quinta-feira, 27 de setembro de 2012

126 - ERA LARGO ALI, O RIO ........


Era largo ali o rio. Largo uma boa centena de metros, contudo, a água, límpida, não alcançava mais que três ou quatro centímetros de altura, deixando ver os seixos do fundo, chispando ao sol, àquela hora já quente, aconchegando-me blandiciosamente o corpo cansado.

Da varanda a vista alcançava o rio, os barcos em lufa-lufa subindo e descendo sob a ponte, os carreiros de formiguinhas dos automóveis, o metropolitano, avançando cismando, cabeça sempre rente ao chão.

Partira da vila com as minhas tias pelas cinco ou seis da manhã, as horas das matinas eram as melhores para percorrer por pé próprio, a légua e meia que nos separava da aldeia esquecida da tia Aia, tão longe quão as minhas memórias dessa época.

Àquela varanda passava ela largos minutos cada dia. Dali se aventurava a longos voos, maquinados por uma sequiosa imaginação que, por vezes durante horas, a prostravam alheia de si. Tivesse ela tempo…

Nessa era recuada em que os animais falavam, o Azavel, nem no verão cessava o caudal. Atravessei-o arrastando os pés descalços, levantando as areias do fundo e turvando a água límpida que o sol martelava com raios dourados, que por sua vez se refractavam e reflectiam banhando-nos numa deslumbrante aura matutina e consagrando-nos veros fruidores da natureza, cujos danos ambientais estavam ainda muito longe de ser noticia sofrida.

Sofrer sofria ela cada vez que ousava lançar daquela varanda, em voo planado, e planeado, sonhos que demoravam a voltar, qual boomerang, tão vazios frios e tristes quanto haviam partido. A cada dia murchava nela a esperança de achar num dos seus imaginários voos o ramo de oliva que lhe testemunhasse o fim do dilúvio.

Ora arrastando os pés ora pontapeando a corrente, gargalhava-me ante a aflição dos peixinhos, fugindo desaustinados á minha frente, e a que a transparência da corrente, a montante, deixava ver naquela folha de águas trepidantes, onde eu, qual Adamastor, nessa fuga desordenada os tentava apanhar.

Desordenados os seus pensamentos, facilmente confundia os seus desejos com a realidade sonhada e, acordada, jurava ser verdade cada sonho vivido. De tal modo se convenceu dessa certeza, que passava as oito horas da sua jorna, não entre máquinas ou secretárias mas movimentando-se, calma e parcimoniosamente, entre os canteiros floridos de um jardim inventado, cujos passeantes metódica e atenciosamente ia cumprimentando.

 Galgado o Azavel restava uma azinhaga ladeada por altos muros em taipa avermelhada, onde as amendoeiras e figueiras descansavam os ramos. De longe a longe um bárbaro silvado prendava-me com amoras silvestres, que eu beliscava até encher a boca sequiosa desse sabor agridoce.

 Depositando-os na palma da mão, Telma soprava venturosa ternos beijos e, alongando a esperança, pressentia na sua, fechando os olhos, o doce sabor deixado pela boca de um qualquer príncipe encantado.

 A azinhaga foi vencida. Já no Outeiro, o sol quente, as ruas de terra batida e as sombras projectadas pelos altos muros, abrigavam-me e ao país que eu construía para os meus brinquedos e meus sonhos. Tudo ali era harmonia, ser homem estava ainda arredado dos meus pensamentos. Os mimos da tia Aia resguardavam-me de um mundo onde, até hoje, jamais me sentiria eu, como sentia no seu colo, uma bênção para mim que outros desvelos nunca conheci em criança.

  Por que não vem ele ? Porque não me surpreende nesta varanda em que estiolo ? Pressinto-o vindo por trás. Agarrar-me pela cintura num abraço apertadinho. O hálito a mentol no meu pescoço. Deixo cair a cabeça. Encosto a minha face à sua, viro a cara, entreabro os lábios e o doce sabor que há tanto espero, em mim. A sua perna na minha coxa provoca-me tremuras, o corpo colado ao meu faz de mim um lamiré dedilhado sob tensão e vibrando com prazer. 

Fechou os olhos. Sentiu-se planar, o tempo alongar-se ao infinito, a mente vogar num mar efervescente de pensamentos aurifúlgicos e, ainda somente um ponto minúsculo no horizonte longínquo, uma pomba branca voando para si e, no bico, um viçoso ramo de oliveira.

Hoje, homem feito, sorrio para ela sempre que dirigindo-se para o meu pombal a contemplo…