sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A DAMA ACOMPANHANTE DO SENHOR REITOR

 274 A DAMA E ACOMPANHANTE DO SENHOR REITOR *


                 - Estás a topá-lo ? Jamais faríamos alguma coisa dele…

A frase, sibilina, concentrava todo um mundo, delineava todo o futuro, julguei ter sido o único a ouvi-la, mas estava enganado, a acompanhante do senhor reitor também a ouvira, conforme eu teria meia hora depois oportunidade de constatar e confirmar.

Embora a triste noticia não tenha sido novidade para mim deixou-me alguma apreensão, e, para ser sincero, também alguma curiosidade. Adoeceu o meu amigo reitor, que já há algum tempo padecia de males sezões e febres manhosas, coisa que era somente do conhecimento dos mais chegados pois temia-se que o estigma da doença afastasse as pessoas de casa, o que foi duramente conseguido graças à cumplicidade de todos, em especial da família que escondeu muito bem a marosca.

Lamento-o, e lamento sobretudo que, mau grado o esforço que durante anos ele colocara em pôr-se nos bicos dos pés não tenha servido para nada, tanto trabalho desenvolvido, tanto golpe de rins, tanto sapo engolido, vai-se a ver para nada, é triste. Foi triste de ver. Certamente tudo aquilo fazia sem esforço, quem corre por gosto não cansa, mais a mais depois da aposentação entendia essas jogadas diplomáticas como um hobby, um entretém, uma distracção, embora nós, os mais próximos, estivéssemos bem cientes dele mesmo estar apenas a projectar o seu orgulho, a sua vaidade pessoal, coisa deveras íntima e para ele muito importante, talvez mais importante que tudo.

Há muito alcançara e ultrapassara o patamar da realização pessoal, esta jogada, este hobby deveria antes ser inserido no âmbito dos desafios individuais, inda que fosse um projecto envolvendo outros, que arrastasse outros e outras, aspecto meramente instrumental, e que conviria a mais alguém que não ele, no fundo era um projecto colectivo, perdão, retiro o colectivo pela conotação que pode dar à jogada, coisa que de todo não pretendo, diria portanto antes abrangente, mobilizador, congregador de mais intenções e vontades, ah! e de interesses, é muito importante não esquecer porque essa é uma das razões em que se funda tal projecto, desculpem, fundava. Com ele adoentado tudo terá ido por água abaixo, até as aspirações do senhor arquitecto, mas em especial a táctica e a estratégia do grande obreiro, porém doenças terminais ou velhice são mesmo isso, o findar ou finalizar de projectos e intenções, e destas, feliz ou infelizmente, sabemos como o inferno está cheio.

Era um segredo bem guardado cuja manutenção se não justifica já, com ele adoentado serão ignorados todos os seus ideais, ideias, projectos, sonhos, pesadelos, jogadas, tacticismos e estratégias. Que eu tenha conhecimento não serão um dia enterrados com ele os criados, os animais de estimação nem objectos pessoais, mais a mais todos sabíamos há muito da sua intenção e expressa vontade em ser cremado, e não consta que a família esteja pensando vir a contrariá-lo, portanto…

Portanto, pela óptica (com P) dos apaniguados quem perderá será sobretudo a cidade, os seus acólitos sempre tinham feito questão de fazer-se saber a todos que ele tinha um projecto para a cidade, ainda que alguém alguma vez o tivesse visto, que de certeza não vira, seria pois coisa bem guardada, guardada e resguardada que no segredo é que está a alma do negócio, e agora com ele assim, pelo menos o negócio já se foi, a menos que arranjem outro personagem, o que não é fácil, a julgar pelo guião que há tanto tempo o nosso amigo reitor vinha desempenhando e colocando em cena. 

Estava-se aproximando o timing para o tornar mais visível, mais actuante, mais impactante, e nem imagino o que irão fazer com as dezenas de artigos que já tinha preparados para difusão nos jornais locais, embora isso pouco me interesse. Tanto quanto sei os que calharam ao Rebocho escrever foram-lhe pagos a tempo e horas, isto é dentro do prazo, e nem terá o direito de reclamar se os aproveitarem noutro qualquer substituto, que isto das dedicações à cidade é mal que acaba mais cedo ou mais tarde por acometer todos os candidatos, e que os leva a jurar-lhe a sua fidelidade ou a escrever-lhe e dedicar-lhe um livro depois de baterem três vezes seguidas com a mão no peito, o que se aconselha façam preferencialmente de punho fechado e ar compungido.

