sexta-feira, 8 de setembro de 2017

460 - A VIDA É FEITA DE PEQUENOS NADAS ...


Ser o Benjamim duma família de cinco filhos e ainda por cima o único rapaz nunca me ajudou. Primeiro porque assimilei muita da sensibilidade feminina, modos e trejeitos que me valeram o repúdio de muitos e o isolamento na escola, onde o Gouxa foi o único amigo que se manteve firme e fixe até hoje. Segundo porque para provar ao paizinho que tanto a sua hostilidade como a sua postura ostensiva em relação a mim estavam erradas e me levaram a erradamente conduzir a minha própria vida.

Por vezes parece-me estar ainda ouvindo-o:

- Estragaram-me o único gaiato, fizeram dele um efeminado de merda, tantas esperanças que eu alimentara.

Recordo-me como se fosse hoje, deviam ser umas dez da manhã, ele arrancara-me bruta e bruscamente ao convívio das minhas irmãs e atirara comigo porta fora. Não, não me meteu na rua, eu é que de orgulho ferido e atingido na virilidade rumei à estação e antes das onze assomava à janela do comboio para a capital. No dia seguinte faria dezoito anos, por Deus que me lembro como se fosse hoje.

Um pouco antes daquela época tinham-se experimentado por todo o país as primeiras turmas mistas e, se entre os rapazes somente o Gouxa se mantinha firme na confiança que nele sempre pudera depositar, entre as raparigas via-me tão ou mais submergido e abafado por carinhos e mesuras que alguma vez o fora em casa pelas manas.

O mundo é feito de contradições, de pequenos nadas, onde o Yin e o Yang se equilibram de modo precário mas eficaz, as amizades que não porfiava encontrar entre os colegas sobravam-me entre as colegas, entre mim e elas nunca houve segredos, nem segredos nem mal entendidos, dávamo-nos maravilhosamente. Acarinhado assim fora-o também quando terminado o sétimo ano ingressara na WoolTrade, uma multinacional de curtimenta e confecção de artigos em pele. Nessa empresa voltei a ser, como sempre fora em casa, um homem entre mulheres e, não tivesse sido a cada vez maior aversão que o paizinho me demonstrava abertamente teria levado a jantar em minha casa, à vez naturalmente, cada uma das mais de cem amigas da WoolTrade. Talvez não fossem tantas assim mas a verdade é que não vim a casar com nenhuma delas, tudo por uma questão de somenos importância, embora complexo o mundo é feito de pequenos nadas e para ser franco nunca consegui abrir os colchetes dos sutiãs a nenhuma delas, por incrível que pareça no momento crítico via-me sempre atrapalhado. Com a minha Fatinha, que tirara o curso em Lisboa enquanto eu por lá cursava a tropa de elite em que me inscrevera, consegui, estamos casados quase há trinta anos sem uma beliscadura.

Naquela mesma tarde em que o paizinho me arrancara ao doce convívio das manas alistei-me nas tropas especiais, nos fuzileiros, tinha dezassete anos e precisava de ficar nalgum sítio, fiquei na Casa Do Marujo, na baixa de Lisboa ali à rua do Arsenal, pegada com o Ministério da Marinha o qual viria a ser a minha casa durante uma carrada de anos seguintes, alternados de prolongadas licenças e férias. O paizinho havia de ter tido orgulho em mim, mas infelizmente viera a falecer pouco tempo após a minha intempestiva saída de casa e por razões que compreenderão. Somente meia dúzia de anos depois da sua morte vim a conhecer o facto, o facto e as circunstâncias, morreu como viveu, à bruta, engasgado com um pedaço de borrego que não conseguiram soltar-lhe a tempo da garganta pelo que se finou todo vermelho, vermelhusco, mais vermelho que o próprio nariz, sempre denunciando-o, fosse inverno fosse verão e, entretanto naturalmente o ensopado esfriou e já ninguém o comeu, segundo me contariam alguns anos ainda mais tarde.

A sua morte culminou o processo de desagregação da família, os seus modos rudes sempre tal haviam prenunciado, sem ele e sem mim as manas debandaram como um bando de pardais, a Mia, Minervina de seu nome fora a primeira, o moço com quem casara um subinspector da Pide com vida feita no aeroporto de Faro, fora obrigado a fugir para os USA após uma rocambolesca fuga em que ninguém sabe como deixaram escapar quase noventa deles da prisão de alta segurança de Alcoentre numa tarde de Domingo, 29 de Junho de 75, o malfadado verão quente, imaginem só o que não terão penado nesse dia os desgraçados, o certo é que nenhum deles voltou a esta Pátria que tão ingrata lhes fora.

As restantes e à vez foram abandonando o ninho, voltámos a encontrar-nos todos há dias no escritório do advogado tratante das partilhas e da venda da casa do paizinho, cujo pecúlio dividiu por todos nós sem esquecer guardar para si mesmo a melhor parte. A mais novinha delas, a Mariana, tem passado as passinhas do Allgarve, escolheu Psicologia por lhe agradar conhecer o género humano e não consegue acertar uma, já vai no quarto marido e não tarda no quarto divórcio. A artista da família, a Gertrudes, que adorava cantar e tinha jeito, casou com um director de serviços da Seg. Social que a puxou para lá queixando-se ela desde sempre aborrecer-se imenso, que não faz nada, faz depressões digo eu, passa a vida de depressão em depressão, teve mais de uma dúzia nos últimos dez anos e aposto que não se ficará por ali, qualquer dia será ela também chefe de serviço após o que se reformará com uma choruda reforma, merece-a, só eu sei o que ela tem ali penado.

A outra gémea do meio, a Dádá, a Deodata sempre manifestara jeito para trabalhos manuais e lavoures, conseguiu imiscuir-se como mestra de trabalhos manuais numa escola preparatória em fins de 79 princípios de 80, e por lá ficou, o sindicato cuidou-lhe da carreira, soube compor as coisas e hoje ela, ela e mais umas boas centenas ou milhares são professores do quadro, continuam maravilhosamente trabalhando com as mãos mas não lhes peçam para abrir a boca ou escrever uma letra pois tal iria muito para além do que são capazes e nem um sindicato faz milagres.

