o domínio de si mesma, medo e rancor que aos poucos fizeram dela, mulher linda e madura, uma pessoa temente e insegura, e de tal modo que, antes de pressentir o medo ela afivelava uma resposta automática cuja rigidez e dureza de conduta se encarregariam de, por ou para uma sua e muito antecipada protecção, colocar a milhas os mais afoitos, simpáticos, amáveis ou sorridentes que se atrevessem a chegar-lhe ao pé. Interrogo-me por vezes se Deodata terá inexplicavelmente sido muito amada, e posteriormente abandonada, trocada, resumindo, traída.

Primeiro com as irmãs. Instalou-se entre ela e elas a figura de Electra, anos mais tarde entre ela e os namorados que iam aparecendo foi a vez de Édipo. Seriam estes complexos que, ao invés de Cupido, ditariam a sorte das suas relações e o confinamento dos seus padrões, o chamar sobre ela as atenções, o fechar sobre si as soluções, e, a exemplo de Salazar, passar a professar religiosamente o mesmo “orgulhosamente só” que se em política dificilmente se compreenderia, agora constituía uma aberração incontornável que surpreendentemente parecia fazê-la feliz.

Poderia se junto dos especialistas insistisse, descobrir ou talvez ver diagnosticada uma psicose aguda ou profunda, somática, e ainda que o não entendesse era o sentir, seria a causa/efeito, explicaria ao menos aquele rancor assumido e colocado em prática que a alimentava e mantinha viva.

Essa psicopatia tornara-se parte de si própria, tornara-se um suplicio redentor e nem saberia dizer quando essa aversão se transmutara de amedrontada e medrosa em avassaladora, em imperiosa, em droga e doping que a mantinham viva e lhe satisfaziam ou amoleciam como um silício os desejos do corpo que, desse modo eram sublimados, amortecidos, e por sua vez reciclados em novas e renovadas investidas contra quem ousasse acercar-se de si, tornar-se mais próximo, quiçá mais intimo.

Resplandeciam, reverberavam nela as nervuras do ser e as veias do viver a cada recusa disparada com desdém, como se Deodata a cuspisse na face de outrém e fosse o alfa e o ómega dos seus dias agora, e não a compreensão ou aceitação do outro, mas a sua repulsão, o seu afastamento, como se nesse gesto pudesse estar contida toda a raiva de quando mimos e colo lhe não foram proporcionados, ou oferecidos, ou como se purificasse na fogueira todo o atrevido que num momento de paixão ou euforia lhe tivesse oferecido o coração.

Deodata ficou pra tia.

Será caso para dizer que nem por isso enxergava a estrada monótona e de uma só via em que se transformara a sua vida, uma estrada sem fim, sem árvores, poeirenta, seca, bafienta. Nem via nem ouvia quem se atrevesse a gritar-lhe a verdade, descobrir-lhe a verdade ou desmontar-lhe o artifício insidioso da falsidade erigida à monumentalidade ofuscante mas perigosa do escorpião a quem, todos o sabem, o frémito da morte corre nas veias, na natureza do sangue, na essência do ser, na genética.

Por isso lhe correm monocórdicos os dias, sem sobressaltos que autorizem o menor facto a descortinar-lhe horizontes diferentes, reclusa e vitima da sua couraça artificialmente impenetrável mas que, incapaz de despir, lhe atormenta as noites com o peso da insónia, soando como gota de água em torneira mal cerrada, cujo pingar se avoluma do leve toque de um sininho ao ribombar de um gongo roubando-lhe a paz, o sossego, o descanso, o sonhar, o esperançar, o devir.

Desejar-lhe-ei, um dia que calhe rezar na sua campa que descanse em paz. Mudar-lhe-ei as flores, a água bafienta das jarras, e semearei na sua campa rasa flores novas, rosas, cravos, crisântemos, gerânios, dálias, malmequeres, e verdura q.b.

Não esquecerei uma pequena lápide;

“Aqui jaz quem a teimosia guardou e o orgulho hasteou”.

Paz á sua alma.

R. I. P. 
                         



quarta-feira, 2 de setembro de 2015

272 - DYANE .................................................................



Não é costume acontecer-me, e muito menos a cores, mas desta vez foi tal e qual, aconteceu, foi colorido, mas sobretudo movimentado e recheado de pormenores.

