terça-feira, 2 de outubro de 2012

128 - E FIZ ANOS OUTRA VEZ......



Naturalmente há muito que deixei de acreditar no Pai Natal, o que não significa que esse dia não seja para mim, tal como o dia do meu aniversário, um dos dias que sempre me marcaram, facto de que sou culpado, já que deposito neles um potencial de esperanças que me esforço por não ver frustradas.

É por isso que apesar da minha tenra idade, nem desvendo os segredos do sapatinho senão pela manhã, nem sou capaz de evitar quer ansiedade quer inquietação com o aproximar, e durante o dia do meu aniversário.

Este ano tal dia foi-me deveras grato, de tal modo que, como um gaiato, fui mesmo apanhado pela “Genoveva”, uma querida amiga de de Paços de Brandão, (a quem devo um pedido de desculpas), apanhado dizia eu, num estilo desajeitado, disfarçando uma lágrima de emoção que me estava toldando a razão, e que atrapalhado justifiquei como um problemas de lentes de contacto, que aliás nunca usei.

Não sei porquê este ano esta "inquietação, mas sei que é linda", como sei que Deus perdoa de vez em quando uma loucura, mormente no momento em que me permito passar em memória e a correr, esta vida com tendência para voar, que um ego expansivo anima, e que até Ele por vezes dificilmente segura.

"Desconfio ter sido por milagre que nasci profano", já que nunca encontrei quem me amansasse esta vontade de me dar, fazer amigos, e partilhar com eles momentos felizes e dias solenes. Sábado passado cumpriu-se uma vez mais a norma.

Este ano não foi excepção, escrevo porque o coração agradece e o corpo ainda me estremece, pois como bem sabeis sou um homem que acredita em coisas tais como amizades e Natais, e porque a vós, amigas e amigos, devo mais um dia que se não esquece.

Estranhar-me-ão porventura, pertenço contudo, como todos, ao número dos mortais, como vós erro de quando em vez, e serei mal compreendido de vez em quando. Tudo porque no fragor da luta pela vida me assalta a excitação do dever a cumprir, ou cumprido, e arraste comigo algum individualismo que julgo hereditário, do qual não consigo livrar-me.

Talvez seja um "ET" de outras cruzadas e noitadas, não fujo porém ao rol dos que também padecem de esperanças e festas adiadas. 

Como muitas (os) de vós encolho-me nos limites que me traçam, percorro os caminhos que me trilham, sentindo-me em tantas ocasiões prisioneiro nesse espaço, vogando nessa via láctea consentida, perdido por vezes na imensidão desmedida da redutora janela por onde me permitem espreitar, mas igualmente sempre predisposto a pisar o risco à primeira oportunidade surgida.

Por isso quaisquer pequena festa ou grande comemoração são para mim deveras significativas, e o sábado passado foi um desses dias felizes, atrevo-me mesmo a dizer-vos que o vivi deslumbrado, tendo visto a sala festivamente iluminada, somente faltando para a animar as pantominas, danças folionas e balões, pois como é conhecido vivo noutra galáxia e o que espero da vida é saber, razão porque a todos agradeço a obra que me ofereceram, e ao José Gomes Ferreira a acutilância na escolha do título.

Fosse eu bailarino e teria rodopiado como carrossel expelindo cores a granel, cores que tivessem pintado para vós um painel de ternura e sentimento. Daqui vos mando hoje, já lúcido, um abraço, ou um beijo, com o sabor de arraiais e festas fatais, saudosas, estrepitosas, daquelas que nos permitirão fugir às grandes trevas da noite. 

Virei um dia buscar-vos para uma outra festa, guiar-vos por uma aresta entre o sagrado e o profano. Fugiremos do fim do mundo, até uma praça iluminada por domingos e lampiões, escutando concertinas, cheirando manjericos e sardinhas.

Encheremos os copos de vício, pecadores e imaculados, inocentes e culpados, numa oferta aos céus, em noites de bem aventuranças, de esperança, em que possa dar-vos conta da gratidão que guardo no peito.

E quando a alma vos estremecer de espanto, a Bárbara e o Carrilho segredarão recados de amor, a Catarina e o  Goucha acreditarão que sou exímio na arte das tartes e dos molotov´s, o João Baião e a Cristina, loucos e ébrios, viverão paixões e dramas, corpos excitados jurarão e dissiparão amores, para não falar nos tímidos que a boémia tornará sedutores.

Haverá almas que amansarão com beijos, outras que exaltarão em cambalhotas e, até as mais introvertidas segredarão em ouvidos castos "obscenas maravilhas".

E no meio de murmúrios e delírios sensuais o esperanto não fará falta alguma, todas (os) esquecerão tormentos passados e lágrimas choradas.

A quem me chamar ímpio perguntarei quantos de nós não temos sonhos frustrados e pecados sem conta, à Alexandra Afonso agradeço aquela dedicatória fotográfica que me fez estremecer a alma, e antes que alguém que muito prezo me chame desbocado vou dar fim a este exercício de imaginação criativa.

O meu obrigado a todas (os), quantas (os) se lembraram deste dia e o expressaram de uma ou de outra forma, contem comigo para o ano.

kkkkkkkkkkkkkk !!!!!!!!!!!!!!!! bjssssssssssssssssssssss !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

(Genoveva, espero que voltes pa sempre amiga !! bjsssssssssssssss !!! )

domingo, 30 de setembro de 2012

127 - EVOLUÇÃO…..........................




