Não
se enxergava então o espelho de água que agora nos deslumbra mas, para poente,
estendia-se uma linda manta de retalhos, do verde ao castanho terra, e que
mudava paulatinamente com a translação do globo e as estações do ano. A
nascente, um montado disperso em mansas e alterosas vagas, mostrava
sedutoramente, ao longe, uma nesga da Guadiana, mesmo assim, no feminino.
De
uma ilha bem no meio da Guadiana trazia meu pai as toneladas de melão, pepino,
tomate, feijão e outras hortaliças que o aluvião de cada inverno fazia crescer a um ritmo
alucinante. A chata pairava sobre as águas, rés-vés tal que nem respirar fundo
podíamos. Recordo
um dia de sol em que o buraco de uma agulha nas tábuas da chata consentia a
entrada, em repuxo bem alto, de um esguicho mais parecendo o arco de xixi de um
menino. Passei a travessia sustendo a respiração e mantendo o indicador
tapando o dito fuinho, enquanto os balanços da chata ameaçavam deixar entrar a
água pelos bordos.
Quatro
? Cinco anos ? Não teria mais.
Esta
é uma das poucas, quase únicas, recordações do meu tempo de menino para quem o
mundo era o pai, a burra, a cocheira, os fardos de palha que a enchiam e onde
nós brincávamos ao escorrega, ainda que até hoje não logre, por mais que me
esforce, recordar as caras e os nomes dos “nós”. Recordo
sim o arame de um fardo que me rasgou a coxa, o meu pai curando-me a ferida com
emplastros de cinza da lareira, que todos os dias mudava.
Nessa ocasião
minha avó Imelda prantou-me um escapulário preso à camisola, benzeu-me e
forçou-me a beber, de um trago e olhos fechados, uma mistela horrenda cor de
capilé e cujo mau cheiro, que nem a adição de poejo dissipava, ainda hoje
me acode às narinas se me embriago e o vómito me vem à goela. Felizmente
não sou desses hábitos, e contam-se pelos dedos as vezes que tal me sucedeu ao
longo de uma vida de exemplar virtude.
Tirando
essas travessias da chata na ribeira da Guadiana, quase não via o meu pai, ou
não o lembro, salvo em horas marcantes. Como aquela em que eu me apequenei a um
canto, assustado, vendo-o sovar minha mãe. Era
o meu avô Venâncio quem me incutia bons modos. Rezar e lavar as mãos antes das
refeições. Agradecer ao Senhor a sopa no prato, a horta, as galinhas, o porco
no quinchoso, a roupa no corpo, os sapatos, (nem todos tínhamos) e sobretudo a
saúde e a família.
Nessa
época parece que não tinha mãe nem irmãos. Da burra esbranquiçada sim, ruça, lembro-me perfeitamente. E do tempo espojado nas grandes e frescas lajes do
adro da igreja jogando Alquerque, uma herança árabe, jogado com três pedrinhas e que num geométrico desenho traçado no xisto mole tentávamos alinhar antes do
adversário, um pouco à laia do nosso jogo do galo.
Depois,
repentinamente, tudo mudou.
O
avô Venâncio quase paralítico, dias ao sol na escadaria da casa, babando-se,
cheirando a mijo, e a minha vida nunca mais a mesma… Um
dia chuvoso. A parca mobília amontoada num velho camião. S. Miguel de Machede.
A Palheta e a Pardiela. Os camiões permanentemente retirando areia de uma e de
outra. A Violeta esmagada por um carro. Minha
mãe em Coimbra. O coração.
As saladas de tomate dia sim dia sim. Uma janela demasiado alta naquela casa. O
chefe de meu pai comendo melão que nem um porco à porta da nossa casa. Eu
fugindo da cantina no primeiro dia de escola. A professora Cristina. O muro
alto no recreio que nos separava do pátio das raparigas.
A
“Vespa”. O meu tio Chico Rêgo. Eu no armazém dele, em cima dos sacos de alfarroba chupando uma
lata de leite condensado. A
ida para Évora. O jardim Diana. A fanfarra dos bombeiros. Eu perdido de minha
mãe desatando a correr chorando até casa da minha tia na Rua dos Caldeireiros. A
D. Amélia. A “ARTEX - FOTO”. A Teresa e a Graça. A
minha tia. A Travessa dos Mascarenhas. O Pituxa. Um Sinca Aronde. Viagens à noite. Sesimbra. O pescador que cortou os tendões da mão no choque com um
autocarro. O
Rim-tim-tim. O bairro novo. O prédio azul. O terrorista. O Martinho. O Ângelo.
O professor Pulga. O Grilo*. Um canivete*. O dia do Lusito. O
Ciclo. Mestre Brito e mestre Rui. O padre Alegria. A Sapateiro Nobre. O Castro.
O Proença. O
Teigão morreu na Guiné.