A vida é feita de pequenos nadas e na ausência de pequenos nadas a família dispersou-se e desintegrou-se. Eu fiquei uns tempos entre os homens de barba rija, eram tempos em que se podia ser herói e fiz por isso, corri toda a África do equador ao Cabo armado em Rambo e quando me cansei voltei para a WoolTrade e para a Bertinha, para o aconchego das mulheres cujas disputas por mim sempre me alimentaram o ego até que farto delas me casei, e como castigo do Senhor tenho quatro filhos e uma filha, ela é uma Maria rapaz, a mãe não lhe poderia ter escolhido melhor nome, Maria José, por vontade da mãe todos eles têm nomes de mulher, Manuel Maria, Joaquim Encarnação, António Epifania, José Vitória. Adoram brincar com as bonecas da irmã, espero sinceramente que nenhum saia maricas e a Maria José não me estrague o apelido com parvoíces daquelas da igualdade de géneros, fora isso é uma mulher perfeita, admira-me como os marmanjos não se atiram a ela, espero que não haja ali gato.


quarta-feira, 6 de setembro de 2017

459 - IMPREVISTOS IMPREVISIVEIS .......................


Somente por acidente não recebera um descomunal ramo de rosas. Coisa que lamentou profundamente, pois nunca com tal obséquio tinha sido prendada. Debalde o arrependimento, perdera esse momento mágico e como viria a dizer mais tarde, a estranha sensação de ter-se sentido desejada, nem que por um momento só, pois reconhecera quanto bem isso faria ao ego de qualquer pessoa.

Ele surgira do nada na vida dela, talvez por essa circunstãncia tenha sentido medo, inda que pouco pois nem acreditava em acasos, e nem tempo tinha tido para assimilar a ideia. Para agravar a confusão ele expressava-se de maneira muito romântica, coisa rara de se ver nos dias de hoje, principalmente nos homens, particularmente nesse homem, que já trocara com ela algumas palavras.

Contudo nunca se haviam visto, não se conheciam, sempre tinham comunicado pelo telefone ou outros meios nada pessoais. Nunca suas vidas se haviam cruzado nem na virtualidade do destino. E aquele era o momento em que pela primeira vez se viam. Verdade seja dita, ficaram logo amigos, ambos se viram rodeados por arco-íris e solstícios, ouviram dó ré mis, lás e bemóis não ouvidos por mais ninguém, acreditaram e concordaram que na vida não havia mesmo coincidências.

Ela era agradável, tão depressa ria como mudava de conversa, e, coisa curiosa, tinha um olhar perdido que os olhos dele fitavam, daí, metade do seu olhar clamar aflita, a outra metade como que chamando-o para marinhar. E era um olhar doce, como que encerrando amores prometidos, enleados nuns olhos castanhos apontando ao infinito… abrindo e prometendo caminhos.

Ele mudo e quedo, deslumbrado, lá fora a lua, tão formosa, e ali mesmo a seu lado que coisa gostosa, ele louco de desejo, sonhando o mar e  deitando-lhe um ensejo para, num lampejo voltar a si ficando assim… um pouco tonto, tanto que num fulgor lembrou momentos agradáveis esquecendo os demais.

Virou a cabeça ao céu buscando Deus, talvez Ele lhes estivesse dando uma oportunidade para serem felizes, quem sabe. Não sabiam, eram respostas que ainda não desvendavam. Ela riu, confessou gostar que ele soubesse quanto tinha adorado tê-lo conhecido e logo ali combinaram falar-se no dia seguinte. Ele pasmou, não sabendo se ela estava falando se mirando-o ou fitando-o, cândida, virando a cada minuto e repentinamente a conversa como um sinaleiro, ele pensando e amando tanto que de tanto amor achou que ela era bem bonita e por momentos nem acreditou em tamanha felicidade …

“Nenhum sabia se chegaria o dia em que, desprevenidos ou intensamente, cairiam no chão como dois amigos, se abraçando e beijando com falta de jeito, qual milagre da vida em que suas vontades quebrariam todinhas, e talvez então”... se quebrasse o dilema que desde então o passou a assaltar...

Ele respeitava-a, e mais, sabia não ser o homem que ela buscava e queria, um homem para a vida, um homem que virasse seu companheiro, que com ela viajasse, que estivesse sempre a seu lado, que vivesse consigo, e, querendo ser honesto consigo e com ela, confessou-lhe não ser esse homem que ela procurava. Ela fora simpática, dele gostara e aceitaria o que Deus lhe desse para seu conforto, conformar-se-ia. Nada desejava para ele que não quisesse igualmente para os outros. Ele achara-a muito bela, doce e meiga, e queria retribuir tanta doçura, meiguice. Ele era só um homem, ávido de dar e receber, só isso.

Confusão a dela, imaginam a situação ? Pedira a Deus que lhe aparecesse na vida um homem íntegro, este ano já, que merecesse seu amor, bem, aparecera-lhe aquele, ainda por cima sem o ramo de rosas que ela por acidente não recebera. Aí ela perguntou a Deus o que queria Ele com estas ciladas na sua vida, ou Ele o estaria colocando na sua estrada para ela, quem sabe, para a pôr à prova ?

Para terem um momento de delírio ?

Jamais saberemos, jamais qualquer deles foi visto por estes sítios.

Amem.


Nonocas com o vestido de noiva da avó :D 

458 - ANALOGIAS * by Maria Luísa Baião .................

               
Orã

Tenho um amigo engenheiro de minas que, acompanhando a expansão da empresa em que labuta, tem corrido mundo e se encontra neste momento na Argélia, mais precisamente na cidade costeira de Ourã, onde a empresa desencantou na sua saga expansionista, vai para três ou quatro meses, um contrato vultuoso para construção de um porto de mar, molhes quebra-mar protectores contra a ondulação, acessos, cais de carga / descarga e embarque / desembarque para navios com calado superior a 30 metros e tonelagem impensável, em especial para transporte de gás natural, recurso em que esse país é riquíssimo. 

