Não
é costume acontecer-me, e muito menos a cores, mas desta vez foi tal e qual,
aconteceu, foi colorido, mas sobretudo movimentado e recheado de pormenores.
Eu
tinha jantado com o Adalberto, com ele e com aquela maralha toda, meia dúzia de
alguns que conhecia bem, outra dúzia de outros que já não via há muito tempo,
talvez anos, ou décadas, todos e todas que nem lagosta depois das vacances de
Agosto, passadas aqui no nosso cantinho à beira mar plantado claro.
Foi
uma jantarada opípara, de reis, só a carta de vinhos representava mais de meia
dúzia de países europeus. Os portugueses, que venceram sem a menor duvida ou
dificuldade, dezassete garrafas vazias no fim da festa contra onze francesas,
nove italianas duas holandesas duas belgas, uma luxemburguesa, uma norueguesa e
outra sueca. Em casa
Reguengos e Redondo bateram aos pontos a Vidigueira e Borba.
No final alguns tocaram no Porto outros no Moscatel, e houve ainda quem tivesse
beberricado algumas mistelas estrangeiras de nomes apaneleirados.
Sem
duvida que a idade e a experiencia tudo nos dão, e pela primeira vez na vida
regressei a casa de carro, no meu, ao volante, e não de táxi, com amigos, ou de
gatas. O sonho lembrou-me ainda de um episódio em casa da Lena L. e do João
T. em que me obriguei a trancar a porta da casa de banho enquanto com o dedo
espetado fazia círculos no vomitado, tentando desentupir o ralo do lavatório
pois nem tivera tempo de gritar pelo Gregório na sanita mesmo ao lado. Mas
nessa época eu era uma criança, casado há um ou dois anos, e nem beber sabia,
depois fui refinando a coisa e hoje nem perto fico de dar as barracas que já
dei, como subir as escadas do 3º andar da Heróis do Ultramar às 3 ou 4 da manhã
todo babado e balbuciando:
- “
Quero a minha Luisinha que ela é que me compreende “
E na
verdade compreendia e segurava-me a cabeça e a testa, para não errar a sanita,
sempre me ajudou quanto pôde. Ajuda-me há quarenta anos, e nunca lhe dei um
desgosto ou fiz qualquer figura triste, e isso é que conta. E muito.
Mas
desta vez a coisa correu mesmo bem, bom ambiente, bons vinhos, boa rapaziada,
boa malta e que eu há muito não via, as senhoras estavam lindas, todas,
bronzeadas umas e lagostadas outras, as crianças todas felizes mas… Mas na generalidade todos eles escondendo a
apreensão pelo rumo que as coisas tomam na Europa quanto aos imigrantes e o rumo
que o parlapiê toma por cá quanto aos emigrantes, mas nesse dia todos nos
calámos e só o desmancha-prazeres do César (tem a mania que é o imperador da
península) teve o mau gosto de queimar umas certas bandeiras partidárias, foi o
suficiente para a criançada e a gaiatagem quase terem estragado a festa,
puxado fogo ao restolho, aos fardos e ao celeiro da quinta do Xarepe e ele, se
não estivesse como estava, teria metido todos na alheta e teria que devolver a
cada um o pecúlio cobrado à entrada com a desculpa de que era para reparar o
caramanchão e remendar a piscina.
Devo
estar a delirar e a desviar-me do essencial, do cerne da questão que são os
coloridos e movimentados sonhos que esta noite me acudiram e avivaram a
memória. Confesso ter até sentido pena quando, pelo meio-dia e tal, o sol
entrando pelos fuinhos do estore me atingiu em cheio na cara e me acordou de
tão prazenteiras recordações. Foi um sonho lindo que durou, durou e durou como
se fosse alimentado por pilhas Duracell e, nota curiosa, não divergiu, mau
grado diversas derivações que sofreu, ou ramificações que atravessou, manteve o
mesmo tema e os mesmos tempos em que as coisas, os factos se desenrolaram.