Claro que não sou bipolar, mas durante os primeiros tempos de vida acreditei piamente que o era pois toda a gente o gritava. Só mais tarde me dei conta de um feitio que oscilava entre o do pacato avô Bernardo e da hiperactiva avó Glória.

Os ademanes e outros motivos que engalanavam a farda de meu avô, tais como os botões amarelos do dólman e as dragonas douradas,  terão seduzido primeiro, e conquistado depois, o coração da avó Glórinha.

Telegrafista, Bernardo chegou a ser o homem mais importante do concelho de Paços de Brandão, onde montaram loja e casaram, ele chefe e funcionário único do posto do telégrafo, mister de onde lhe advinha a tranquilidade cultivada, habituado que estava a esperar horas pelo torna mensagens à volta do mundo.

Mais distanciado de Glória era inimaginável pensá-lo, galega, alta,  forte, e a quem os irmãos apelidavam, brincando, de “grafonola” ambulante, sendo que o mais novo, Francisco, regressado gazeado de terras de França, quando a ouvia falar como quem não se cala nem disso faz intenção, deitava as mãos à cabeça, disparava “machine gun, machine gun, machine gun” desaparecendo da vista, às vezes por dois ou três dias. Num desses dias afogou-se no Douro, mas nem assim minha avó se calou…

Meu avô primava saber as noticias do país e do mundo, que primeiro mastigava para depois vomitar numa fitinha cheia de pontinhos e traços que com um prego afixava à porta do barraco. Nessa altura alcandorara-se a telegrafista da estação dos comboios (acumulando mais um tachinho) e, para que desse conta dos dois recados, armaram-lhe uma barraca encostada à estação, para onde os fios do telégrafo civil também foram transmutados.

Às tantas aprendeu mesmo a trabalhar em simultâneo com as duas mãos, conta-se que avisava Montevideu que o comboio saído de Stª Apolónia iria chegar com duas horas de atraso, ou a estação de Porto Campanhã de que o vapor de Caracas com destino a um cruzeiro pela Europa, o famoso “Admiral”, abandonara debaixo de festa o porto de Buenos Aires e se atrasaria um dia.

Ter nas mãos as agulhas do mundo moldou-lhe a placidez, que contrapunha dia a dia à permanente agitação de Glória. Completavam-se. Completaram-se.

Eu perdia-me brincando entre as carruagens estacionadas na estação e a ferrugem do chão. Cheirava a ferroviário e a alfarroba, entre cujos fardos, subindo ou descendo, vivia as aventuras de “Thierry La Fronde” o Robin dos bosques francês que via na Tv a preto e branco, (canal único e onde aparecia por vezes um senhor bem posto que era sempre muito aplaudido), Tv que para visionarmos nos obrigava a uma despesa mínima, pois o salão era repartido pela junta de freguesia, para bailaricos, e a taberna do senhor Raul, que me cobrava uma gasosa que eu estendia até às vinte e três horas, hora a que fechava por força dos cívicos e do normativo .

O resto dos filmes, que geralmente ficavam por ver, acabava-os eu na manhã seguinte, fugindo dos comboios e galgando os fardos de alfarroba da menina Marianita, ou de aparas de cortiça do senhor Cascalho, que tinha um D. Elvira com a buzina roufenha e, mais tarde, haveria de comprar por catálogo, vindo da Checoslováquia, um lustroso Skoda, chegado com defeito ou mania grave, não sabia parar.

Cansado de brincar agarrava-me a uma fatia de broa molhada barrada com açúcar mascavado e entretinha-me cariando os dentes…

Antes do advento da Tv divertia-me espiando minha tia Francisca, irmã de minha mãe, que vivia connosco, e que tomada de amores por um bacharel, passava as horas namorando-o ao telefone, contorcendo-se para que eu a não ouvisse nem visse de caras, presa a um fio alongado até Coimbra.

Aos sábados vinha o bacharel até cá, contorciam-se os dois entre as ombreiras da porta de entrada, no meio de risinhos e beliscões, que eu bem os via, bastava para tanto que os meus pais se aconchegassem de ouvidos colados à telefonia, rezando uma novela Venezuelana, que os deixava em pranto até ao dia seguinte, pois terminava comummente a meio de uma desgraça ou de um mistério por esclarecer.

Meu pai era guarda-fios e, com uma equipa, estendia linhas telefónicas por toda a margem norte do Douro, minha mãe costureira no “Theatro Municipal”, que acumulava com limpezas na “Rádio Voz Popular”, de cujas novelas era devota.

Na senda de meu avô e de meu pai eu trabalho na Telecom e monto antenas por todo o norte do país. “I Connect People”, ligo as pessoas. Sem fios, meu avô Bernardo havia de orgulhar-se de mim, ao invés de ponto traço ponto eu desbravo caminho à voz à escrita, e à imagem, pelo espectro infinito das rádio frequências ou das fibras ópticas. Modernices.

Casei-me em terceiras núpcias com uma loura de Vila Real, autoritária e versada em leis, temos dois rebentos lindos, ele louro como a mãe, ela morena como eu.

O rapaz estuda informática, dizem que é um emprego com futuro.

Ela passa os dias debruçada sobre o computador namorando a Net, é agitada, como a mãe e a trisavó Glória, e até fala com os aviões !

Ele tal e qual o trisavô Bernardo, calmo, plácido, meditativo.

Eu só há pouco desvendei o significado dos termos bipolar e hiperactivo.

Frequentei as “Novas Oportunidades” sabiam ?

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
xau

bjssssssssssssssssssssssssssssssss

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

126 - ERA LARGO ALI, O RIO ........