Mas rei morto rei posto, e ainda que o meu lamento vá para o querido amigo reitor a minha curiosidade aponta contudo para o substituto. Quem irão desenterrar agora ? E com que passado ? Com que pergaminhos ? Bem sei como alguns são fáceis de fabricar, (mas nem todos) e que este povo abre a boca e come tudo quanto pela goela abaixo lhe enfiem, tudo… Mas mesmo assim a minha mórbida curiosidade (desculpai-me no contexto o recurso a esta expressão) não desarma.  

                Não será fácil, quando muito do material a dar à estampa (tudo?) e já preparado, textos laudatórios, fotos com bebés ou velhotas, fotos sorridente e bronzeado como se o futuro fossem umas férias na praia, textos com as suas radiantes ideias para a cidade, fotos com os amigos, em especial o arquitecto, e com o povo, em vários ângulos, poses e situações, confesso admirar-me como as terá conseguido, ou onde, tão elitista e pouco amigo de misturas que o meu amigo reitor era, mas enfim, estratégias são estratégias e coisa com a qual nunca tive nem tenho a ver.

  Claro que eu sabia que o senhor reitor jamais seria eleito, o senhor reitor podia ser o homem perfeito mas carregava um defeito pessoal irrevogável que inviabilizava por completo a sua escolha. O senhor reitor não dobrava nem quebrava, o senhor reitor estava habituado a mandar e não a que mandassem nele, o senhor reitor estava habituado a ordenar e não a cumprir, o senhor reitor não se enquadrava no perfil desejado, pura e simplesmente o senhor reitor não tinha perfil, tinha perfil a mais. Eu cedo compreendera, e a sua acompanhante compreendeu-o naquela noite, andar entre aquela gente em bicos dos pés nunca passaria de tempo perdido, o seu reitor jamais seria o escolhido.

Ao menos um dia morrerá feliz, morrerá sem ter compreendido o tapete que sempre lhe fora estendido, e puxado, o senhor reitor sempre tivera o ego envaidecido, sempre fora alimentado na sua vaidade, sempre fora conduzido pela trela que, enquanto garantia a sua disponibilidade, evitava que desorbitasse, mantinha-o eternamente vogando em redor do núcleo, orbitando o núcleo de interesses, quiçá aspirando a incluir os seus próprios neutrões e electrões e alterando toda a física quântica programada, o que os chefões jamais admitiriam, derivado advir daí o perigo de reacção por fissão descontrolada do núcleo.

Meia hora depois, e enquanto eu meditava na sorte do meu amigo reitor, com filhos felizmente já criados, a acompanhante bem sentida, abatida, inteligente, subtil como poucas mulheres o são, ela que percebera de imediato numa impressão mil ideias que ao comum dos mortais escapam toda a vida por entre as mãos, olhou em redor todos quantos cirandavam no salão e, chamando-me com um gesto leve dos lábios, a mim, o único em quem depositava confiança (confidenciou-me depois), deu-me o braço e, sussurrando-me:

- Leve-me daqui Baião que já não posso com esta gentinha…

Desapareceu comigo rumo a casa, parámos naquela esplanada com vista para o Estabelecimento Prisional de Évora, falámos da saúde da minha esposa, do presidiário 44 que há pouco abalara rumo a casa, bebemos umas cervejas com uns caracóis mal amanhados, depois, e como já era tarde, deixei-a triste e desolada em casa e rumei à minha…

* A morte do senhor reitor foi por mim errada e prematuramente anunciada em 11 de Novembro de 2015 como se poderá constatar pela datação deste texto. Verdade que há cinco anos atrás o dei por morto, mas a vida a todos surpreende pelo menos uma vez e ele, que há duas décadas se vinha colocando em bicos dos pés e ambicionando o prestígio duma presidência aí está de novo, renascido das cinzas, e pronto para as curvas e para as rectas.......