Lembram-se
da crónica anterior; “Não é o que Pensam”, em que vos falava dos meus amigos e
em que propositadamente deixei para depois a Filipa e o Afonso ?
Pois
chegou a altura de vos falar deles, um bom par de jarras !
Em
primeiro lugar explicar-vos que muito aprendi com o Afonso, mais velho que eu
meia dúzia de anos, o que quando jovens era uma diferença abissal, em idade e
em sabedoria ! (conhecemo-nos desde que nos encontrámos, gaiatos, roubando
pistolas do Zorro das montras dos feirantes durante o S. João ! )
O
Afonso foi um dos primeiros ganzas existentes nesta cidade, (quando ainda nem
na droga se falava já ele andava sempre “apanhado”), e um dos primeiros que,
nas então recém inauguradas Piscinas Municipais de Évora, ousava ou
aventurava-se a mergulhar da prancha olímpica dos dez metros para o poço
respectivo, com a arte, harmonia, beleza, e sedução tão próprias aos
mergulhadores das falésias de Acapulco !
Filipa
era médica fazendo o internato no, nessa época denominado Hospital da
Misericórdia e a ela “roubado” pelo estado no pós 25 de Abril, hoje Hospital
Distrital, mais concretamente Hospital do Espírito Santo.
Filipa
foi seduzida em primeiro lugar pelo porte altivo do Afonso, pelo garbo com que
mergulhava, e, dizem as más-línguas que, numa fase posterior, pelo modo como
lhe chupava os dedinhos dos pés e o resto.
A
verdade é que se enlearam e não havia dia em que não fossem vistos tomando a
bica juntos, ou se embrulhassem, por vezes em plena piscina, onde não havia
quem não reparasse tal o escarcéu que faziam, mas, continuemos, bica que o
Afonso já então remexia com um pau de canela, dizia ele que para disfarçar o
hálito de odores do tabaco e da erva.
Tal
foi o tempo que a brincadeira de se enrolarem durou que ainda hoje basta ao
Afonso o cheiro da canela para ficar com pica, tal o poder da sugestão numa
mente tão desbragada e voraz quanto a dele.
A
verdade é que miradas duas tatuagens, uma de um golfinho no braço direito e
outra de pétalas de rosa na omoplata esquerda, e remirados os dentes da Filipa
pelo Afonso, tal qual se faz ás mulas, aos camelos e se fazia aos escravos, ele
aceitou um compromisso entre ambos desde que excluída ficasse a fidelidade,
coisa que afirmava ser incapaz de respeitar mas que eu curiosamente suspeito, e
todos os seus amigos seriam capazes de apostar forte, ele não ter até hoje, e
já lá vão perto ou mais de 30 anos, não ter dizia eu, quebrado !
Mas
não pensem que tudo foram sempre rosas.
Em
primeiro lugar, sendo ganza tão jovem, Afonso não parava em emprego nenhum até
que por influência de um padrinho (isto dos padrinhos não é só de agora), lá
conseguiu uma vaga de gato-pingado primeiro e de maqueiro depois, no citado
hospital.
Durante
uns tempos conseguiu de modo mirabolante evitar a Filipa, médica lá mesmo
recordam ?
È
que o Afonso intitulava-se engenheiro de recursos hídricos ou coisa do género,
com os anos perdi muitos pormenores, ou confundo-os, compreenderão e
desculpar-me-ão certamente.
Finalmente
uma noite a coisa deu-se, a Filipa estava de banco, requisita um homem que
levasse um doente ao Raio X e aparece-lhe o Afonso, de bata azul, barba por
fazer, beata atrás da orelha, e tão surpreendido quanto ela embora já esperasse
que um dia a coisa desse barraca !
A
Filipa corou e ferveu de tal modo que o olho estrábico ficou emparceirado com o
outro pela primeira vez na vida, mas não se desfez, deu-lhe uma ordem seca e
autoritária e pediu-lhe que não voltasse enquanto o doente não viesse com a
chapa na mão.