Era largo ali o rio. Largo uma boa centena de metros, contudo, a água, límpida, não alcançava mais que três ou quatro centímetros de altura, deixando ver os seixos do fundo, chispando ao sol, àquela hora já quente, aconchegando-me blandiciosamente o corpo cansado.

Da varanda a vista alcançava o rio, os barcos em lufa-lufa subindo e descendo sob a ponte, os carreiros de formiguinhas dos automóveis, o metropolitano, avançando cismando, cabeça sempre rente ao chão.

Partira da vila com as minhas tias pelas cinco ou seis da manhã, as horas das matinas eram as melhores para percorrer por pé próprio, a légua e meia que nos separava da aldeia esquecida da tia Aia, tão longe quão as minhas memórias dessa época.

Àquela varanda passava ela largos minutos cada dia. Dali se aventurava a longos voos, maquinados por uma sequiosa imaginação que, por vezes durante horas, a prostravam alheia de si. Tivesse ela tempo…

Nessa era recuada em que os animais falavam, o Azavel, nem no verão cessava o caudal. Atravessei-o arrastando os pés descalços, levantando as areias do fundo e turvando a água límpida que o sol martelava com raios dourados, que por sua vez se refractavam e reflectiam banhando-nos numa deslumbrante aura matutina e consagrando-nos veros fruidores da natureza, cujos danos ambientais estavam ainda muito longe de ser noticia sofrida.

Sofrer sofria ela cada vez que ousava lançar daquela varanda, em voo planado, e planeado, sonhos que demoravam a voltar, qual boomerang, tão vazios frios e tristes quanto haviam partido. A cada dia murchava nela a esperança de achar num dos seus imaginários voos o ramo de oliva que lhe testemunhasse o fim do dilúvio.

Ora arrastando os pés ora pontapeando a corrente, gargalhava-me ante a aflição dos peixinhos, fugindo desaustinados á minha frente, e a que a transparência da corrente, a montante, deixava ver naquela folha de águas trepidantes, onde eu, qual Adamastor, nessa fuga desordenada os tentava apanhar.

Desordenados os seus pensamentos, facilmente confundia os seus desejos com a realidade sonhada e, acordada, jurava ser verdade cada sonho vivido. De tal modo se convenceu dessa certeza, que passava as oito horas da sua jorna, não entre máquinas ou secretárias mas movimentando-se, calma e parcimoniosamente, entre os canteiros floridos de um jardim inventado, cujos passeantes metódica e atenciosamente ia cumprimentando.

 Galgado o Azavel restava uma azinhaga ladeada por altos muros em taipa avermelhada, onde as amendoeiras e figueiras descansavam os ramos. De longe a longe um bárbaro silvado prendava-me com amoras silvestres, que eu beliscava até encher a boca sequiosa desse sabor agridoce.

 Depositando-os na palma da mão, Telma soprava venturosa ternos beijos e, alongando a esperança, pressentia na sua, fechando os olhos, o doce sabor deixado pela boca de um qualquer príncipe encantado.

 A azinhaga foi vencida. Já no Outeiro, o sol quente, as ruas de terra batida e as sombras projectadas pelos altos muros, abrigavam-me e ao país que eu construía para os meus brinquedos e meus sonhos. Tudo ali era harmonia, ser homem estava ainda arredado dos meus pensamentos. Os mimos da tia Aia resguardavam-me de um mundo onde, até hoje, jamais me sentiria eu, como sentia no seu colo, uma bênção para mim que outros desvelos nunca conheci em criança.

  Por que não vem ele ? Porque não me surpreende nesta varanda em que estiolo ? Pressinto-o vindo por trás. Agarrar-me pela cintura num abraço apertadinho. O hálito a mentol no meu pescoço. Deixo cair a cabeça. Encosto a minha face à sua, viro a cara, entreabro os lábios e o doce sabor que há tanto espero, em mim. A sua perna na minha coxa provoca-me tremuras, o corpo colado ao meu faz de mim um lamiré dedilhado sob tensão e vibrando com prazer. 

Fechou os olhos. Sentiu-se planar, o tempo alongar-se ao infinito, a mente vogar num mar efervescente de pensamentos aurifúlgicos e, ainda somente um ponto minúsculo no horizonte longínquo, uma pomba branca voando para si e, no bico, um viçoso ramo de oliveira.

Hoje, homem feito, sorrio para ela sempre que dirigindo-se para o meu pombal a contemplo…



sábado, 8 de setembro de 2012

125 - CRESCER DEMORA TANTO…........................


            


Não se enxergava então o espelho de água que agora nos deslumbra mas, para poente, estendia-se uma linda manta de retalhos, do verde ao castanho terra, e que mudava paulatinamente com a translação do globo e as estações do ano. A nascente, um montado disperso em mansas e alterosas vagas, mostrava sedutoramente, ao longe, uma nesga da Guadiana, mesmo assim, no feminino.

De uma ilha bem no meio da Guadiana trazia meu pai as toneladas de melão, pepino, tomate, feijão e outras hortaliças que o aluvião de cada inverno fazia crescer a um ritmo alucinante. A chata pairava sobre as águas, rés-vés tal que nem respirar fundo podíamos. Recordo um dia de sol em que o buraco de uma agulha nas tábuas da chata consentia a entrada, em repuxo bem alto, de um esguicho mais parecendo o arco de xixi de um menino. Passei a travessia sustendo a respiração e mantendo o indicador tapando o dito fuinho, enquanto os balanços da chata ameaçavam deixar entrar a água pelos bordos.