Eu tinha jantado com o Adalberto, com ele e com aquela maralha toda, meia dúzia de alguns que conhecia bem, outra dúzia de outros que já não via há muito tempo, talvez anos, ou décadas, todos e todas que nem lagosta depois das vacances de Agosto, passadas aqui no nosso cantinho à beira mar plantado claro.

Foi uma jantarada opípara, de reis, só a carta de vinhos representava mais de meia dúzia de países europeus. Os portugueses, que venceram sem a menor duvida ou dificuldade, dezassete garrafas vazias no fim da festa contra onze francesas, nove italianas duas holandesas duas belgas, uma luxemburguesa, uma norueguesa e outra sueca. Em casa Reguengos e Redondo bateram aos pontos a Vidigueira e Borba. No final alguns tocaram no Porto outros no Moscatel, e houve ainda quem tivesse beberricado algumas mistelas estrangeiras de nomes apaneleirados.

Sem duvida que a idade e a experiencia tudo nos dão, e pela primeira vez na vida regressei a casa de carro, no meu, ao volante, e não de táxi, com amigos, ou de gatas. O sonho lembrou-me ainda de um episódio em casa da Lena L. e do João T. em que me obriguei a trancar a porta da casa de banho enquanto com o dedo espetado fazia círculos no vomitado, tentando desentupir o ralo do lavatório pois nem tivera tempo de gritar pelo Gregório na sanita mesmo ao lado. Mas nessa época eu era uma criança, casado há um ou dois anos, e nem beber sabia, depois fui refinando a coisa e hoje nem perto fico de dar as barracas que já dei, como subir as escadas do 3º andar da Heróis do Ultramar às 3 ou 4 da manhã todo babado e balbuciando:

- “ Quero a minha Luisinha que ela é que me compreende “

E na verdade compreendia e segurava-me a cabeça e a testa, para não errar a sanita, sempre me ajudou quanto pôde. Ajuda-me há quarenta anos, e nunca lhe dei um desgosto ou fiz qualquer figura triste, e isso é que conta. E muito.

Mas desta vez a coisa correu mesmo bem, bom ambiente, bons vinhos, boa rapaziada, boa malta e que eu há muito não via, as senhoras estavam lindas, todas, bronzeadas umas e lagostadas outras, as crianças todas felizes mas…  Mas na generalidade todos eles escondendo a apreensão pelo rumo que as coisas tomam na Europa quanto aos imigrantes e o rumo que o parlapiê toma por cá quanto aos emigrantes, mas nesse dia todos nos calámos e só o desmancha-prazeres do César (tem a mania que é o imperador da península) teve o mau gosto de queimar umas certas bandeiras partidárias, foi o suficiente para a criançada e a gaiatagem quase terem estragado a festa, puxado fogo ao restolho, aos fardos e ao celeiro da quinta do Xarepe e ele, se não estivesse como estava, teria metido todos na alheta e teria que devolver a cada um o pecúlio cobrado à entrada com a desculpa de que era para reparar o caramanchão e remendar a piscina.

Devo estar a delirar e a desviar-me do essencial, do cerne da questão que são os coloridos e movimentados sonhos que esta noite me acudiram e avivaram a memória. Confesso ter até sentido pena quando, pelo meio-dia e tal, o sol entrando pelos fuinhos do estore me atingiu em cheio na cara e me acordou de tão prazenteiras recordações. Foi um sonho lindo que durou, durou e durou como se fosse alimentado por pilhas Duracell e, nota curiosa, não divergiu, mau grado diversas derivações que sofreu, ou ramificações que atravessou, manteve o mesmo tema e os mesmos tempos em que as coisas, os factos se desenrolaram.

Um dos factos foi, nas suas variegadas vertentes, o carrinho novo que há umas décadas compráramos e as aventuras que com ele vivêramos. Já não fazem carros assim, até o comprámos por achar graça àquele anúncio (aconselho-vos vivamente a ver o primeiro link do vídeo indicado no fim do texto, dura 2 minutos mas é lindérrimo), “lá vai a D. Maria amais o seu belo carrinho, leva os meninos à escola, faz a compras de caminho, gasolina mal precisa, oficina nem pensar ! “

E era verdade, e foi assim que para a nossa Maria Luísa comprámos (ela e eu) o nosso primeiro descapotável ! Como por aqui é sempre verão, aquilo foi uma alegria sem fim ! Ao princípio ainda receei que a minha Maria se ajeitasse mal com as mudanças, mas mal vi como ela agarrava o cabeçote da alavanca das mudanças (no tablier) e o à vontade com que o manobrava, fiquei convencido. E manobrava-o muito melhor que eu ! Não demorou que não desse por ela a fazer oitos e cavalinhos com o seu belo carrinho, coisa que eu sempre temi pois achava que ele se inclinava demasiado. Já ela levava as suspensões ao limite com uma graça e um desaforo que fariam envergonhar qualquer homem. (menos eu claro).

