Ela não imagina, mas quis a sorte, a sina, o destino ou o fado que Deodata tivesse nascido numa família numerosa, ainda que não houvesse necessidade de dividir uma sardinha por todos, nunca deixou de existir uma absurda competição pelos mimos prodigalizados numa parentela cujo existir lutava por uma sobrevivência digna. Era uma casa portuguesa com certeza, gente trabalhadora, amante do caldo verde e dos cortinados de chita às florzinhas. Muito provavelmente de um gato ou um cão, que comporiam ainda o quadro em cujo cenário seria desenhado igualmente um equino, preferencialmente em pose garbosa e de crina farta.
Naquela
casa a felicidade nunca fora tanta que pudessem andar aos pontapés a ela, é
certo que também não eram de temer nuvens negras no horizonte, mas comedimento
e parcimónia, como a presunção e a água benta, seriam os pratos do dia, e Deodata bem o sabia.
Neste
ambiente familiar eram disputados quer os miminhos quer o colinho dos pais, já
que um deles não seria muito atreito a manifestar exteriormente as suas emoções
e afeições, facto que só avivava a disputa pelas graças disponíveis. Sorrateiramente
a competição por elas entrava nas suas vidas e esses momentos Deodata passava-os
atenta, para não perder a oportunidade e, se calhava uma irmã mais afoita
ultrapassá-la no mister não se perdoava e ressentia-se, como se fosse traída,
já que o fora nos seus propósitos.
Sem
que o pressentisse esta disputa sub-reptícia instalar-se-ia insidiosa no mais
fundo do seu ser. Detestava ser ultrapassada, abominava ver escapar-se-lhe
por entre os dedos tudo que quer que augurasse e, secretamente alimentava
animosidades que se faziam velhas contra quem lhe alterasse o rumo ao destino
que traçara. Não gostava de perder nem a feijões. Deodata passou assim a ser senhora de
si e de um cada vez mais perceptível e indisfarçável rancor, o qual crescia na
razão directa da insegurança que passou a sentir, ou sentia, em cada situação
vivida.
Era
um rancor amedrontado, ou antes um medo rancoroso, que tomou conta dela antes
de ter conseguido determinar a vontade e o domínio de si mesma, medo e rancor
que aos poucos fizeram dela, mulher linda e madura, uma pessoa temente e
insegura, e de tal modo que, antes de pressentir o medo ela afivelava uma
resposta automática cuja rigidez e dureza de conduta se encarregariam de, por
ou para uma sua e muito antecipada protecção, colocar a milhas os mais afoitos,
simpáticos, amáveis ou sorridentes que se atrevessem a chegar-lhe ao pé. Interrogo-me
por vezes se Deodata terá inexplicavelmente sido muito amada, e posteriormente
abandonada, trocada, resumindo, traída.
Primeiro
com as irmãs. Instalou-se entre ela e elas a figura de Electra, anos mais tarde
entre ela e os namorados que iam aparecendo foi a vez de Édipo. Seriam estes
complexos que, ao invés de Cupido, ditariam a sorte das suas relações e o confinamento dos
seus padrões, o chamar sobre ela as atenções, o fechar sobre si as soluções, e,
a exemplo de Salazar, passar a professar religiosamente o mesmo “orgulhosamente
só” que se em política dificilmente se compreenderia, agora constituía uma
aberração incontornável que surpreendentemente parecia fazê-la feliz.
Poderia se junto dos especialistas insistisse, descobrir ou talvez ver diagnosticada uma psicose aguda
ou profunda, somática, e ainda que o não entendesse era o sentir, seria a causa/efeito, explicaria ao menos aquele rancor assumido e colocado em prática que a alimentava e
mantinha viva.
Essa
psicopatia tornara-se parte de si própria, tornara-se um suplicio redentor e
nem saberia dizer quando essa aversão se transmutara de amedrontada e medrosa
em avassaladora, em imperiosa, em droga e doping que a mantinham viva e lhe
satisfaziam ou amoleciam como um silício os desejos do corpo que, desse modo
eram sublimados, amortecidos, e por sua vez reciclados em novas e renovadas
investidas contra quem ousasse acercar-se de si, tornar-se mais próximo, quiçá
mais intimo.
Resplandeciam,
reverberavam nela as nervuras do ser e as veias do viver a cada recusa
disparada com desdém, como se Deodata a cuspisse na face de outrém e fosse o alfa e o ómega dos
seus dias agora, e não a compreensão ou aceitação do outro, mas a sua
repulsão, o seu afastamento, como se nesse gesto pudesse estar contida toda a raiva
de quando mimos e colo lhe não foram proporcionados, ou oferecidos, ou como se
purificasse na fogueira todo o atrevido que num momento de paixão ou euforia
lhe tivesse oferecido o coração.
Deodata ficou
pra tia.
Será
caso para dizer que nem por isso enxergava a estrada monótona e de uma só via
em que se transformara a sua vida, uma estrada sem fim, sem árvores, poeirenta,
seca, bafienta. Nem via nem ouvia quem se atrevesse a gritar-lhe a verdade,
descobrir-lhe a verdade ou desmontar-lhe o artifício insidioso da falsidade
erigida à monumentalidade ofuscante mas perigosa do escorpião a quem, todos o
sabem, o frémito da morte corre nas veias, na natureza do sangue, na essência
do ser, na genética.
Por
isso lhe correm monocórdicos os dias, sem sobressaltos que autorizem o menor facto a descortinar-lhe horizontes diferentes, reclusa e vitima da sua couraça
artificialmente impenetrável mas que, incapaz de despir, lhe atormenta as
noites com o peso da insónia, soando como gota de água em torneira mal cerrada,
cujo pingar se avoluma do leve toque de um sininho ao ribombar de um gongo
roubando-lhe a paz, o sossego, o descanso, o sonhar, o esperançar, o devir.
Desejar-lhe-ei,
um dia que calhe rezar na sua campa que descanse em paz. Mudar-lhe-ei as
flores, a água bafienta das jarras, e semearei na sua campa rasa flores novas,
rosas, cravos, crisântemos, gerânios, dálias, malmequeres, e verdura q.b.
Não
esquecerei uma pequena lápide;
“Aqui
jaz quem a teimosia guardou e o orgulho hasteou”.
Paz
á sua alma.
R.
I. P.