Quatro ? Cinco anos ? Não teria mais. 

Esta é uma das poucas, quase únicas, recordações do meu tempo de menino para quem o mundo era o pai, a burra, a cocheira, os fardos de palha que a enchiam e onde nós brincávamos ao escorrega, ainda que até hoje não logre, por mais que me esforce, recordar as caras e os nomes dos “nós”. Recordo sim o arame de um fardo que me rasgou a coxa, o meu pai curando-me a ferida com emplastros de cinza da lareira, que todos os dias mudava.

Nessa ocasião minha avó Imelda prantou-me um escapulário preso à camisola, benzeu-me e forçou-me a beber, de um trago e olhos fechados, uma mistela horrenda cor de capilé e cujo mau cheiro, que nem a adição de poejo dissipava, ainda hoje me acode às narinas se me embriago e o vómito me vem à goela. Felizmente não sou desses hábitos, e contam-se pelos dedos as vezes que tal me sucedeu ao longo de uma vida de exemplar virtude.

Tirando essas travessias da chata na ribeira da Guadiana, quase não via o meu pai, ou não o lembro, salvo em horas marcantes. Como aquela em que eu me apequenei a um canto, assustado, vendo-o sovar minha mãe. Era o meu avô Venâncio quem me incutia bons modos. Rezar e lavar as mãos antes das refeições. Agradecer ao Senhor a sopa no prato, a horta, as galinhas, o porco no quinchoso, a roupa no corpo, os sapatos, (nem todos tínhamos) e sobretudo a saúde e a família.

Nessa época parece que não tinha mãe nem irmãos. Da burra esbranquiçada sim, ruça, lembro-me perfeitamente. E do tempo espojado nas grandes e frescas lajes do adro da igreja jogando Alquerque, uma herança árabe, jogado com três pedrinhas e que num geométrico desenho traçado no xisto mole tentávamos alinhar antes do adversário, um pouco à laia do nosso jogo do galo.

Depois, repentinamente, tudo mudou.

O avô Venâncio quase paralítico, dias ao sol na escadaria da casa, babando-se, cheirando a mijo, e a minha vida nunca mais a mesma… Um dia chuvoso. A parca mobília amontoada num velho camião. S. Miguel de Machede. A Palheta e a Pardiela. Os camiões permanentemente retirando areia de uma e de outra. A Violeta esmagada por um carro. Minha mãe em Coimbra. O coração. As saladas de tomate dia sim dia sim. Uma janela demasiado alta naquela casa. O chefe de meu pai comendo melão que nem um porco à porta da nossa casa. Eu fugindo da cantina no primeiro dia de escola. A professora Cristina. O muro alto no recreio que nos separava do pátio das raparigas. 

A “Vespa”. O meu tio Chico Rêgo. Eu no armazém dele, em cima dos sacos de alfarroba chupando uma lata de leite condensado. A ida para Évora. O jardim Diana. A fanfarra dos bombeiros. Eu perdido de minha mãe desatando a correr chorando até casa da minha tia na Rua dos Caldeireiros. A D. Amélia. A “ARTEX - FOTO”. A Teresa e a Graça. A minha tia. A Travessa dos Mascarenhas. O Pituxa. Um Sinca Aronde. Viagens à noite. Sesimbra. O pescador que cortou os tendões da mão no choque com um autocarro. O Rim-tim-tim. O bairro novo. O prédio azul. O terrorista. O Martinho. O Ângelo. O professor Pulga. O Grilo*. Um canivete*. O dia do Lusito. O Ciclo. Mestre Brito e mestre Rui. O padre Alegria. A Sapateiro Nobre. O Castro. O Proença. O Teigão morreu na Guiné.

domingo, 2 de setembro de 2012

124 - ............. MADRUGADOR ... MUITO ................

 - “ Muito madrugador ! “ – disse ela ao aperceber-me a pé, tão cedo, num dia lindo de sol fresco e suaves nuvens, tipo sombreiro… Mal adivinhava que a minha matinal presença se devia a uma chegada tardia, e me preparava para o banho e descansar nos lençóis o peso das pálpebras, o cansaço do corpo, os segredos da mente e as divagações do espírito. Não duraram muito, nem o meu descanso nem a minha paz.

A minha Mimi não tardou a entreter-se pulando-me em cima, ritual habitual e que só pára quando me levanto e lhe renovo a ração de granulado na gamela e o patê fresco num pires bem lavado, caso contrário nem lhe toca… Basta-lhe adivinhar uma nesga de claridade nas persianas e o seu reflexo é despoletado, só desarmando quando consegue acordar-me e ver-me levantado para a servir. É uma gata manhosa da qual nada consigo fazer. Em pequena não consegui, e agora, na plenitude da sua juventude e irreverência, muito menos consigo. Mais perseverantes e teimosas que ela só outras gatas que passaram pela minha vida. Devia ter adoptado um cão. Não por acaso é esse o fiel amigo do homem.

Razão teve a minha vizinha de cima. Tem um cão minorca que é o cúmulo do bom comportamento. A dona sai de casa cedo para enregar ás oito, deixa-o numa cestinha com uma peça de roupa dela que o conforte e aqueça e dali não se mexe até à hora de almoço, em que a dona vem aos morfes e o vai passear pá mijinha da hora. À tarde o processo repete-se até a dona regressar, lá pelas vinte ou vinte e uma horas, dependendo do dia e do turno em que labuta. Pasmo ver um cão tão ladino e arisco com comportamento exemplar, vai daí nutro pela minha vizinha uma admiração de espantar.