Isto não se vira ! Dizia ela, e bumba, curvas a arregaçar a calça, quero dizer a suspensão e as rodas todas fora dos guarda-lamas, e na verdade nunca se virou, ela bem tentou mas nunca o conseguiu virar ! Fenomenal ! O que a gente passeou naquilo e, oficina nem pensar, e gasolina nem vê-la ! 

              Quando aterrou o primeiro Space Shuttle a sério, a nave Columbia, (a Enterprise nunca passou de experimental e de órbitas baixas), em Abril de 81, assistimos ao seu regresso enquanto comíamos uma francesinha no My Palace, no café Dili, no Capa Negra ou no Santiago pois desses dias só me lembro de que, quando nos deitávamos era já outro dia, e geralmente custávamos a dar com o hotel ou com a pensão ali para os lados dos Aliados. É pela memória dos acontecimentos que consigo ser tão preciso nas datas, e não, nunca subimos as escadas de gatas. Mas fui vomitando todo o Minho (dizem que é lindo) e toda a Coruña até à Torre de Hércules de onde mandei a última bolsada. Depois dali até Biarritz a Luisinha fazia de cicerone e a viagem foi linda com a Dyane parecendo um barco em mar agitado galgando as serras das Astúrias e Cantábria, País Basco até aportar à mais famosa e mais feia praia de França.

Uns anos mais tarde andávamos de novo pelo norte relembrando as voltas com a Dyane feitas uns dez anos atrás, (mais uma vez são os factos a fixar-me as datas aos locais), subíramos até Vila Nova de Foz de Côa para mirar as tais pinturas rupestres que inviabilizaram uma barragem e iludiram toda a agente, devíamos estar por 94 ou 95 e alambazávamo-nos com a gastronomia do norte, nesse dia foi quase um directa até ao Porto, salvo erro parámos e pernoitámos em Peso da Régua, comia-mos que nem abades e tomávamos banho em Alvarinho, era um perigo andarmos nas estradas, pois mesmo assim percorremos todo o Minho e amesendámos em Valença, de cujas árvores junto à fortaleza, e floridas, não esqueci jamais a beleza.

Depois foi descer por aí abaixo, contornando um incêndio tenebroso em Chaves ou Viseu, só parando na Guarda porque após o jantar cá sua Ex.ª nem era capaz de se levantar, havia feira, ou festas, os edifícios tinham acabamentos em granito rude, a Luisinha, como sempre, aparando-me a testa, e é tudo que me lembro para além da Dyane branca e das maravilhosas viagens nela.

Foi um carro maravilhoso, o nosso primeiro carro novo, mesmo novo, em primeira mão, o nosso primeiro descapotável, nem era um carro, era todo um modo de vida que viera com ele no porta luvas, a liberdade, o vento, a economia, na letra mensal, no consumo, o meu Luís punha-se de pé nos bancos com a cabeça de fora e adorava, uma vez foi desenrolando rolos de papel higiénico de Cádis a Algeciras só para ver o efeito !

Linda viagem essa a Ceuta, o barco, o mar, estreito ali, as cabras dançando no topo de uma bengala, a primeira máquina fotográfica de qualidade que tivemos, recuerdo de contrabando e que anos mais tarde vendemos ao meu amigo Alfredo que adoravas as Leica, com pena dela me desfiz mas era difícil de manusear, uma Leica com carradas de botões, complicada demais para mim que abomino tudo que tenha mais de três. Aliás, o facto de possuirmos tão poucas fotografias desse período das nossas vidas tem que ver com essa super-especial Leica, uma máquina boa demais para a época, ou para nós, ele era a abertura, a luminosidade, o zoom, + o D e o E, o F e o G, e se calhava acertar numa ou duas esquecia regular as outras pelo que as poucas fotos que ficaram bem só se devem ao facto de a maquina ser mesmo boa, boa demais, e serão uma dúzia de fotos se tanto.

