Conhecera-o há mais de
vinte anos quando, duas vezes por semana era destacada em serviço para o Centro
de Saúde Mental ali aos Canaviais. Ele há muito lá vivia, qualquer perturbação
que não recordo nem me lembro de alguém conhecer para ali o atirara, como a
tantos outros e outras. Cada um constituía uma personalidade muito própria,
muito marcada, com a qual era necessário saber lidar particularmente e por
vezes parecia-me só à hora das refeições concertarem ideias. Outras vezes nem
nessa ocasião o conseguiam.
Tratei-o e conheci-o durante bastante tempo,
não era violento, bem pelo contrário, atencioso por vezes em excesso. Alimentava
dois sonhos, que alguém lhe passasse um cheque em branco, coisa que pedia a
qualquer um, o outro o de um dia casar comigo, de quem gostava muito.
Claro que segura e
educadamente sempre lhe fui refreando as ilusões, e penso até que sem o ter
alguma vez magoado. Era casada e pronto, ele tinha que ter isso em atenção e
esquecer-me, e esqueceu. Esquecia por esse dia, porque no dia seguinte ou na
semana seguinte voltava à carga. E eu torneava-lhe a questão sempre do mesmo
modo. Nunca houve qualquer problema entre nós, era inofensivo estava medicado e
as manias foram posteriormente evoluindo para que lhe oferecesse bonés, que
adorava, porta-chaves, bandeiras ou camisolas, fossem de que partido ou clube
fossem, coisas que me sobravam e com as quais exultava a tal ponto que se foi
esquecendo do casamento, e eu também claro, com tantos doentes para tratar,
cada um com a sua singularidade, excentricidade ou fantasia, foi coisa natural.
Estive posteriormente
muitos anos sem o ver. A minha “comissão” no Centro de Saúde Mental terminara,
ou fui substituída, não recordo nem interessa à história verídica, de hoje. Somente
volvidos mais de dez ou quinze anos o voltei a encontrar. Uma visita a um Lar
de Recolhimento onde parentes meus, gente afastada, estica os dias como tantos
outros, e, entre esses muitos outros, ele. Mais velho, mais abatido, mais
doente, o que não obstou a que de imediato me tivesse reconhecido, manifestado uma
alegria imensa e lembrado as prendas que eu costumava levar-lhe. Foi o reinício
de uma série de pedidos que mensalmente lhe satisfiz e nem me custaram
praticamente nada. Talvez o mais caro tenha sido um rádio portátil, adquirido
no mercado das terças-feiras por uns míseros cinco euros e que mais que isso me
veio posteriormente a custar em pilhas, já que invariavelmente se esquecia de o
desligar.
Vi-o envelhecer a olhos
vistos e muito rapidamente apesar de bem cuidado e tratado. Se a pessoa não
quer, quer parecer-me mesmo que a velhice se acelera, tomando por vezes os
contornos de um estado galopante. Devido a razões pessoais estive durante três
ou quatro meses sem visitar esse Lar. Quando por fim retomei as visitas fui
recebida à chegada com excessiva e inusitada reverência e alguém, muito
contrito, lá me disse balbuciante que esse meu amigo havia falecido há umas
semanas. Acrescentou pormenores sobre os seus derradeiros dias e horas,
tendo-me informado que num grande saco de plástico preto ficara para mim algo
que ele fizera questão de apartar antes de se finar, com pedido expresso para
que o saco e respectivo conteúdo me viessem a ser entregues. Ali estava o saco,
ali estava eu, guardei-o na mala do carro e só em casa o abri. Lá se achavam o
rádio, um relógio barato, pilhas consumidas, bonés, camisolas e praticamente
todas as lembranças que lhe tinha oferecido desde a primeira hora. No meio de
tudo isto uma carta, num muito branco envelope, com o meu nome no exterior,
escrito por alguém que não ele pois sabia há muito ter perdido a faculdade da
escrita e quase a da fala, embora esta tenha sido recuperada com alguma
facilidade desde os seus primeiros tempos de internamento em Évora. Curiosa
abri o envelope, dentro dele talvez o que todos os psicólogos e psiquiatras por
quem passou ao longo dos anos, e muitos, que o acompanharam, tenham desejado
saber. Datada de 1976, escrita em caligrafia muito certinha e bonita, sem que
contudo fizesse a mínima menção ao nome de quem quer que fosse, uma carta de
amor já amarelada pelo tempo**, talvez nunca enviada mas dirigida a alguém que
certamente muito amara e, cujo amor, a julgar pelo conteúdo, nunca fora
correspondido.
Hoje sei, não só por
filmes e romances, como o amor pode ser fulminante ou consumir uma vida
inteira. Que mulher teria sido aquela tão amada assim ? Quem teria sido ela ?
Qual a história dele que,
no fundo não terá sido nem mais nem menos que um complemento ou prolongamento
da vida que vos acabo de contar e cuja parte sei, porque a conheci, tão
atribulada, curta e dolorosa foi. Por razões que entenderão não transcreverei
essa carta, mas garanto-vos que embora escrita por uma mão masculina, nada fica
a dever em magnificência à bela prosa de Florbela Espanca.
O amor, qual potestade,
geralmente constrói, mas também pode destruir vidas. Persignei-me e, perturbada,
desejei sinceramente paz à sua alma.
* Nota: Provavelmente este
texto foi escrito numa terça-feira, 3 de Outubro de 2006, pelas 11:01:36
h
** (não para mim pois
em 1976 nem sonhava vir a fazer serviço nesse Centro de Saúde Mental).