sexta-feira, 4 de setembro de 2015

273 - O FADO DE DEODATA ....................................

                                

               Ela não imagina, mas quis a sorte, a sina, o destino ou o fado que Deodata tivesse nascido numa família numerosa, ainda que não houvesse necessidade de dividir uma sardinha por todos, nunca deixou de existir uma absurda competição pelos mimos prodigalizados numa parentela cujo existir lutava por uma sobrevivência digna. Era uma casa portuguesa com certeza, gente trabalhadora, amante do caldo verde e dos cortinados de chita às florzinhas. Muito provavelmente de um gato ou um cão, que comporiam ainda o quadro em cujo cenário seria desenhado igualmente um equino, preferencialmente em pose garbosa e de crina farta.

Naquela casa a felicidade nunca fora tanta que pudessem andar aos pontapés a ela, é certo que também não eram de temer nuvens negras no horizonte, mas comedimento e parcimónia, como a presunção e a água benta,  seriam os pratos do dia, e Deodata bem o sabia.

Neste ambiente familiar eram disputados quer os miminhos quer o colinho dos pais, já que um deles não seria muito atreito a manifestar exteriormente as suas emoções e afeições, facto que só avivava a disputa pelas graças disponíveis. Sorrateiramente a competição por elas entrava nas suas vidas e esses momentos Deodata passava-os atenta, para não perder a oportunidade e, se calhava uma irmã mais afoita ultrapassá-la no mister não se perdoava e ressentia-se, como se fosse traída, já que o fora nos seus propósitos.

Sem que o pressentisse esta disputa sub-reptícia instalar-se-ia insidiosa no mais fundo do seu ser. Detestava ser ultrapassada, abominava ver escapar-se-lhe por entre os dedos tudo que quer que augurasse e, secretamente alimentava animosidades que se faziam velhas contra quem lhe alterasse o rumo ao destino que traçara. Não gostava de perder nem a feijões. Deodata passou assim a ser senhora de si e de um cada vez mais perceptível e indisfarçável rancor, o qual crescia na razão directa da insegurança que passou a sentir, ou sentia, em cada situação vivida.  

Era um rancor amedrontado, ou antes um medo rancoroso, que tomou conta dela antes de ter conseguido determinar a vontade e o domínio de si mesma, medo e rancor que aos poucos fizeram dela, mulher linda e madura, uma pessoa temente e insegura, e de tal modo que, antes de pressentir o medo ela afivelava uma resposta automática cuja rigidez e dureza de conduta se encarregariam de, por ou para uma sua e muito antecipada protecção, colocar a milhas os mais afoitos, simpáticos, amáveis ou sorridentes que se atrevessem a chegar-lhe ao pé. Interrogo-me por vezes se Deodata terá inexplicavelmente sido muito amada, e posteriormente abandonada, trocada, resumindo, traída.

Primeiro com as irmãs. Instalou-se entre ela e elas a figura de Electra, anos mais tarde entre ela e os namorados que iam aparecendo foi a vez de Édipo. Seriam estes complexos que, ao invés de Cupido, ditariam a sorte das suas relações e o confinamento dos seus padrões, o chamar sobre ela as atenções, o fechar sobre si as soluções, e, a exemplo de Salazar, passar a professar religiosamente o mesmo “orgulhosamente só” que se em política dificilmente se compreenderia, agora constituía uma aberração incontornável que surpreendentemente parecia fazê-la feliz.

Poderia se junto dos especialistas insistisse, descobrir ou talvez ver diagnosticada uma psicose aguda ou profunda, somática, e ainda que o não entendesse era o sentir, seria a causa/efeito, explicaria ao menos aquele rancor assumido e colocado em prática que a alimentava e mantinha viva.

Essa psicopatia tornara-se parte de si própria, tornara-se um suplicio redentor e nem saberia dizer quando essa aversão se transmutara de amedrontada e medrosa em avassaladora, em imperiosa, em droga e doping que a mantinham viva e lhe satisfaziam ou amoleciam como um silício os desejos do corpo que, desse modo eram sublimados, amortecidos, e por sua vez reciclados em novas e renovadas investidas contra quem ousasse acercar-se de si, tornar-se mais próximo, quiçá mais intimo.

Resplandeciam, reverberavam nela as nervuras do ser e as veias do viver a cada recusa disparada com desdém, como se Deodata a cuspisse na face de outrém e fosse o alfa e o ómega dos seus dias agora, e não a compreensão ou aceitação do outro, mas a sua repulsão, o seu afastamento, como se nesse gesto pudesse estar contida toda a raiva de quando mimos e colo lhe não foram proporcionados, ou oferecidos, ou como se purificasse na fogueira todo o atrevido que num momento de paixão ou euforia lhe tivesse oferecido o coração.

Deodata ficou pra tia.

Será caso para dizer que nem por isso enxergava a estrada monótona e de uma só via em que se transformara a sua vida, uma estrada sem fim, sem árvores, poeirenta, seca, bafienta. Nem via nem ouvia quem se atrevesse a gritar-lhe a verdade, descobrir-lhe a verdade ou desmontar-lhe o artifício insidioso da falsidade erigida à monumentalidade ofuscante mas perigosa do escorpião a quem, todos o sabem, o frémito da morte corre nas veias, na natureza do sangue, na essência do ser, na genética.

Por isso lhe correm monocórdicos os dias, sem sobressaltos que autorizem o menor facto a descortinar-lhe horizontes diferentes, reclusa e vitima da sua couraça artificialmente impenetrável mas que, incapaz de despir, lhe atormenta as noites com o peso da insónia, soando como gota de água em torneira mal cerrada, cujo pingar se avoluma do leve toque de um sininho ao ribombar de um gongo roubando-lhe a paz, o sossego, o descanso, o sonhar, o esperançar, o devir.

Desejar-lhe-ei, um dia que calhe rezar na sua campa que descanse em paz. Mudar-lhe-ei as flores, a água bafienta das jarras, e semearei na sua campa rasa flores novas, rosas, cravos, crisântemos, gerânios, dálias, malmequeres, e verdura q.b.

Não esquecerei uma pequena lápide;

“Aqui jaz quem a teimosia guardou e o orgulho hasteou”.

Paz á sua alma.

R. I. P.