Trata-se de, como lhe costumo afirmar, da nossa nova diáspora, agora num mundo globalizado com tendência a minimizar ou menorizar Portugal. Mais uma razão para uma expansão nossa, agora em moldes diferentes da época de quinhentos.

Vulgarmente envia-me por mail fotos de maquinaria impressionante pelo tamanho e funções, guindastes, gruas, escavadoras, dragas, e, por vezes, uma ou outra foto tirada por certo do alto de grua gigante, deixando ver os afadigados operários que em baixo mais parecem formiguinhas, em especial se comparados com os blocos utilizados para travar ou reforçar os molhes contra a fúria das ondas, quais colossos trípedes que, enganchando uns nos outros, tanto mais reforçam a coesão quanto mais as ditas cujas tentarem dispersá-los.

Portugal tem sido nos últimos anos um país em obras, nem tantas quanto desejaríamos dirão algumas, nem as que deveriam ser prioritárias, acrescentarão outras, mas isso não tira porém validade à questão nem esperança às obras agendadas. Não descortino a ligação que inferi entre estas obras, que no país vão surgindo ou surgiram um pouco por todo o lado, mais ou menos apreciadas, menos ou mais contestadas, e as obras que esse meu amigo dirige, o que é certo é que cada vez que passo por obras, e são muitas essas vezes, não deixo de lembrar esse meu amigo.

Talvez esta inusitada analogia derive do facto de as obras que vejo, ambas serem obras, já que nada mais lhes consigo encontrar em comum, não sei, não sei explicar, até porque a dimensão de umas e de outras são por vezes completamente díspares, certo é que as ligo em pensamento. Da empreitada que ao meu amigo compete vou dando conta pelas imagens que me envia, a par da descrição da vida na Argélia, país com cidades, hábitos e cultura muito diferentes da nossa e onde, não passando fome, se vê obrigado a dieta forçada que o tem tornado muito mais elegante.

Nas obras que pelo país vou vendo e dou conta cada dia que passa, claro que involuntariamente observo ou aprecio o esforço, o ímpeto, o avanço e o empenho que cada um dos formigueiros aplica no seu mister. Não direi que fico embevecida, mas comove-me o empenho, o profissionalismo e a organização engendrada por essas formiguinhas e que, pouco a pouco, vão dando corpo e realização aos projectos que abraçaram com uma entrega digna de nota.

No nosso país espero que contribuam para enriquecer o património, em especial de equipamentos sociais em que ainda somos tão carentes, infantários, creches, lares, novas escolas e hospitais, mas também outras estruturas, viárias, portuárias e aeroportuárias, empreendimentos turísticos e outros, que criem emprego, serviços e permitam a captação de divisas, que equilibrem a nossa balança de pagamentos, ajudem a colmatar ou a fazer desaparecer o malfadado deficit, que ponham fim a dramas de desempregadas e deslocadas.

Não sei porquê quero, ou desejo que, apesar da desigualdade e dissemelhança entre projectos e obras, de tal modo os intui como análogos apesar de nem eu saber as razões, acreditar piamente que alguma coisa no mundo, ou alguém, os colocou de molde a que os avalie a par e passo e venha a ter o prazer de os achar terminados e acumular motivos para duplamente comemorar e dar por satisfeita.

Terminariam os incómodos a que o aperto de cinto nos obriga e teria em simultâneo o prazer da chegada e visita desse amigo agora longe e que, como sempre, não se esquecerá de me trazer inigualáveis tabletes de genuínas tâmaras, como só naquele país e no médio-oriente se encontram.
Truck, obras, Orã





Orá, panorâmica de rua
Évora, obra no largo de Sertório
Évora, renovação da linha da CP
 * Texto concluído numa quinta-feira, 13 de ‎Novembro‎ de ‎2007, ‏‎pelas 11:14:54h e publicado por esses dias na coluna Kota de Mulher do Diário do Sul - Évora      


segunda-feira, 4 de setembro de 2017

457 - CARROSSEL MÁGICO * by Maria Luísa Baião

             

Para que o dia fosse um daqueles dias de encantar só faltava mesmo aquela coisa que logo pela manhã vi no ar. Um homem, sim, um homem passeando um carrossel, que com uma guita segurava pela mão. Girafas, zebras, cavalos, grilos, golfinhos, serpentes, peixes, tantos peixes que o dia num repente ficou mais parecido com um aquário. Tudo girando em montão, tudo tomando asas tal como um balão, fugidio caso lhe largassem a guita.

Eu marchava pela praça vogando ao sabor dos pensamentos quando esbarrou comigo um elefante azul e orelhudo. Tamanhas orelhas fizeram-me recordar uma entrevista dada vai já talvez para três anos a José Faustino, da Rádio Diana. Engraçado que, nessa entrevista, lembro-o tão bem, eu era só orelhas e cuidados. Engraçado como não aproveitei as oportunidades que cada pergunta encerrava. Senti-me empurrada, parecendo que alguém ou algo queria arrancar de mim, ou arrancar-me dali, tal foi a sensação quando uma mastodôntica baleia branca, perseguida por uma orca malhada, me atirou passeio fora. Então pouco à vontade na política, então pouco à vontade no protagonismo obtido com a vitória numa freguesia tão difícil, remeti-me, qual caracol, para dentro de uma concha protectora, o que hoje considero ter sido exagerado.

Olha ! Lá vai uma andorinha ! Será primavera já ? Sabem que se diz serem elas as mensageiras de Deus ?

Que me perdoe o José Faustino se aquela entrevista lhe não rendeu o esperado, temi que procurasse sangue e burilei as respostas tanto quanto pude. Tanto que, ouvida hoje, me pareceria não ser eu ali sentada frente a ele e àquele microfone.