Admiração aliás de todo merecida. Indo já no terceiro ou quarto marido, pelo menos este último, um capitão do exército, o único que lhe conheci, está tão bem adestrado como o cãozinho minorca. Nas folgas desencontradas, deixa-o na cama o dia todo, com uma ida à varanda para sugar um cigarro, ao almoço, e espreguiçar os braços ao fim da tarde. Só não sei, mas imagino, que também o deixe com uma peça de roupa que o conforte e aqueça até ela voltar, e aqui, se me permitem a ousadia, imagino a lingerie que devia ter ido para a maquina de lavar mas cuja limpeza foi adiada devido a motivo de força maior…

A cada um as suas taras, vivemos numa democracia, e desde que a liberdade individual não colida com a liberdade dos outros não vejo motivos para lapidação… 

A este propósito lembro aqui a tara do meu amigo Maurício, “ NÃO, NÃO É O QUE PENSAM… * tara a que ele foi dando continuidade sem que daí tenha vindo mal ao mundo, a não ser para ele mesmo que nem sei como consegue dormir imerso naquele odor grosso e forte, minado de feromonas prontas a assaltar a índole mais bem treinada e a dominar o ego mais convencido, por exemplo o do Narciso… ehehehehe !!!

É domingo, as pálpebras pesam-me. O vizinho de cima acabou de sugar o cigarrito habitual. A Mimi está tratada, agora desapareça, vá caçar ratos.

Eu vou xonar, estarei a dormir antes que a cabeça tombe na almofada.

Tentarei caçar as memórias que o R.E.M. fizer correr durante…

Se as não esquecer prometo contar-vos as mesmas.

Bjssssssssss

Xau !

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

123 - O AGNELO DO 203 ............................................



Somente o ar festivo e aquela maralha ululante dentro do carro tornavam menos tétrico o negro daquele antigo modelo, mal estimado, barulhento, de ar ameaçador e que, lançado a grande velocidade, excitava a atenção de todo o bairro.

Eu hesitava entre a partilha de júbilo do Sezídio e a surpresa condenatória de todo aquele escabeche, como se entre a criança que largava a pele e o jovem que a não vestira ainda. Contudo, apercebia-me perfeitamente da necessidade de mestre Agnelo em mostrar o carro, coisa que raríssimos possuíam, ainda que um desconjuntado modelo 203 da Peugeot, única prova provada do seu recente êxito em terras de França, onde, como por cá fizera a vida inteira sem qualquer proveito, pintava e caiava “maisons” a preço de ouro.

A desforra era pois compreensível, e as viagens festivas de toda a gente naquele carro que acelerava doido pelas ruas do bairro tornavam-se admissíveis. Até a senhora D. Leonor, mãe do Flávio, vizinha de portas meias de mestre Agnelo foi honrada com três ou quatro daquelas voltas, voltas e alegria que a uniram com D. Julieta, vizinha e mulher do mestre, e que por mor deste ou pela falta dele tantas vezes se tinham zangado e reconciliado as duas.

O Sezídio era por aqueles dias adulado por todos nós. Não só porque perderíamos para sempre a sua amizade, na esteira do sucesso de mestre Agnelo por aquelas terras da estranja, já que toda a família retornaria com ele, até o pequeno Valdemar que nada entendendo devido à tenra idade, havia quase uma semana que nem dormia nem fechava a boca de espanto devido a tanta traquitana que testemunhava, nem a limpava do castanho guloso do muito chocolate que o pai trouxera e o Sezídio perdulariamente distribuía por todos nós.

Mestre Agnelo orientava a vidinha. Na taberna do velho Gerardo não se cansava de apregoar aos quatro ventos o novo mundo, a riqueza ao alcance de todos, o trabalho em barda e bem pago, e, à sorrelfa, lá ia largando baixinho o alívio que seria livrar os filhos da guerra, que ele sofrera na Guiné e achava jamais teria fim.

Por causa dessas e de outras mestre Agnelo viu-se obrigado a regressar a França à pressa, mais de uma semana antes do premeditado, e nunca entendi se por isso, levou com ele a senhora D. Leonor, não fosse a necessidade assalta-lo lá.

Certamente o que sofrera vez nenhuma contaria a alguém, nem disso havia necessidade, os anos de miséria conhecidos cá ninguém estava interessado em lembrar, e eu apostava que muito menos ele, a quem agora o orgulho se estampara na face.

O Sezídio foi só o primeiro, depois dele os irmãos Espanhol, o Barreto, o Tita, o Januário, o Baltazar, o Balixa, o Altino. No espaço de um ano o bairro ficou reduzido a metade e a malta nem brincava, com saudades dos idos e falta de gente para animar as brincas e os jogos.

De vez em quando uma cara, um episódio, acodem-me furtivos à memória. Não os sei se vivos se mortos, rememoro o que a sua fuga evitou, sim, porque foi uma fuga, uma fuga para um lugar com futuro assegurado.


Sem que o queira comparo aqueles dias com os de hoje, então fazíamo-nos homens demasiado cedo, hoje nem deixam que o sejamos. A democracia, essa, continua como então, longe, muito longe...

           

sábado, 4 de agosto de 2012

122 - UMA ESPLANADA SOBRE O PASSADO ...