Consta
que no dia seguinte em casa dele ou dela teve lugar uma enorme discussão que
durou pouco e redundou em amor pelas cadeiras, mesas, balcões de cozinha,
carpetes, sofás, e este apontamento, ainda recordo como se fosse hoje, o facto
do Florival se me ter queixado ter ido lá a casa reparar um candelabro que nem
sabe como teria sido literalmente arrancado do tecto, mais tendo parecido,
palavras dele, alguém no mesmo se ter pendurado propositadamente !
Certo
certo é que deixaram de ser vistos juntos, os colegas da Filipa jamais lhe
perdoariam a opção por um maqueiro, não me atrevo sequer a aludir ao que ela
eventualmente tenha pensado, o Afonso desapareceu do hospital e da cidade pois
durante bastante tempo não lhe pusemos a vista em cima, e foi, foram visto
juntos pela primeira vez após o “embate”, num ginecologista, que lhes disse
tratar-se sim de um alarme falso, e não só a Filipa não estar grávida, como
nunca o estaria, pois tudo indicava que, infelizmente, jamais algum dia o
ficaria.
Sei
que por esses anos da década de oitenta, quando as taxas de juros atingiram
valores astronómicos, só batidos pela inflação e pela desvalorização do escudo,
tornando inevitável a entrada à bruta do FMI no país e a saída de divisas para
o estrangeiro, o Afonso ganhava a vida levando grandes quantias, em notas, de
Portugal para Espanha, iludindo a alfandega, dinheiro que depositava numa conta
que abria em nome do mandante em Badajoz, serviço pelo qual cobrava uma
comissão e “gancho” que igualmente o influente padrinho lhe tinha arranjado, ao
qual dava cobertura e afiançava.
Correu
tudo muito bem durante algum tempo até que lhe coube a responsabilidade de uma
maquia maior que ele não resistiu a depositar em nome próprio, tão certinho
como eu estar vivo e ele saber que do lado de cá o queixoso simplesmente não se
podia queixar, tendo sido por esses tempos que cagou finalmente no padrinho,
que todavia quando o Afonso completou a sua formatura universitária lhe perdoou
tudo mais uma vez, e tratou de mover influências tais que o Afonso, que sempre
tivera sido um óptimo maqueiro, se viu repentinamente guindado à Administração
de uma Empresa Pública como por obra e graça do espírito santo.
Anos
mais tarde o seu terno e incomparável padrinho, já velhote e que por isso ou
por mor de uma amante 30 anos mais nova, morreria de maneira fulgurante e de um
modo tão pouco ortodoxo que obrigou a que tivessem que lhe partir o membro para
que não descansasse no alaúde de bandeira levantada !
Não sei se o Afonso comprou o diploma que hoje
ostenta ricamente emoldurado na parede do escritório.
Sei
sim que durante cinco ou seis anos frequentou uma universidade dessas privadas
cujo aparecimento era recente e onde se deslocava todos ou quase todos os dias
em carrão próprio, aguentando todas as despesas e, viemos a saber depois, em
cumprimento de promessa feita à Filipa, que já não teria motivos para se
envergonhar dele.
Correram-lhes
as coisas tão bem que a Filipa é Directora Clínica na sua especialidade, o
Afonso é gestor de uma grande mas grande Empresa Pública, ambos usam fato e
gravata das nove ás cinco, e, talvez por isso, é vê-los emporcalhados e fazendo
chavascal quando saímos daqui nos nossos célebres passeios de moto,
aparando-lhes a baba e o ranho, limpando-lhes o vomitado, e até o cu já uma vez
calhou, e por mais que uma vez um dos nossos penduras encartados teve que
trazer a mota e eles virem de táxi tão bêbedos estavam, pelo que só posso
garantir serem amigos do peito e insuperáveis, desejar-lhes felicidades, e a
vós garantir-vos não haver médica mais atenciosa, nem gestor de maior sucesso e
tão bem engravatado, e pago, pelo que se vos cruzardes com eles na rua não
hesiteis num caloroso cumprimento, são cidadãos de primeira apanha, apenas ela
detesta mergulhadores e ele o cheiro a erva que por vezes paira no ar, coisas
de somenos se em conta tivermos o facto de santos naquele grupo só eu, mas já
sabem, de mim não falo, não vale a pena e já me vão conhecendo de ginjeira.
Afinal
convenhamos que somos todos gente normal não ?