Céus! Isto hoje está impossível ! vejam-me só quantos cavalos-marinhos aqui na praça !

Mas creio não ter estado mal apesar de tudo e penso que, melhor que eu, os governos tidos ao longo desse período responderam a muitas das interrogações (provocações?) que o José Faustino me atirou acima e que, qual nora esforçada, tentava arrancar de mim com uma fateixa.

Essa zebra deve ter pensado que a não vejo, ela que se cuide, já por aí vi tigres de Benguela, op ! Mais um tropeção bolas ! Que mar encapelado, só mesmo aos leões-marinhos apetece brincar ! Larguem-me os pés seus malandros, por favor !

Uma questão teimava andar à volta da diferença entre ser de esquerda ou de direita, fugi-lhe um pouco à resposta claro. Um leão da savana olhou-me intimidativo, parece o José Faustino conduzindo o interrogatório. Hoje não se é de esquerda nem de direita foi o que pensei para comigo, é a verdade, e em concomitância lhe respondi furtando-me a uma resposta directa.

Olha que lindo cavalo branco ! E que crina bem cuidada !

Hoje não teria fugido a essa pergunta como então fiz, ter-lhe-ia dito frontalmente que não me inscrevo nessas marcas, que estou acima delas, e sou pelas pessoas, pelo social, pelo progresso, pelo bem-estar, pela qualidade de vida e que, se alguma diferença existe entre forças políticas essa diferença está na razão e no fazer, exacto, especialmente no fazer.

Um pinguim avança para mim aos tropeções, só mesmo a ele achamos graça se aos tropeções.

Portugal, Évora, o país, a região, precisam de acção, precisam que por eles se faça alguma coisa, tudo. Lá aparecerá quem faça, como apareceu quem não tivesse feito.

Que lindos estes peixes, confundem-me com uma das deles por me verem soltando bolhinhas da boca !

Parecemos todas, ou somos todas (os) treinadores de bancada. Não há nenhuma, nenhuma de nós que não saiba o que deve ser feito para que isto se endireite. Pois façamos. É só fazer. Não é tão difícil como parecerá à primeira vista, é só fazer, é só ter vontade, é só compreender, é só arranjar motivação, de sobra, para os amigos também. E fazer. E sorrir. E dar despacho. E procurar a resposta. E achar a solução. E voltar a sorrir, satisfeita com mais um problema resolvido, um obstáculo ultrapassado. É copiar o exemplo. É dar o exemplo. É exigir o exemplo. 

Crocodilos do pântano levitam por cima de mim, corri para o homem da guita, quis comprar-lhe um bilhete para o carrossel, não mo negou, apenas me impediu por ser adulta. Mas foi simpático, atirou-me um sorriso de tamanho paquidérmico, com tal força que me desarmou. Mas não me quebrou o sonho, nem me atirou um não à primeira, disse-me que sim, mas…

             - “gostaria muito, teria até muito prazer nisso, seria mesmo boa publicidade para mim, mas a senhora veja, é já crescida, os animais não aguentam”.

Retruquei-lhe com a lábia mais sabida que tinha à mão, disparei-lhe um dos meus sorrisos/gargalhada, uma palmada nas costas, como fazem os homens, bebemos uma bejeca e ali mesmo lhe paguei todos os balões do carrossel, que distribui pelas crianças, correndo mais doidas que eu com aquele zoo inesperado.

E foi belo, enquanto as cervejolas frescas gorgolejavam goela abaixo era ver a miudagem circulando, contornando árvores e nuvens, subindo e descendo, até o contentamento os fazer voar céleres direitinhos a casa. Que cheiro a bolacha americana ! Onde ? Que desejo de matar saudades !

Os vendedores de balões nunca me desiludiram. Desculpa lá Faustino se nesse dia te troquei as voltas, é que não estava à vontade com uma joaninha avoa avoa que me tinha calhado em sorte. Abraços.


* Escrito a uma quinta-feira, ‎dia 10‎ de ‎Novembro‎ de ‎2005, ‏‎pelas 22:44:02h e publicado por esses dias no " Diário do Sul ", coluna " Kota de Mulher "

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

456 - VIEIRA E A SOPA DE PEDRA DE ALMEIRIM



               Não posso deixar de dar conta do prazer encontrado na leitura dos sermões do padre António Vieira, nado em Lisboa nos idos de Fevereiro do ano da graça de 1608, à Rua dos Cónegos, o que terá parecido um prenúncio a muita gente e não somente a mim que, através do conhecimento da sua biografia, e bibliografia, me surpreendi com o que já há muito sabia mas cuja espectacular dimensão nunca apreendera de imediato.

O padre António Vieira, aproveitando a então recente globalização iniciada pelos portugueses, os quais havia pouco mais de cem anos tinham dado novos mundos ao mundo, tornou-se um globetrotter de nos fazer inveja, numa época em que nem navios paquetes, nem cruzeiros, nem aviões e nem sequer balões dos que dariam a volta ao mundo em oitenta dias ou a tal Passarola do confrade Bartolomeu de Gusmão, que nasceria somente na década em que Vieira se finaria.

É notável e extraordinário quanto este jesuíta palmilhou, digo viajou, numa época em que só cascas de nozes, muita fé, um bom estômago e espírito de aventura permitiam tais viagens, mas a verdade é que pelo seu percurso o sabemos num ano em Lisboa, n’outro deles no Brasil, designadamente na Baía, novamente em Lisboa, depois Paris, Haia e Roma para daí voltar ao Brasil e retornar ao reino, à metrópole, donde partirá de novo p’ra terras de Santa Cruz, para no Maranhão vir a ser preso, expulso e recambiado para Lisboa devido ao facto de ser jesuíta.