Ondas de calor reverberam no prolongamento deste largo lago que a esplanada toca. São ondas com sabor a Alentejo e, de repente, eu sentado lado a lado com o Leontino(1), balançando os pés na água, equilibrando-nos os dois naquele tronco caído enquanto ele, lembro-o como se fosse hoje, graceja para mim que, se caísse de costas não se mataria como o tal velho na cadeira, mas decerto se afogaria pois o lago ali era fundo e nunca aprendera a nadar.

Era aliás, de nós todos, o único que não o sabia fazer mas, muitos antes dele, e alguns bons nadadores, tinham ficado enredados naquele pego da Guadiana, cavado na dobra do rio, em cotovelo, provocando essa volta azo a um curso impetuoso no inverno mas enganadoramente manso no verão, diria mesmo assustadoramente manso, calmo e traiçoeiro.

Nesses tempos recuados, uma vez o repasto enfardado, mal a tarde acalorava debandávamos pela hora da esturrina, galgando léguas, montes e cabeços, alinhando tropelias e digerindo o almoço. Por isso, uma vez chegados ao pego, o último a entrar na água era maricas e nem as roupas tirávamos já que o sol em pouco tempo se encarregaria de as pôr capaz de se segurarem em pé.

Galgados cabeços, pilhados ninhos, lapidados varanos, roubados marmelos e assaltadas colmeias nos montados, o nosso primeiro momento zen era aquele em que entrávamos na água, e depois quando o cansaço nos vencia e deitava por terra. Esses dois momentos eram a nossa paz dos deuses. A pegada ecológica era ainda uma ficção distante, mas o rasto que deixávamos podia ser seguido à distância por um cego… Outros tempos.

E, desta esplanada, olhando este mar sonso a perder de vista que malmequeres e papoilas pintam, lembro aquela malta que somente em sonhos, tornados bocados de bonecos mal delineados em cor sépia, fragmentos de mim, acerca dos quais acredito o futuro me trará cada vez mais saudosas e melhores recordações.

E à minha direita no areal o Inácio da Granja, de sardas e modos repentinos, que me roubaria a Lúcia das tranças e com ela zarparia para a capital. O Sezídio(2), sempre de botifarras, que o pai lhe comprava três ou quatro números acima para que servissem mais tempo e que, talvez por isso fosse o terror dos jogos e um excelente avançado que levava tudo à frente e à sarraifada. O Xico Inácio(3), alto alourado e um rapagão, cuja lembrança regurgita a luta de titãs com o Tonicha(4), do Reguengos, o único que era rico, por os pais terem uma mercearia e nos chamava “os langonhas” porque nós só uma aguadilha e ele já se vinha a sério, no que era singular, pois por tal se arvorava no direito de comandar o pagode. Bem fez o Xico Inácio que lhe pôs as barbas de molho obrigando-o a engolir a arrogância.

E o Cunha(5) ! Grande grande e que já trabalhava deveras ! Ganhava mais que a mãe ! Bem lembro o gabarolas ! Atrás de todos, espojados na areia da Guadiana, com umas mãos que mais pareciam barbatanas, o “mama na burra”, exibindo para todos o seu cacete que mais parecia o de um burro…  O Tonico, o ás da fisga e o líder desde que o grupo do Tonicha deixara de ser maioritário. Isto porque à sombra da fábrica de papel o montante e a jusante do areal tinham cada um o seu gangue, cada qual mais permeável ás influências e pressões da liderança. Gaiatos...

O matreiro do Flávio(6) e o manhoso do “Tói cadela”(7) só tinham paralelo na astúcia do “Luís índio”(8) e do “Junça”(9), mais finos todos e cada um deles que a família do Manel Jaquim(10) e do Gregório(11) juntas, ou até que os irmãos espanhóis(12).

Balanço-me, a brisa traz-me as lembranças, agora em catadupa, em ondas que se atropelam, sucessivas, encadeadas.

Salpicos.

Rumores.

Uns perdidos para sempre em França, Suíça, em Lisboa.

Já então éramos perdulários no esbanjar do tempo e da excelência do lugar. Esta terra, agora este mar largo, este lago e estas ondas que o vento encapela só permitem o ir, nunca o estar, menos ainda o ficar.

Foram.

Foram-se, e na sua peugada estas reverberações que o calor cozinha, estas recordações que a memória cerze e me crestam as horas à beira - esplanada deste lago onde desagua o rio de brumas do meu passado.

O “Tim- tim“ e a “Violeta” meus fiéis cães que nunca me largavam.  A “Shamira”, melhor que muito boa gente e junto a cuja sepultura já uma ou duas vezes meditei. Os barcos baloiçando-se no horizonte sem que eu os veja. O iodo que o vento não arrasta. As falésias que não há. Caras cujas feições a custo mantêm o traço. O futuro que acredito me traga cada vez mais e saudosas recordações.

A canícula apertando, eu galgando montes e cabeços antes do almoço. O último a almoçar é maricas. Sorvo o mel nos favos e os ovos de melro por uma palhinha. Um lagarto sangra. Metade das caras e dos nomes esquecidos. O Flávio apanhou dez cobras de água.  O Grilo é torneiro mecânico.  O “Sarol” professor de ginástica. O Luís da Granja foi para a tropa(13). A cerveja morta.

- Mais alguma coisa chefe ?

- Obrigado. 

- Traz a conta Calado.     *

               

*  NOTAS :

(1)  Falecidodevido ao Covid após toma da 1ª vacina.

(2)  Herói nacional. Os seus restos mortais encontram-se na terra que adoptou como sua e onde casou com uma natural de Madina do Boé, Guiné, onde tombou em Janeiro de 74.

