sexta-feira, 8 de setembro de 2017

460 - A VIDA É FEITA DE PEQUENOS NADAS ...


Ser o Benjamim duma família de cinco filhos e ainda por cima o único rapaz nunca me ajudou. Primeiro porque assimilei muita da sensibilidade feminina, modos e trejeitos que me valeram o repúdio de muitos e o isolamento na escola, onde o Gouxa foi o único amigo que se manteve firme e fixe até hoje. Segundo porque para provar ao paizinho que tanto a sua hostilidade como a sua postura ostensiva em relação a mim estavam erradas e me levaram a erradamente conduzir a minha própria vida.

Por vezes parece-me estar ainda ouvindo-o:

- Estragaram-me o único gaiato, fizeram dele um efeminado de merda, tantas esperanças que eu alimentara.

Recordo-me como se fosse hoje, deviam ser umas dez da manhã, ele arrancara-me bruta e bruscamente ao convívio das minhas irmãs e atirara comigo porta fora. Não, não me meteu na rua, eu é que de orgulho ferido e atingido na virilidade rumei à estação e antes das onze assomava à janela do comboio para a capital. No dia seguinte faria dezoito anos, por Deus que me lembro como se fosse hoje.

Um pouco antes daquela época tinham-se experimentado por todo o país as primeiras turmas mistas e, se entre os rapazes somente o Gouxa se mantinha firme na confiança que nele sempre pudera depositar, entre as raparigas via-me tão ou mais submergido e abafado por carinhos e mesuras que alguma vez o fora em casa pelas manas.

O mundo é feito de contradições, de pequenos nadas, onde o Yin e o Yang se equilibram de modo precário mas eficaz, as amizades que não porfiava encontrar entre os colegas sobravam-me entre as colegas, entre mim e elas nunca houve segredos, nem segredos nem mal entendidos, dávamo-nos maravilhosamente. Acarinhado assim fora-o também quando terminado o sétimo ano ingressara na WoolTrade, uma multinacional de curtimenta e confecção de artigos em pele. Nessa empresa voltei a ser, como sempre fora em casa, um homem entre mulheres e, não tivesse sido a cada vez maior aversão que o paizinho me demonstrava abertamente teria levado a jantar em minha casa, à vez naturalmente, cada uma das mais de cem amigas da WoolTrade. Talvez não fossem tantas assim mas a verdade é que não vim a casar com nenhuma delas, tudo por uma questão de somenos importância, embora complexo o mundo é feito de pequenos nadas e para ser franco nunca consegui abrir os colchetes dos sutiãs a nenhuma delas, por incrível que pareça no momento crítico via-me sempre atrapalhado. Com a minha Fatinha, que tirara o curso em Lisboa enquanto eu por lá cursava a tropa de elite em que me inscrevera, consegui, estamos casados quase há trinta anos sem uma beliscadura.

Naquela mesma tarde em que o paizinho me arrancara ao doce convívio das manas alistei-me nas tropas especiais, nos fuzileiros, tinha dezassete anos e precisava de ficar nalgum sítio, fiquei na Casa Do Marujo, na baixa de Lisboa ali à rua do Arsenal, pegada com o Ministério da Marinha o qual viria a ser a minha casa durante uma carrada de anos seguintes, alternados de prolongadas licenças e férias. O paizinho havia de ter tido orgulho em mim, mas infelizmente viera a falecer pouco tempo após a minha intempestiva saída de casa e por razões que compreenderão. Somente meia dúzia de anos depois da sua morte vim a conhecer o facto, o facto e as circunstâncias, morreu como viveu, à bruta, engasgado com um pedaço de borrego que não conseguiram soltar-lhe a tempo da garganta pelo que se finou todo vermelho, vermelhusco, mais vermelho que o próprio nariz, sempre denunciando-o, fosse inverno fosse verão e, entretanto naturalmente o ensopado esfriou e já ninguém o comeu, segundo me contariam alguns anos ainda mais tarde.

A sua morte culminou o processo de desagregação da família, os seus modos rudes sempre tal haviam prenunciado, sem ele e sem mim as manas debandaram como um bando de pardais, a Mia, Minervina de seu nome fora a primeira, o moço com quem casara um subinspector da Pide com vida feita no aeroporto de Faro, fora obrigado a fugir para os USA após uma rocambolesca fuga em que ninguém sabe como deixaram escapar quase noventa deles da prisão de alta segurança de Alcoentre numa tarde de Domingo, 29 de Junho de 75, o malfadado verão quente, imaginem só o que não terão penado nesse dia os desgraçados, o certo é que nenhum deles voltou a esta Pátria que tão ingrata lhes fora.

As restantes e à vez foram abandonando o ninho, voltámos a encontrar-nos todos há dias no escritório do advogado tratante das partilhas e da venda da casa do paizinho, cujo pecúlio dividiu por todos nós sem esquecer guardar para si mesmo a melhor parte. A mais novinha delas, a Mariana, tem passado as passinhas do Allgarve, escolheu Psicologia por lhe agradar conhecer o género humano e não consegue acertar uma, já vai no quarto marido e não tarda no quarto divórcio. A artista da família, a Gertrudes, que adorava cantar e tinha jeito, casou com um director de serviços da Seg. Social que a puxou para lá queixando-se ela desde sempre aborrecer-se imenso, que não faz nada, faz depressões digo eu, passa a vida de depressão em depressão, teve mais de uma dúzia nos últimos dez anos e aposto que não se ficará por ali, qualquer dia será ela também chefe de serviço após o que se reformará com uma choruda reforma, merece-a, só eu sei o que ela tem ali penado.

A outra gémea do meio, a Dádá, a Deodata sempre manifestara jeito para trabalhos manuais e lavoures, conseguiu imiscuir-se como mestra de trabalhos manuais numa escola preparatória em fins de 79 princípios de 80, e por lá ficou, o sindicato cuidou-lhe da carreira, soube compor as coisas e hoje ela, ela e mais umas boas centenas ou milhares são professores do quadro, continuam maravilhosamente trabalhando com as mãos mas não lhes peçam para abrir a boca ou escrever uma letra pois tal iria muito para além do que são capazes e nem um sindicato faz milagres.

A vida é feita de pequenos nadas e na ausência de pequenos nadas a família dispersou-se e desintegrou-se. Eu fiquei uns tempos entre os homens de barba rija, eram tempos em que se podia ser herói e fiz por isso, corri toda a África do equador ao Cabo armado em Rambo e quando me cansei voltei para a WoolTrade e para a Bertinha, para o aconchego das mulheres cujas disputas por mim sempre me alimentaram o ego até que farto delas me casei, e como castigo do Senhor tenho quatro filhos e uma filha, ela é uma Maria rapaz, a mãe não lhe poderia ter escolhido melhor nome, Maria José, por vontade da mãe todos eles têm nomes de mulher, Manuel Maria, Joaquim Encarnação, António Epifania, José Vitória. Adoram brincar com as bonecas da irmã, espero sinceramente que nenhum saia maricas e a Maria José não me estrague o apelido com parvoíces daquelas da igualdade de géneros, fora isso é uma mulher perfeita, admira-me como os marmanjos não se atiram a ela, espero que não haja ali gato.