Perseguido também em Portugal refugia-se no Porto e em Coimbra, esclareça-se que a Companhia de Jesus, ganhara grande ascendência no país e não só, digamos que a todos os níveis, o que acontecera paulatina e principalmente após a nossa independência do domínio filipino em 1640. Esta peculiar Companhia de Jesus abarcara claramente o domínio das influências na Corte, punha e dispunha nas Missões nas Américas e no oriente, dava cartas no ensino, era a vanguarda da cultura intelectual da época, o que como ainda hoje aconteceria despertou a desconfiança de governos e despoletou rivalidades n’outras ordens religiosas e no clero em geral. As condições criadas viriam a acicatar a antipatia pombalina para com os jesuítas, o resto da história já a sabemos, levou à sua expulsão do reino, sua dela, companhia. 

Foi em Coimbra que veio a ser julgado pela edição do livro “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo “ o que lhe valeu ser privado do direito de pregar, oralmente ou por escrito, e para sempre. Como podemos ver calar o pio é moda vinda do antigamente. Quanto a mim reconheço ter finalmente compreendido donde veio o Quinto Império a que aludia Fernando Pessoa, e não deixo de vos fazer notar que já em 1665, Portugal, o quinto império do mundo, não passaria de esperanças, aliás coarctadas, pelo que acrescentarei de minha lavra a certeza de que vivemos de esperanças há séculos…

“Quando é alto e régio o pensamento,
súbdita, a frase o busca
                e o escravo ritmo o serve “  *

Habituado a viajar e às representações diplomáticas o padre António Vieira faz-se deslocar a Roma como quem vai ali ao Samouco, a fim de pedir ao Papa Clemente X a absolvição da pena injusta a que fora condenado e a sua reabilitação perante a inquisição portuguesa, o que milagrosamente consegue, vencer o santo Oficio. Entretanto em Roma conhecera a Rainha Cristina, da Suécia, que o fez seu pregador e o convidou a ser seu confessor, convite que Vieira humildemente declina. Regressado a Lisboa vindo de Roma cedo parte novamente para o Brasil cuja costa cabotou ao longo da sua longa vida, pregando os seus sermões, tendo vindo a falecer na Baía aos 18 de Julho de 1697 com 87 anos.

Não posso deixar de frisar quão me surpreendeu a vida deste homem, culto e viajado numa época em que quaisquer destas qualidades eram difíceis de encontrar em alguém. Encontro-me lendo, com prazer, os seus “Sermões de Roma e Outros Textos” que as mais de quinhentas páginas desta sua obra encerram. Como devem calcular são os sermões de um padre mas não de qualquer padre, nem tão pouco de quaisquer sermões, são os sermões de Vieira, do padre António Vieira que, ao longo dos séculos se ergueram a um púlpito inimaginável e impressionante pela qualidade da sua oratória, da sua gramática, da sua retórica e da sua lógica.

Ao invés do tal livro de WHM que tanta celeuma causou pela barbaridade do conteúdo, este sim, este livro do padre António Vieira deveria ser de leitura obrigatória num qualquer programa escolar que se preze pois, ao contrário de “Eurico o Presbítero” este não obriga a ânsias nem vómitos, coisa que leva muito boa gente a nunca mais pegar num livro o resto da vida, ficando a abominar Alexandre Herculano. Pelo contrário os sermões escritos por este padre num português de qualidade impar, ajudam-nos a aperfeiçoar a linguagem e a argumentar e contra-argumentar, isto é a expor e a defender o pensamento e as ideias, os nossos pontos de vista, ajudando-nos a ordenar as ideias, a pensar.

Certamente já vos tereis interrogado acerca da razão pela qual vos trouxe hoje esta arenga e a verdade é que, não o parecendo tem porém a ver com a célebre “sopa de pedra” de Almeirim. A net distribuiu fartamente um anúncio que me sobressaltara ao vê-lo na TV, “Festival da Sopa da Pedra e do Petisco 2017” tal e qual, e todos parecem ter ficado satisfeitos com a obra parida. Tive oportunidade, na net, de lhes chamar a atenção para tão clamoroso erro pois na verdade os organizadores deveriam ter escrito “Festival da Sopa DE Pedra e do Petisco 2017” mas debalde e, curiosamente ia sendo incinerado numa fogueira.

É surpreendente que dos organizadores do certame à gráfica que imprimiu os folhetos, acabando na TV que passou os anúncios ninguém tenha dado por tão crasso erro, ou pelo menos tenha sido assaltado pela dúvida e puxado de uma gramática ou dicionário, ou simplesmente tirado a dúvida junto de alguém mais conhecedor da nossa língua. Antigamente gráficas e redacções acoitavam um designado "revisor" que evitava estes desastres, agora só se pensa em reduzir pessoal e poupar... 

Veio-me então à memória e a propósito uma piada que há poucos dias iniciou a corrida nas redes sociais:

- Estás mais gordo, devias ir para o ginásio.
- Eh pá ! E tu devias ir para a biblioteca.
- Não percebi.
- Lá está…

É tudo por agora, e se forem a Almeirim comam uma saborosa sopa de pedra, sopa delas, das boas e ignaras gentes de Almeirim, e não da pedra, de qualquer pedra, preciosa ou não.


             * Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa.

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

455 - A CUNHA * by Maria Luísa Baião ......................


Quando no início da década de oitenta, na companhia de um casal amigo, visitei pela primeira vez Paris, nunca julguei que uma cidade me deslumbrasse tanto. A cada esquina, em cada rua, Paris dava jus ao nome de cidade luz. Mesmo que muitos o não queiram ou aceitem, é ali o umbigo do mundo. Muitas cidades visitara e visitei depois, nenhuma me causou uma impressão idêntica à dessa cidade linda, na sua pluralidade de surpresas e contrastes.

Em Paris está (in) escrita a história do mundo, nas suas gentes, monumentos, museus e, mais difícil de observar, como odor sentido no ar, a ambiência constante que cada cenário invoca em nós. Guardo religiosamente uma fotografia de um facto aparentemente sem importância, hoje talvez submerso no pulsar da cidade, que mais não é que a memória de um mural gigante, pintado por artista ou artistas indígenas, cônscios do palpitar dessa capital cultural do mundo, a sua cidade. Na faceta lateral de um prédio enorme, posta a descoberto pela demolição do seu vizinho do lado por mor da ampliação de uma praça ajardinada, um mural intitulado “ Il’s on fait le XX siécle “.