(3)  Residente em Mourão. Falecido em 2020 após um AVC.

(4)  Após o serviço militar fixou residência em Malange, onde o vi pela última vez em 1973.  Não sobreviveu à guerra civil angolana. 

(5)  Costumava visitá-lo no Algharve, Lagos, onde era gerente duma importante unidade hoteleira. Reformou-se há cerca de 2 anos.

(6) Formara-se em Engenharia Civil, deu o salto para França em vésperas de mobilização.  Nunca mais soube nada dele.

(7) Emigrou para a Suiça  um mês antes do 25 de Abril. Há 2 ou 3 anos retomei contacto com ele graças ao Facebook. Foi gerente de Hiper. Reformado. Sem raizes em Portugal. 

(8) Foi professor, viveu amancebado com várias colegas, sempre de muito mais idade que ele. (Com uma de cada vez claro). Actualmente reformado vive com uma idosa podre de rica que fora sua colega e que leccionara Artes Visuais. 

(9)  Junça, descobri-o casualmente uma vez depois de visita 
à Feira do Livro de Lisboa e,m 2002. Tinha uma pequena galeria de artesanato e pintura na Madragoa. Não deixou xontacto. Desapareceu misteriosamente dois anos depois, ele e uma colombiana com quem vivia. 

(10) Operário soldador especializado, soube que andava pelas arábias, Alemanha, França, soou-me ter-se radicado em Israel. 

(11) Foi cameraman da RTP, depois da TVI, depois em Angola após a independência deste país e posteriormente de uma agência de noticias estrangeira, dele se diz ter tombado no conflito do Kosovo. 

(12) De Vila Nueva D'El Fresno. Nunca mais soube nada deles. 

(13)  E nunca mais soube dele nem da Lúcia das lindas tranças. 





terça-feira, 24 de julho de 2012

121 - CULTURA ..............................

CULTURA

Falar de cultura implica uma complexidade mui idêntica à multiplicidade de conexões que o próprio termo implica.

CULTURA…

Podemos não a apreciar em muitas das suas vertentes.

Podemos ignorar muitas das suas diversas formas e manifestações.

Podemos até considera-la Kitsch e, ou, nos antípodas dos nossos padrões.

Mas podemos, sempre que possível, aprecia-la, critica-la, e sobretudo produzi-la, já que ela se enquadra

num limitado mas múltiplo campo de actuação humana que não nos está individualmente vedado.

Produtores então, importa divulga-la, faze-la compreender, entender e aceitar pelos outros e, concomitantemente receber os louros, os proventos e também as criticas mais funestas.

E regressamos ao princípio, porque em democracia, enquanto fazedores de cultura, todos os caminhos nos são permitidos.

Faze-la.

Goza-la.

Deprecia-la.

Nega-la.

Recusa-la.

Vende-la.

Submeter-se a ela, à nossa, ou arruma-la num baú…

Depois ?

Então, depois e só depois, estaremos aptos a julga-la e a condena-la.

Antes disso, tudo que possamos fazer é bater com a cabeça na parede e vazar as nossas pulsões.

A cultura foi feita precisamente para isso, expressar e vazar pulsões, sentimentos, estados de alma.

Agora já poderemos então colar, colocar, meter, aplicar, um penso rápido…

Para finalizar, mero exercício, que podes dizer sobre ou acerca da expressão : “ a mão que embala o berço… ? “

Falar de cultura implica uma complexidade mui idêntica à multiplicidade de conexões que o próprio termo implica.

CULTURA…

Podemos não a apreciar em muitas das suas vertentes.

Podemos ignorar muitas das suas diversas formas e manifestações.

Podemos até considera-la Kitsch e, ou, nos antípodas dos nossos padrões.

Mas podemos, sempre que possível, aprecia-la, critica-la, e sobretudo produzi-la, já que ela se enquadra

num limitado mas múltiplo campo de actuação humana que não nos está individualmente vedado.

Produtores então, importa divulga-la, faze-la compreender, entender e aceitar pelos outros e, concomitantemente receber os louros, os proventos e também as criticas mais funestas.

E regressamos ao princípio, porque em democracia, enquanto fazedores de cultura, todos os caminhos nos são permitidos.

Faze-la.

Goza-la.

Deprecia-la.

Nega-la.

Recusa-la.

Vende-la.

Submeter-se a ela, à nossa, ou arruma-la num baú…

Depois ?

Então, depois e só depois, estaremos aptos a julga-la e a condena-la.

Antes disso, tudo que possamos fazer é bater com a cabeça na parede e vazar as nossas pulsões.

A cultura foi feita precisamente para isso, expressar e vazar pulsões, sentimentos, estados de alma.

Agora já poderemos então colar, colocar, meter, aplicar, um penso rápido…

Para finalizar, mero exercício, que podes dizer sobre ou acerca da expressão :

“ a mão que embala o berço… ? “

segunda-feira, 18 de junho de 2012

120 - SOBRE TU CARNE TRIGUEÑA *......................


 Sobre tu carne trigueña – Mista / tela 100x200 cm - Àisar Jalil Martinez

Dei com ele por mero acaso numa daquelas pesquisas aleatórias na net. Declaro-vos que já nem o recordava. Impressionou-me exactamente há dez anos quando, numa digressão mundial, honrou Évora com a sua presença e uma impressionante exposição. Foi oportunidade que não descurei, há que não perder ocasião de olhar uma outra panorâmica do mundo, coisa que a arte jamais deixará de nos propiciar. No caso, uma visão além Atlântico, de que deixei testemunho, como poderão ver nas linhas que se seguem e que foram publicadas no Diário do Sul em principios de 2002 .

