769 - SÓ UMA PROFESSORA MAIS, SÓ MAIS UMA ? *
Chutei,
como se os corresse a pontapé, uma dezena de livros de diversos autores
políticos com que esbarrava amiúde e vulgarmente me estragavam o dia, a noite,
ou pelo menos o momento. Uma insinuação de gripada que me assaltou com os frios
trazidos e uma neura inconfessável que leva já quase um mês de duração,
quebraram-me toda e qualquer disposição para o que quer que seja, ou fosse.
A ameaça de gripada tem sido tratada com
mezinhas caseiras, muito medronho, ou ponche, em canecas bem quentes e cheias,
e idas bem cedo para vale de lençóis de modo a suar bem e expurgar o maligno. A
neura, essa, duvido que algum dia me passe, mas isso são contas de outro
rosário.
Meto-me na cama normalmente com um livro,
adoentado ou não, é hábito velho que duvido alguma vez abandone, a minha gata
não preciso chamar, muitas noites mal me estendo e já ela está a meter-se pela
roupa aconchegando-se a meus pés. É um amor aquela gata, e como não morri após
tantos anos de fumaça, não será ela a acabar comigo decerto, para mais vacinada
e tratada a tempo e horas, cuidado que nem comigo mor das vezes tenho.
Na balbúrdia da minha raiva, tirei ainda a
tempo do lixo, um livreco que andaria pelas estantes há uns bons quinze anos,
inacreditável mas vero, vos afianço. Não estivesse eu a extrair dele uma
leitura tão ternurenta e confesso nem me acudiria ao espírito dar-vos conta
deste corriqueiro pormenor que, aparentemente, vos interessará tanto como aos
anjinhos.
No momento em que professores e professoras,
mantêm com as ministras uma tão áspera refrega sobre a avaliação, a descoberta
desta obra de Luísa Dacosta, “Na Água do Tempo” – Diário, Quimera, 1992, e que
congrega notas suas, dispersas, desde os anos cinquenta e creio, de toda a sua
vida de docente do ensino básico, caiu que nem mel na sopa.
Antes de mais deixem-me que vos diga
denunciarem as suas notas uma inteligência, sabedoria e intuição e sensibilidade
extremas, coisa que sobremaneira aprecio numa mulher, de raro que a coisa me é
dada a observar. Dos homens nem falo, se fosse para vos falar de estupidez
ficar-me–ia por mim e teria sobejamente matéria mais que suficiente, também fui
professor e nunca pensei aligeirar as culpas que carrego.
Mas esta mulher transpira ternura, maternidade
e doçura por todos os poros, o que deixa transparecer ter antevisto muito, e
descrito ainda mais, tanto tempo antes de muitos de nós, coisas com que por
vezes nem sonhámos, o que se torna simplesmente desarmante. Os relatos de
episódios das suas aulas e da sua vida, modo de ser e mentalidade, avivaram na
minha memória a presença da D. Cristina, minha professora primária em S.
Miguel, ou melhor, Regente, e de quem guardo igualmente gratas recordações.
Muito mais que a trampa de livros de pedagogia
e didáctica que me forçaram a ler, "professorezecos e zecas" que nem
consigo lembrar, mais valia que este livro tivesse sido de leitura obrigatória
no decorrer dos cursos de ensino, pois que não ensina, mostra, não desfia
regras e normas, forma, não venera teorias e abstracções idiotas, educa. Que
pena não ter aqui e agora para a conversa a minha amiga Petra, também ela
professora do básico, e com quem de quando em vez me alargo em conversas sobre
o vasto campo de acção do ensino de criancinhas de sonho, como ela lhes chama.
Voltemos à Luísa Dacosta, cuja existência
ignorava mas agora conheço de cor e salteado, também graças à Net, Luísa a quem
humilde e decerto tardiamente deixo o meu agradecimento e testemunho, pela
pessoa que é, pelo tanto bem espalhado sem esperar daí mais que a grata
recompensa de se saber útil aos demais, pela consideração que com a sua postura
fez reflectir sobre todas as mulheres mas, e sobretudo, pelo amor
inquestionável que fez verter da sua vida e com o qual tantas crianças terá
abençoado.
Eu dar-lhe-ia nota vinte, mas nem imagino como com este modelo de avaliação seria ela classificada.
Afinal esta ameaça de gripada teve para mim
uma vantagem notória. *
Mas
o resto?
Ai o resto!
Que merda de vida…
Nota: * Texto já publicado em 23 de Fevereiro de 2011 com o nº 25