Com 30 x 30m, ou mais, surgiam-nos em catadupa as relevantes figuras que nesse século e neste mundo, nele tinham tido alguma preponderância. Cientistas, literatos, astronautas, nobéis, heróis, políticos e gente simples que por feitos extraordinários se distinguira. Não me acudiu à memória qualquer um que tivesse sido esquecido.

Representando Portugal, lá estava Salazar, como Franco, Mussolini, Hitler e Estaline. Não estava Gorbatchov, não chegara ainda o seu tempo, e, se desde então até hoje eu tivesse que acrescentar algum dos nossos, não esqueceria Saramago e Bagão Félix, um comunista excelso, coerente e lúcido, ao lado de um cristão-democrata ilustre, eminente e humanista.

Os franceses celebram o mundo, altruístas, talvez porque realizados, sem complexos etnocêntricos ou patrioteiros, cientes que não será por engrandecerem outros que lhes calhará nódoa na lapela. Nós por cá, denegrimo-nos com um fervor maior que Nelson na célebre batalha de Trafalgar, que lhe deu a vitória mas viria a custar a vida.

Caem ministros, zangam-se ex´s e comadres por causa de cunhas, imaginem, por causa de uma cunha ! Coisa tão banalizada entre nós, com séculos de prática corrente e que um dos ministros, pelo menos ao nível do seu ministério, se preparava para, timidamente, generalizar. Era um bom princípio, partindo dessa generalização meio legalizada, outros, mais corajosos, coerentes e necessitados dessa prática ancestral deveriam aproveitar a oportunidade para institucionalizar a cunha, legalizá-la, democratizá-la, popularizá-la, regulamentá-la, já que, pese embora a sua ancestralidade, não é ainda a Magna Carta.

E, quando por toda a Europa comunitária se luta pela individualidade e especificidade cultural de cada nação, que outra coisa, que não a cunha, nos identificaria mais face a outros povos e culturas?

Um ministro pretendeu brindar outro sem que lho tivessem pedido? Mas que acção fará mais feliz um português que o privilégio de distribuir cunhas à esquerda e à direita mesmo que lhas não peçam ? E que admiração se um outro ou o outro, pediu para a filha uma cunha ? Mas não vive o país todo à espera disso ? Quantas mães de família não rememoram pelo menos uma vez na vida o seu cardápio de conhecimentos e influências ? Não se dirigem ao tio, que é sobrinho do filho de, que por sua vez é amicíssimo de fulano que trabalha com beltrano, o tal que é superior hierárquico de sicrano, precisamente o filantropo a quem a cunha deverá ser finalmente endereçada, devidamente embalada, não esquecendo a garrafinha de Visqui pelo Natal, ou o borrego pela Páscoa ?

Que coisa temos mais genuinamente nossa ? Como resolveríamos nós os nossos excessos burocráticos sem esta maravilha que é a cunha ? Já produziu a física por acaso algo mais simples e eficiente que este mero plano inclinado ? Esta alavanca que move o mundo ? Claro que não ! Haja portanto coragem e coerência. 
    


* Escrita segunda-feira, ‎28‎ de ‎Novembro‎ de ‎2005, ‏‎17:07:22 – publicada no Diário do Sul em … (?)

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

454 - A HERANÇA INESPERADA * by Luísa Baião...


Conhecera-o há mais de vinte anos quando, duas vezes por semana era destacada em serviço para o Centro de Saúde Mental ali aos Canaviais. Ele há muito lá vivia, qualquer perturbação que não recordo nem me lembro de alguém conhecer para ali o atirara, como a tantos outros e outras. Cada um constituía uma personalidade muito própria, muito marcada, com a qual era necessário saber lidar particularmente e por vezes parecia-me só à hora das refeições concertarem ideias. Outras vezes nem nessa ocasião o conseguiam.
  
 Tratei-o e conheci-o durante bastante tempo, não era violento, bem pelo contrário, atencioso por vezes em excesso. Alimentava dois sonhos, que alguém lhe passasse um cheque em branco, coisa que pedia a qualquer um, o outro o de um dia casar comigo, de quem gostava muito.
  
Claro que segura e educadamente sempre lhe fui refreando as ilusões, e penso até que sem o ter alguma vez magoado. Era casada e pronto, ele tinha que ter isso em atenção e esquecer-me, e esqueceu. Esquecia por esse dia, porque no dia seguinte ou na semana seguinte voltava à carga. E eu torneava-lhe a questão sempre do mesmo modo. Nunca houve qualquer problema entre nós, era inofensivo estava medicado e as manias foram posteriormente evoluindo para que lhe oferecesse bonés, que adorava, porta-chaves, bandeiras ou camisolas, fossem de que partido ou clube fossem, coisas que me sobravam e com as quais exultava a tal ponto que se foi esquecendo do casamento, e eu também claro, com tantos doentes para tratar, cada um com a sua singularidade, excentricidade ou fantasia, foi coisa natural.
  
Estive posteriormente muitos anos sem o ver. A minha “comissão” no Centro de Saúde Mental terminara, ou fui substituída, não recordo nem interessa à história verídica, de hoje. Somente volvidos mais de dez ou quinze anos o voltei a encontrar. Uma visita a um Lar de Recolhimento onde parentes meus, gente afastada, estica os dias como tantos outros, e, entre esses muitos outros, ele. Mais velho, mais abatido, mais doente, o que não obstou a que de imediato me tivesse reconhecido, manifestado uma alegria imensa e lembrado as prendas que eu costumava levar-lhe. Foi o reinício de uma série de pedidos que mensalmente lhe satisfiz e nem me custaram praticamente nada. Talvez o mais caro tenha sido um rádio portátil, adquirido no mercado das terças-feiras por uns míseros cinco euros e que mais que isso me veio posteriormente a custar em pilhas, já que invariavelmente se esquecia de o desligar.