Confesso que recebi um choque emocional, fui apanhado desprevenido pelo impacto projectado pelas belas imagens de um artista ímpar, suficientemente sabedor para com grande mestria ter agarrado perfidamente o visitante mais distraído. Apesar do tempo nessa manhã, que ainda recordo, chuvoso, a visita ao Palácio de D. Manuel para ver com os meus olhos a exposição “ Sobre tu carne trigueña “, de Àisar Jalil Martinez, valeu a pena.

Nascido em Cuba, o que me suscitou alguma desconfiança, Àisar, recordo, apresentou-me ou melhor, presenteou-me com cerca de quarenta telas, todas elas fortemente expressivas, provocatórias, e que na realidade me deram do “ homem “ uma visão muito redutora… Não contestei. Se esta sociedade não é matriarcal, tal sucederá porque a “ mulher “, as mulheres, não fazem ou não sabem fazer uso do seu potencial persuasivo e dissuasor.

Mas não as “ mulheres “ de Àisar, estas, não só dominavam toda a exposição, como todos os homens. Desnecessário dizer que cheguei ao fim do périplo com a emoção acumulada e a tensão altíssima, e, literalmente, insolentemente apanhado desprevenido por aquela alucinação. Vindas do Caribe, as cores não teriam podido deixar de ser calientes, com um contraste pictórico muito vivo e acentuado. Àisar atirou-me repentinamente á cara com uma sensibilidade levada ao extremo, tão trabalhada e polida que se convertia em espelhos que me interrogavam e incomodavam.

Latinos que somos, todos, machistas por inerência, em maior ou menor grau, senti-me mais que provocado pelo traço do artista, quiçá ofendido. No mínimo a tentação será para dizer que me senti despido… Lembro que uma critica colocada no folheto de apresentação sublinhava, ou colocava em relevo a relevância da teatralidade impregnada às mulheres interpretadas pelo pintor.

Teatralidade ? Quando em noventa por cento dos casos são elas a comandar o homem ? Abordagem da problemática feminina ? Não brinquem, lembro bem Caballo rojo !, Oh vida ! E ainda hoje afirmo que os títeres, comandados, quais marionetes, precisamente por belas mulheres, eram os homens ! Reparei especialmente em Eva, cujo símbolo do pecado repousava a seu lado, símbolo do pecado ou fruto da dominação feminina ? Recordo a mulata de carne trigueña que dava vida ao cartaz da exposição e se metamorfoseava em leopardo…

Arquétipos ou reais, as imagens de Àisar, parecendo ir contra toda a lógica, muito pelo contrário encerravam uma sabedoria pelo pintor demonstrada soberbamente. Ao entrar na exposição entrei num mundo surrealista, em que transgressão e tragédia tomavam sobre o real que entendemos, ou queremos entender, uma ascendência expressionista e marginal.

Se vi a cidade por detrás dos personagens ? Sim vi ! Tratava-se claramente de Habana, la vieja, o que para mim foi absolutamente secundário, mas me autorizou a fazer-me outra pergunta: E quem terá visto, reparado, na forma como o homem era retratado nessas telas ? De faunos a bestas, de exóticos a luxuriantes seres, em quase todas elas a imagem do homem era abordada na sua vertente animalesca, fossando entre ninfas e divas, numa promíscua sensibilidade liminarmente transbordante de erotismo.

Os nossos medos, mitos e tradições mais antigas, do lobisomem ao íncubo, estavam ali prostrados mas actuantes, fazendo-me, fazendo sentir ao visitante quanto de animal vive em nós (ainda?), e o quanto de grotesco marca a nossa libido. Sobre todos aqueles animalescos seres que representavam o homem, pairava a mulher, quer no plano geométrico quer no simbólico. Por certo Àisar deve muito às mulheres, via-se em todos os seus quadros que lhes estava reconhecido.

Com uma eficácia mais simbólica que linguística, a mulher era endeusada por aquele cubano cujo curriculum foi o melhor convite para que tivesse corrido a ver as suas telas. Por mim teria comprado Eva, outros certamente teriam feito outras opções, os preços, esses, estavam claramente acima da minha modesta bolsa…
Quem tivesse querido perder algo de muito valioso, bastar-lhe-ia não ter ido ver aquela maravilhosa magnífica e estulta exposição, foi a sensação que recordo ter de lá trazido. Quanto ao autor, hoje encontra-se na galeria dos meus amigos, e honra-me com a sua amizade. Obrigado Àisar Jalil Martinez !  

* Nota: este texto já fora publicado no início de 2002 nas páginas do Diário do Sul.

https://www.facebook.com/media/set/?set=a.398281196874977.80203.100000792991962&

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez/videos/vb.743573867/10153400704078868/?type=2&theater

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez/videos/vb.743573867/10154787699968868/?type=2&theater

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez

Eva – Oleo / tela – 110x70 cm - Àisar Jalil Martinez
Bicitaxi encantado – Óleo / tela – 80x120 cm - Àisar Jalil Martinez
Caballo rojo – Óleo / tela 80x121 cm - Àisar Jalil Martinez
Oh vida ! Óleo / tela 69x49,8 cm - Àisar Jalil Martinez
Paz – Mista / papel 61x49,6 cm - Àisar Jalil Martinez
Onírica – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Uidaeysi – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Rámon y Julita – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Sobre tu carne trigueña – Mista / tela 100x200 cm - Àisar Jalil Martinez