Quando no início da década de oitenta,
na companhia de um casal amigo, visitei pela primeira vez Paris, nunca julguei
que uma cidade me deslumbrasse tanto. A cada esquina, em cada rua, Paris dava
jus ao nome de cidade luz. Mesmo que muitos o não queiram ou aceitem, é ali o
umbigo do mundo. Muitas cidades visitara e visitei depois, nenhuma me causou
uma impressão idêntica à dessa cidade linda, na sua pluralidade de surpresas e
contrastes.
Em Paris está (in) escrita a história
do mundo, nas suas gentes, monumentos, museus e, mais difícil de observar, como
odor sentido no ar, a ambiência constante que cada cenário invoca em nós. Guardo
religiosamente uma fotografia de um facto aparentemente sem importância, hoje
talvez submerso no pulsar da cidade, que mais não é que a memória de um mural
gigante, pintado por artista ou artistas indígenas, cônscios do palpitar dessa
capital cultural do mundo, a sua cidade. Na faceta lateral de um prédio enorme,
posta a descoberto pela demolição do seu vizinho do lado por mor da ampliação
de uma praça ajardinada, um mural intitulado “ Il’s on fait le XX siécle “.
Com 30 x 30m, ou mais, surgiam-nos em
catadupa as relevantes figuras que nesse século e neste mundo, nele tinham tido
alguma preponderância. Cientistas, literatos, astronautas, nobéis, heróis,
políticos e gente simples que por feitos extraordinários se distinguira. Não me
acudiu à memória qualquer um que tivesse sido esquecido.
Representando Portugal, lá estava
Salazar, como Franco, Mussolini, Hitler e Estaline. Não estava Gorbatchov, não
chegara ainda o seu tempo, e, se desde então até hoje eu tivesse que
acrescentar algum dos nossos, não esqueceria Saramago e Bagão Félix, um
comunista excelso, coerente e lúcido, ao lado de um cristão-democrata ilustre,
eminente e humanista.
Os franceses celebram o mundo,
altruístas, talvez porque realizados, sem complexos etnocêntricos ou
patrioteiros, cientes que não será por engrandecerem outros que lhes calhará
nódoa na lapela. Nós por cá, denegrimo-nos com um fervor maior que Nelson na
célebre batalha de Trafalgar, que lhe deu a vitória mas viria a custar a vida.
Caem ministros, zangam-se ex´s e
comadres por causa de cunhas, imaginem, por causa de uma cunha ! Coisa tão
banalizada entre nós, com séculos de prática corrente e que um dos ministros,
pelo menos ao nível do seu ministério, se preparava para, timidamente,
generalizar. Era um bom princípio, partindo dessa generalização meio
legalizada, outros, mais corajosos, coerentes e necessitados dessa prática
ancestral deveriam aproveitar a oportunidade para institucionalizar a cunha, legalizá-la,
democratizá-la, popularizá-la, regulamentá-la, já que, pese embora a sua
ancestralidade, não é ainda a Magna Carta.
E, quando por toda a Europa
comunitária se luta pela individualidade e especificidade cultural de cada
nação, que outra coisa, que não a cunha, nos identificaria mais face a outros
povos e culturas?
Um ministro pretendeu brindar outro
sem que lho tivessem pedido? Mas que acção fará mais feliz um português que o
privilégio de distribuir cunhas à esquerda e à direita mesmo que lhas não peçam
? E que admiração se um outro ou o outro, pediu para a filha uma cunha ? Mas
não vive o país todo à espera disso ? Quantas mães de família não rememoram
pelo menos uma vez na vida o seu cardápio de conhecimentos e influências ? Não
se dirigem ao tio, que é sobrinho do filho de, que por sua vez é amicíssimo de
fulano que trabalha com beltrano, o tal que é superior hierárquico de sicrano,
precisamente o filantropo a quem a cunha deverá ser finalmente endereçada,
devidamente embalada, não esquecendo a garrafinha de Visqui pelo Natal, ou o
borrego pela Páscoa ?
Que coisa temos mais genuinamente
nossa ? Como resolveríamos nós os nossos excessos burocráticos sem esta
maravilha que é a cunha ? Já produziu a física por acaso algo mais simples e
eficiente que este mero plano inclinado ? Esta alavanca que move o mundo ? Claro
que não ! Haja portanto coragem e coerência.
* Escrita segunda-feira,
28 de Novembro de 2005, 17:07:22 – publicada no Diário do Sul em … (?)