 Vi-o envelhecer a olhos vistos e muito rapidamente apesar de bem cuidado e tratado. Se a pessoa não quer, quer parecer-me mesmo que a velhice se acelera, tomando por vezes os contornos de um estado galopante. Devido a razões pessoais estive durante três ou quatro meses sem visitar esse Lar. Quando por fim retomei as visitas fui recebida à chegada com excessiva e inusitada reverência e alguém, muito contrito, lá me disse balbuciante que esse meu amigo havia falecido há umas semanas. Acrescentou pormenores sobre os seus derradeiros dias e horas, tendo-me informado que num grande saco de plástico preto ficara para mim algo que ele fizera questão de apartar antes de se finar, com pedido expresso para que o saco e respectivo conteúdo me viessem a ser entregues. Ali estava o saco, ali estava eu, guardei-o na mala do carro e só em casa o abri. Lá se achavam o rádio, um relógio barato, pilhas consumidas, bonés, camisolas e praticamente todas as lembranças que lhe tinha oferecido desde a primeira hora. No meio de tudo isto uma carta, num muito branco envelope, com o meu nome no exterior, escrito por alguém que não ele pois sabia há muito ter perdido a faculdade da escrita e quase a da fala, embora esta tenha sido recuperada com alguma facilidade desde os seus primeiros tempos de internamento em Évora. Curiosa abri o envelope, dentro dele talvez o que todos os psicólogos e psiquiatras por quem passou ao longo dos anos, e muitos, que o acompanharam, tenham desejado saber. Datada de 1976, escrita em caligrafia muito certinha e bonita, sem que contudo fizesse a mínima menção ao nome de quem quer que fosse, uma carta de amor já amarelada pelo tempo**, talvez nunca enviada mas dirigida a alguém que certamente muito amara e, cujo amor, a julgar pelo conteúdo, nunca fora correspondido.
  
Hoje sei, não só por filmes e romances, como o amor pode ser fulminante ou consumir uma vida inteira. Que mulher teria sido aquela tão amada assim ? Quem teria sido ela ?

Qual a história dele que, no fundo não terá sido nem mais nem menos que um complemento ou prolongamento da vida que vos acabo de contar e cuja parte sei, porque a conheci, tão atribulada, curta e dolorosa foi. Por razões que entenderão não transcreverei essa carta, mas garanto-vos que embora escrita por uma mão masculina, nada fica a dever em magnificência à bela prosa de Florbela Espanca.

O amor, qual potestade, geralmente constrói, mas também pode destruir vidas. Persignei-me e, perturbada, desejei sinceramente paz à sua alma. 

* Nota: Provavelmente este texto foi escrito numa ‎terça-feira, ‎3‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006, ‏‎pelas 11:01:36 h

** (não para mim pois em 1976 nem sonhava vir a fazer serviço nesse Centro de Saúde Mental).


quarta-feira, 16 de agosto de 2017

453 - Ó ROSINHA OLHA A SNRa. MARQUESA !!!!







Há uns dias para responder com exactidão a questão que se me deparara e não querendo desiludir um amigo, embrenhei-me nos cartapácios de história tendo a dado momento sido casual e inadvertidamente confrontado com o deslumbramento de Leonor. Expectante estaquei, fiquei ali parado, seduzido, fascinado, encantado, na realidade pasmado, imaginando-me também eu passível de ser acometido e tomado por tais alumbramentos, êxtases, entregas e paixões.

Certamente outros que não os que agora me prendem, seduzem ou conquistam, a variedade de escolhas à disposição seria bem menor, como menor seria o leque de oportunidades ou possibilidades de realização, sobretudo sendo-se mulher (não estou a ser machista ó Mariazinha marquesa de Índigo), como teria sido o caso de Teresa de Ávila (1515 – 1582), a propósito e na sequência de cuja consulta vim a lembrar-me de uma outra mulher de peso, ou contrapeso, Leonor d’Almeida, porque nem crente nem devota, ao invés de Teresa de Ávila, mais conhecida entre nós como Santa Teresa de Jesus, nascida Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, carmelita que viveu o auge do misticismo católico, o mesmo misticismo que mais tarde pesaria à nossa forçada penitente, a boa Leonor de Almeida, de todos conhecida por Marquesa de Alorna, cuja vida daria um filme, um livro já deu, a Rosinha adorará lê-lo de certezinha seja ou não escrito pela Stilwell. Este a que me refiro devemos agradecê-lo à escritora Maria João Lopo de Carvalho que em nada fica atrás da Isabel a não ser no abecedário e no arquivo.

Maria João Lopo de Carvalho trabalhou magistralmente o romantismo e a penitência de que se revestiu a vida da nossa boa D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, que “escrevia poemas à secreta luz da lua enquanto ouvia o espaço incerto das raízes do seu tempo sentindo em si o motim e depois o desconcerto”,* ou seja, uma avalanche de alumbramentos, êxtases, entregas e paixões, enfim, de emoções insatisfeitas cujo sentir plasmou na poesia, mau grado as condições em que escrevia, e sem querer fiz poesia, o que só prova que a respeito de inspiração também eu terei os meus dias…

Teresa de Ávila começou por ser uma noviça carmelita, católica, vindo a acabar os seus dias rodeada de misticismo tendo sido canonizada ainda no século XVI, o século em que viveu, e somente quarenta anos após a morte. Não estarão desligados da sua ascensão aos céus e na hierarquia católica os factos importantíssimos atribuídos à sua actuação durante a Contra Reforma, numa Castela ou Espanha doentiamente católica. Naturalmente foi nesse contexto que obtiveram protecção e divulgação as suas obras sobre a vida contemplativa através da oração mental, nesta época de caça às bruxas, íncubos e mafarricos somente alumbramentos, êxtases, entregas e paixões místicas eram aceites, fenómenos de que os seus leitores eram alvo ou se diziam possuídos. Não havendo cinema, na ausência de internet, faltando-lhes o Facebook, o Twitter e o Instagram que restava à populaça que não o misticismo ? Interessante notar que Miguel Cervantes e o tal D. Quixote de La Mancha viveram por esta época.