Um
dos factos foi, nas suas variegadas vertentes, o carrinho novo que há umas
décadas compráramos e as aventuras que com ele vivêramos. Já não fazem carros
assim, até o comprámos por achar graça àquele anúncio (aconselho-vos vivamente
a ver o primeiro link do vídeo indicado no fim do texto, dura 2 minutos mas é
lindérrimo), “lá vai a D. Maria amais o seu belo carrinho, leva os meninos à escola,
faz a compras de caminho, gasolina mal precisa, oficina nem pensar ! “
E
era verdade, e foi assim que para a nossa Maria Luísa comprámos (ela e eu) o
nosso primeiro descapotável ! Como por aqui é sempre verão, aquilo foi uma
alegria sem fim ! Ao princípio ainda receei que a minha Maria se ajeitasse mal
com as mudanças, mas mal vi como ela agarrava o cabeçote da alavanca das
mudanças (no tablier) e o à vontade com que o manobrava, fiquei convencido. E
manobrava-o muito melhor que eu ! Não demorou que não desse por ela a fazer
oitos e cavalinhos com o seu belo carrinho, coisa que eu sempre temi pois
achava que ele se inclinava demasiado. Já ela levava as suspensões ao limite
com uma graça e um desaforo que fariam envergonhar qualquer homem. (menos eu
claro).
Isto
não se vira ! Dizia ela, e bumba, curvas a arregaçar a calça, quero dizer a
suspensão e as rodas todas fora dos guarda-lamas, e na verdade nunca se virou,
ela bem tentou mas nunca o conseguiu virar ! Fenomenal ! O que a gente
passeou naquilo e, oficina nem pensar, e gasolina nem vê-la !
Quando aterrou o primeiro Space Shuttle a sério, a nave Columbia, (a Enterprise nunca passou de experimental e de órbitas baixas), em Abril de 81, assistimos ao seu regresso enquanto comíamos uma francesinha no My Palace, no café Dili, no Capa Negra ou no Santiago pois desses dias só me lembro de que, quando nos deitávamos era já outro dia, e geralmente custávamos a dar com o hotel ou com a pensão ali para os lados dos Aliados. É pela memória dos acontecimentos que consigo ser tão preciso nas datas, e não, nunca subimos as escadas de gatas. Mas fui vomitando todo o Minho (dizem que é lindo) e toda a Coruña até à Torre de Hércules de onde mandei a última bolsada. Depois dali até Biarritz a Luisinha fazia de cicerone e a viagem foi linda com a Dyane parecendo um barco em mar agitado galgando as serras das Astúrias e Cantábria, País Basco até aportar à mais famosa e mais feia praia de França.
Quando aterrou o primeiro Space Shuttle a sério, a nave Columbia, (a Enterprise nunca passou de experimental e de órbitas baixas), em Abril de 81, assistimos ao seu regresso enquanto comíamos uma francesinha no My Palace, no café Dili, no Capa Negra ou no Santiago pois desses dias só me lembro de que, quando nos deitávamos era já outro dia, e geralmente custávamos a dar com o hotel ou com a pensão ali para os lados dos Aliados. É pela memória dos acontecimentos que consigo ser tão preciso nas datas, e não, nunca subimos as escadas de gatas. Mas fui vomitando todo o Minho (dizem que é lindo) e toda a Coruña até à Torre de Hércules de onde mandei a última bolsada. Depois dali até Biarritz a Luisinha fazia de cicerone e a viagem foi linda com a Dyane parecendo um barco em mar agitado galgando as serras das Astúrias e Cantábria, País Basco até aportar à mais famosa e mais feia praia de França.
Uns
anos mais tarde andávamos de novo pelo norte relembrando as voltas com a Dyane
feitas uns dez anos atrás, (mais uma vez são os factos a fixar-me as datas aos
locais), subíramos até Vila Nova de Foz de Côa para mirar as tais pinturas
rupestres que inviabilizaram uma barragem e iludiram toda a agente, devíamos
estar por 94 ou 95 e alambazávamo-nos com a gastronomia do norte, nesse dia foi
quase um directa até ao Porto, salvo erro parámos e pernoitámos em Peso da
Régua, comia-mos que nem abades e tomávamos banho em Alvarinho, era um perigo
andarmos nas estradas, pois mesmo assim percorremos todo o Minho e amesendámos
em Valença, de cujas árvores junto à fortaleza, e floridas, não esqueci jamais a beleza.
Depois
foi descer por aí abaixo, contornando um incêndio tenebroso em Chaves ou Viseu, só parando na Guarda porque após o jantar cá sua Ex.ª
nem era capaz de se levantar, havia feira, ou festas, os edifícios tinham
acabamentos em granito rude, a Luisinha, como sempre, aparando-me a testa, e é
tudo que me lembro para além da Dyane branca e das maravilhosas viagens nela.