Se era pesada a Leica, na mota uma enorme desvantagem como poderão calcular. A Dyane palmilhava e galgava a Estremadura e a Andaluzia que era uma beleza, e quilómetros e quilómetros de areais cinzentos de um lado e de outro da estrada que eu pensava nada produzirem, mas produziam, milhas e milhas de pomares de laranjeiras, um mar a perder de vista, e de vez em quando uma “finca” onde eram embaladas logo com saquetas e rótulos de «Laranja do Algarve», e se calhar para lá exportadas. Já nessa altura o Algarve era o pomar da nação, isto há uns trinta ou quarenta anos que as balizas naturalmente me falham, talvez culpa daqueles queijos de ontem, Parmesão e Roquefort que uns quaisquer emigrantes trouxeram para o jantar.

Um dia destes chateei-me com um, um tipo meu amigo de infância que está na Holanda ofendeu-se porque eu disse que ele era emigrante, e não, não e não, ele era imigrante ! E esta hem  ? Chamei-lhe emigrante  e ele ofendeu-se. É que ele é imigrante respondeu-me ! E era-o com muita honra ! Nada de confusões ! É um migrante em fuga de emigrante para imigrante…

Esqueçamos isso mas não esses ricos dias, rico carro, rico gaiato, ricas cenas, rica Luisinha, as ricas voltas que demos naquele carro espectacular e rica gaiata que  eu amava loucamente, e ainda amo, e que tudo fazia e fez não conseguindo, antes evitando porém virá-lo !

Uma vez depois de muito cabriolar descemos até à Nazaré, via praia, muito nevoeiro de manhã e muito sol de tarde, rica comida, ricas sestas, rico cinema, rico teleférico, rico “Sítio”, rica Luisinha e a mão na testa, ricas sardinhas, marisco, peixe variado e grelhado, ricos jantares, para ser franco jantávamos como se fossemos reis, ou como se não comêssemos havia um mês, ou dois, ou três, como se fôramos náufragos acabados de dar à praia. Ricas farras...

            Contudo, e apesar da tal Leica de maravilhar e encantar, nunca por nunca nos deu a mania de fotografar a comezaina para mostrar aos amigos nos serões em que se contavam as férias de cada um, contavam bebiam e comemoravam, ou, se fosse hoje, para prantar nas redes sociais. Comíamos bem, mas não porque andássemos esfaimados...

Bom jantar.









Fotos tiradas com Leica  super - especial 


Fotos tiradas com Leica  super - especial







Maria Luísa Baião / Ceuta / Gibraltar / 1983 Travessia 
do estreito  Fotos tiradas com Leica  super - especial







                                                                
Maria Luísa Baião- Biarritz - 1985  Fotos tiradas com Leica  super - especial 








domingo, 30 de agosto de 2015

271 - JARDIM ERA PÚBLICO, NÃO DA CELESTE


JARDIM ERA PÚBLICO, E NÃO DA CELESTE

Estava rebentando de passarinhos e gentes
De árvores frondosas, cadelas no cio e Guys apaixonados
À entrada transeuntes, fotógrafos e indigentes
Foi aqui que escolhi sentar-me, pedir cafés gelados

O dia solarengo estava, os cisnes grasnando
A vontade imperando e, na esplanada quási deserta
Umas costas nuas em aberto vestido se estampando
A pele alva, os altos da coluna,  a sede que desperta

Nessa mesa ao lado, sentada, essa mulher liberta,
Liberta feromonas que o vento p’lo jardim dispersa
Perfume que nas redondezas todos os cães alerta
E aos poucos se vai formando matilha, que a cerca

Um oferece primoroso licor, um outro linda flor
O terceiro, chá de limão, um quarto seu próprio coração
A senhorita sorri, e de tão cortejada se diz e desdiz, por amor
Mas tanto ladrar incomoda, e se vai embora, dizendo a todos não

Jardim fica logo ali triste, o dia todo ele como breu
Metade do pessoal, como pardais, levantou, e debandou
E nós agora ? Disse entreolhando-se amigo meu
Embora também, dia ficou judeu e linda flor flor murchou

Montei no motão e engrenei mudança
Rumei à Billette, sempre ensolarada
Mandei vir mais café e bolo de abastança
Reclinei ao sol, meti pés na mesa, manhã acabada

Depois o almoço, e a sesta mexicana
O glúten ruminado, o colesterol guardado
Sacarose absorvida, energia armazenada
Amanhã a nova semana me apanhará preparado

Humberto Baião – Évora, 30 de Agosto de 2015