O cerne do pensamento místico de Santa Teresa era a ascensão da alma em quatro estágios. O primeiro - "oração mental" o segundo - "oração de silêncio" o terceiro - "devoção de união" e o quarto - "devoção do êxtase ou arrebatamento" Santa Teresa foi uma importante autora da oração mental e detém uma posição entre os autores da teologia mística única. Em todas as suas obras relata as suas próprias experiências e, ajudada por uma profunda perspicácia e capacidade analítica, explica-as de forma claríssima. A sua definição de "oração contemplativa" foi aproveitada pela Igreja Católica que a integrou no Catecismo: "Oração contemplativa, é nada mais que uma partilha íntima entre amigos; significa dedicarmo-nos frequentemente tempo para estar sozinhos ou com quem sabemos que nos ama". Escritas com fins didácticos, as suas obras encontram-se facilmente na literatura mística da Igreja Católica destinadas a difundir a fé e a devoção entre os crentes. Devido à sua actuação na luta desenvolvida pela Contra Reforma foi-lhe dada a oportunidade de reformar profundamente a Ordem Carmelita sendo considerada co-fundadora da nova Ordem dos Carmelitas Descalços. E quanto à nossa boa Leonor de Almeida, a nossa marquesinha de Alorna que podemos dizer ?   


Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre 1750-1839 foi uma nobre e poetisa portuguesa conhecida nos anais da poesia por "Alcipe". De sangue azul, era filha de D. João de Almeida Portugal, segundo marquês de Alorna e quinto conde de Assumar família perseguida pelo Marquês de Pombal sob acusação de parentesco aos Távoras. A família de Leonor de Almeida foi acusada do empréstimo duma espingarda a um dos conjurados e Leonor foi encerrada como prisioneira com a mãe e a irmã no convento de São Félix em Chelas, de 1758 a 1777, aos 8 anos de idade, tendo o seu infortúnio durado dezoito anos, dos 8 aos 27 anos. Leonor fora claramente malfadada ao nascer e teve além disso uma infância atribulada, os avós maternos executados barbaramente, o pai preso e encarcerado na Torre de Belém e no forte da Junqueira, todos devido a suspeitas de envolvimento no crime dos Távoras.

 Na morte de el-rei D. José, sua filha, e futura rainha D. Maria I, mandou finalmente libertar os prisioneiros do Estado. Durante esses dezoito anos de cativeiro Leonor não deixou contudo de receber uma educação esmerada e uma formação completíssima, além dos custos do cativeiro soube estudar e dedicar-se a trabalhos artísticos e literários, entre outras actividades que lhe são conhecidas sabe-se que Leonor se entregou à pintura e se dedicou à enfermagem, tendo trabalhado como cozinheira e organista do convento. Conhecia várias línguas, desenhava e pintava admiravelmente, possuía vasta instrução científica, e o seu carácter era apesar de tudo afável, amenizando com meiguice e candura as amarguras da mãe e de outros desditosos e desditosas. A audácia de ter afrontado a ira do Marquês de Pombal tornaram-na digna, considerada e respeitada.

Moralmente desgastada saiu do convento e da clausura somente aos vinte e sete anos, demasiado e psicologicamente afectada para que sua poesia pudesse ser um risonho passatempo, o que todavia não obstou a ter escrito quase toda a poesia na prisão Convento de Chelas. Apesar das circunstâncias deixou-nos um legado de composições poéticas interessantes, com uma expressão romântica, demonstrando uma superior e romântica sensibilidade, sobretudo se tivermos em conta as atribulações a que a vida conventual e de cativeiro a obrigaram. Duas mulheres que a história resguardou, uma por ter vivido à custa do misticismo católico, escrito uns livros de orações e um catecismo, e a outra por ter sofrido as agruras da clausura religiosa, publicado obras de mérito cientifico, poetisa de se lhe tirar o chapéu e não me admira ter sido sempre avessa a crenças a fé e a devoções, de crente ou devota Leonor nunca deu mostras. 

 A sua longa vida de nobre dama de corte e de poetisa foi todavia ricamente preenchida, e vivida, quer em Portugal quer no estrangeiro, era dama da Ordem da Cruz Estrelada, da Alemanha, valendo a pena ler com vagar o livro de Maria João Lopo de Carvalho e dar atenção à sua biografia e bibliografia. Leonor de Almeida contaria perto de noventa anos quando foi visitada pelo Marquês de Fronteira, acabara de chegar do estrangeiro e mal D. Maria II a soube entrada em Lisboa como prova de apreço concedeu-lhe de imediato a banda da ordem de Santa Isabel, e renovou-lhe os títulos de 6.ª condessa de Assumar e 4.ª marquesa de Alorna por decreto de 26 de Outubro de 1833.

Faleceu tão formosa e tão segura senhora a 11 de Outubro de 1839 no Palácio de Fronteira, propriedade do Marquês de Fronteira, aproveitando eu para vos confessar ter o último destes marqueses, D. Fernando de Mascarenhas* igualmente Conde da Torre, sido meu professor das cadeiras de Teoria da História, bom tipo, gordinho baixo e simpático mas que me deixou perplexo e em vacilante mais de uma hora, eu chegara atrasado à primeira aula, ficando em dúvida se seria um ou uma professora, tinha uma voz de falsete (não tem que ver com falsidade) e um cabelo encaracolado lindo e louro encimando rubicundas bochechas, inda que não fosse essa a razão pela qual lhe chamavam o Marquês Vermelho. Mas voltemos à nossa boa Marquesa de Alorna pois em mim não corre sangue azul nas veias, para vos dizer que faleceu vinte dias antes de completar 89 anos de vida, tendo demonstrado invulgar longevidade para essa época. Foi sepultada no dia seguinte em jazigo particular, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde poderemos chorá-la. 

* Maria Teresa Horta – Poésis – Lisboa, D. Quixote, pág. 217