Foi
um carro maravilhoso, o nosso primeiro carro novo, mesmo novo, em primeira mão,
o nosso primeiro descapotável, nem era um carro, era todo um modo de vida que
viera com ele no porta luvas, a liberdade, o vento, a economia, na letra
mensal, no consumo, o meu Luís punha-se de pé nos bancos com a cabeça de fora e
adorava, uma vez foi desenrolando rolos de papel higiénico de Cádis a Algeciras
só para ver o efeito !
Linda
viagem essa a Ceuta, o barco, o mar, estreito ali, as cabras dançando no topo
de uma bengala, a primeira máquina fotográfica de qualidade que tivemos,
recuerdo de contrabando e que anos mais tarde vendemos ao meu amigo Alfredo que
adoravas as Leica, com pena dela me desfiz mas era difícil de manusear, uma
Leica com carradas de botões, complicada demais para mim que abomino tudo que
tenha mais de três. Aliás, o facto de possuirmos tão poucas fotografias desse
período das nossas vidas tem que ver com essa super-especial Leica, uma máquina
boa demais para a época, ou para nós, ele era a abertura, a luminosidade, o
zoom, + o D e o E, o F e o G, e se calhava acertar numa ou duas esquecia
regular as outras pelo que as poucas fotos que ficaram bem só se devem ao facto
de a maquina ser mesmo boa, boa demais, e serão uma dúzia de fotos se tanto.
Se
era pesada a Leica, na mota uma enorme desvantagem como poderão calcular. A
Dyane palmilhava e galgava a Estremadura e a Andaluzia que era uma beleza, e
quilómetros e quilómetros de areais cinzentos de um lado e de outro da estrada
que eu pensava nada produzirem, mas produziam, milhas e milhas de pomares de
laranjeiras, um mar a perder de vista, e de vez em quando uma “finca” onde eram
embaladas logo com saquetas e rótulos de «Laranja do Algarve», e se calhar para
lá exportadas. Já nessa altura o Algarve era o pomar da nação, isto há uns trinta
ou quarenta anos que as balizas naturalmente me falham, talvez culpa daqueles
queijos de ontem, Parmesão e Roquefort que uns quaisquer emigrantes trouxeram
para o jantar.
Um
dia destes chateei-me com um, um tipo meu amigo de infância que está na Holanda
ofendeu-se porque eu disse que ele era emigrante, e não, não e não, ele era imigrante
! E esta hem ? Chamei-lhe emigrante e ele ofendeu-se. É que ele é imigrante
respondeu-me ! E era-o com muita honra ! Nada de confusões ! É um migrante em
fuga de emigrante para imigrante…
Esqueçamos
isso mas não esses ricos dias, rico carro, rico gaiato, ricas cenas, rica
Luisinha, as ricas voltas que demos naquele carro espectacular e rica gaiata
que eu amava loucamente, e ainda amo, e que tudo fazia e fez não conseguindo, antes evitando porém virá-lo !
Uma
vez depois de muito cabriolar descemos até à Nazaré, via praia, muito nevoeiro
de manhã e muito sol de tarde, rica comida, ricas sestas, rico cinema, rico
teleférico, rico “Sítio”, rica Luisinha e a mão na testa, ricas sardinhas,
marisco, peixe variado e grelhado, ricos jantares, para ser franco jantávamos
como se fossemos reis, ou como se não comêssemos havia um mês, ou dois, ou
três, como se fôramos náufragos acabados de dar à praia. Ricas farras...
Contudo, e apesar da tal Leica de maravilhar e encantar, nunca por nunca nos deu a mania de fotografar a comezaina para mostrar aos amigos nos serões em que se contavam as férias de cada um, contavam bebiam e comemoravam, ou, se fosse hoje, para prantar nas redes sociais. Comíamos bem, mas não porque andássemos esfaimados...
Contudo, e apesar da tal Leica de maravilhar e encantar, nunca por nunca nos deu a mania de fotografar a comezaina para mostrar aos amigos nos serões em que se contavam as férias de cada um, contavam bebiam e comemoravam, ou, se fosse hoje, para prantar nas redes sociais. Comíamos bem, mas não porque andássemos esfaimados...
Bom
jantar.
Fotos tiradas com Leica super - especial
Maria Luísa Baião / Ceuta / Gibraltar / 1983 Travessia
do estreito Fotos tiradas com Leica super - especial