Ser o Benjamim duma família de cinco filhos e ainda por cima
o único rapaz nunca me ajudou. Primeiro porque assimilei muita da sensibilidade
feminina, modos e trejeitos que me valeram o repúdio de muitos e o isolamento
na escola, onde o Groucho foi o único amigo que se manteve firme e fixe até hoje.
Segundo porque para provar ao paizinho que tanto a sua hostilidade como a sua
postura ostensiva em relação a mim estavam erradas e me levaram a erradamente
conduzir a minha própria vida.
Por vezes parece-me estar ainda ouvindo-o:
- Estragaram-me o único gaiato, fizeram dele um efeminado de
merda, tantas esperanças que eu alimentara.
Recordo-me como se fosse hoje, deviam ser umas dez da manhã,
ele arrancara-me bruta e bruscamente ao convívio das minhas irmãs e atirara
comigo porta fora. Não, não me meteu na rua, eu é que de orgulho ferido e
atingido na virilidade rumei à estação e antes das onze assomava à janela
do comboio para a capital. Dias atrás fizera dezassete anos, por Deus que me
lembro como se fosse hoje.
Um pouco antes daquela época tinham-se experimentado por todo
o país as primeiras turmas mistas e, se entre os rapazes somente o Groucho se
mantinha firme na confiança que nele sempre pudera depositar, entre as
raparigas via-me tão ou mais submergido e abafado por carinhos e mesuras que
alguma vez o fora em casa pelas manas.
O mundo é feito de contradições, de pequenos nadas, onde o Yin
e o Yang se equilibram de modo precário mas eficaz, as amizades que não
porfiava encontrar entre os colegas sobravam-me entre as colegas, entre mim e
elas nunca houve segredos, nem segredos nem mal entendidos, dávamo-nos
maravilhosamente.
Acarinhado assim fora-o também quando terminado o sétimo ano
ingressara na WoolTrade, uma multinacional de curtimenta e confecção de artigos
em pele. Nessa empresa voltei a ser, como sempre fora em casa, um homem entre
mulheres e, não tivesse sido a cada vez maior aversão que o paizinho me
demonstrava abertamente teria levado a jantar em minha casa, à vez
naturalmente, cada uma das mais de cem amigas da WoolTrade. Talvez não fossem
tantas assim mas a verdade é que não vim a casar com nenhuma delas, tudo por
uma questão de somenos importância, embora complexo o mundo é feito de pequenos
nadas e para ser franco nunca consegui abrir os colchetes dos sutiãs a nenhuma
delas, por incrível que pareça no momento crítico via-me sempre atrapalhado.
Com a minha Luisinha, que tirara o curso em Lisboa enquanto eu por lá cursava a tropa
de elite em que me inscrevera, consegui, estamos casados quase há trinta anos sem
uma beliscadura.
Naquela mesma tarde em que o paizinho me arrancara ao doce convívio
das manas alistei-me nas tropas especiais, nos fuzileiros, tinha dezassete anos
e precisava de ficar nalgum sítio, fiquei na Casa Do Marujo, na baixa de
Lisboa ali à rua do Arsenal, pegada com o Ministério da Marinha o qual viria
a ser a minha casa durante os anos seguintes, alternados de
prolongadas licenças e férias, somaram uma década.
O paizinho havia de ter tido orgulho em mim, mas
infelizmente viera a falecer pouco tempo após a minha intempestiva saída de
casa e por razões que compreenderão. Somente meia dúzia de anos depois da sua
morte vim a conhecer o facto, o facto e as circunstâncias, morreu como viveu, à
bruta, engasgado com um pedaço de borrego que não conseguiram soltar-lhe a tempo
da garganta pelo que se finou todo vermelho, vermelhusco, mais vermelho que o próprio
nariz, sempre denunciando-o, fosse inverno fosse verão e, entretanto
naturalmente o ensopado esfriou e já ninguém o comeu, segundo me contariam alguns
anos ainda mais tarde.
A sua morte culminou o processo de desagregação da família,
os seus modos rudes sempre tal haviam prenunciado, sem ele e sem mim as manas
debandaram como um bando de pardais, a Mia, Minervina de seu nome fora a
primeira, o moço com quem casara um subinspector da Pide com vida feita no
aeroporto de Faro, fora obrigado a fugir para os USA após uma rocambolesca fuga
em que ninguém sabe como deixaram escapar quase noventa deles da prisão de alta
segurança de Alcoentre numa tarde de Domingo, 29 de Junho de 75, o malfadado
verão quente, imaginem só o que não terão penado nesse dia os desgraçados, o
certo é que nenhum deles voltou a esta Pátria que tão ingrata lhes fora.
As restantes e à vez foram abandonando o ninho, voltámos a
encontrar-nos todos há dias no escritório do advogado tratante das partilhas e
da venda da casa do paizinho, cujo pecúlio dividiu por todos nós sem esquecer
guardar para si mesmo a melhor parte. A mais novinha delas, a Mariana, tem
passado as passinhas do Allgarve, escolheu Psicologia por lhe agradar conhecer
o género humano e não consegue acertar uma, já vai no quarto marido e não tarda
no quarto divórcio. A artista da família, a Gertrudes, que adorava cantar e
tinha jeito, casou com um director de serviços da Seg. Social que a puxou para
lá queixando-se ela desde sempre aborrecer-se imenso, que não faz nada, faz
depressões digo eu, passa a vida de depressão em depressão, teve mais de uma dúzia
nos últimos dez anos e aposto que não se ficará por ali, qualquer dia será ela
também chefe de serviço após o que se reformará com uma choruda reforma, merece-a,
só eu sei o que ela tem ali penado.
A outra gémea do meio, a Dádá, a Deodata sempre manifestara
jeito para trabalhos manuais e lavoures, conseguiu imiscuir-se como mestra de
trabalhos manuais numa escola preparatória em fins de 79 princípios de 80, e por
lá ficou, o sindicato cuidou-lhe da carreira, soube compor as coisas e hoje
ela, ela e mais umas boas centenas ou milhares são professores do quadro,
continuam maravilhosamente trabalhando com as mãos mas não lhes peçam para abrir
a boca ou escrever uma letra pois tal iria muito para além do que são capazes e
nem um sindicato faz milagres.
A vida é feita de pequenos nadas e na ausência de pequenos
nadas a família dispersou-se e desintegrou-se. Eu fiquei uns tempos entre os
homens de barba rija, eram tempos em que se podia ser herói e fiz por isso,
corri toda a África do equador ao Cabo armado em Rambo e quando me cansei
voltei para a WoolTrade e para a minha Bertinha, para o aconchego das mulheres cujas
disputas por mim sempre me alimentaram o ego (foi por estar farto delas que me casei), e
como castigo do Senhor tenho quatro filhos e uma filha, ela é uma Maria rapaz,
a mãe não lhe poderia ter escolhido melhor nome, Maria José, por vontade da mãe
todos eles têm nomes de mulher, Manuel Maria, Joaquim Encarnação, António
Epifania, José Vitória. Adoram brincar com as bonecas da irmã, espero
sinceramente que nenhum saia maricas e a Maria José não me estrague o apelido
com parvoíces daquelas da igualdade de géneros, fora isso é uma mulher perfeita,
admira-me como os marmanjos não se atiram a ela, espero que não haja ali gato.
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http://sicnoticias.sapo.pt/programas/perdidoseachados/2017-04-24-Os-pides-fugiram-daqui
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