Porque me lembrei da catequese logo naquele dia, naquele momento?
Não sei, ainda hoje não sei.
Sei que reagi inconscientemente e foi o fim.
Não foi logo, mas percebi perfeitamente o enfado dele, a desilusão instantânea, o afastamento progressivo até deixar de aparecer por completo.
Até hoje. Tudo por causa de um beijo, custa-me acreditar, hoje, naquele dia.
Só eu sei onde arranjei forças para me conter, para me assumir, para recusar o que tanto esperara e ardentemente desejara.
Nunca mais o vi, nunca mais um sonho tornado pesadelo me abandonou.
E tudo por causa de um beijo, como hoje acho tudo isso ridículo, me acho ridícula.
Mas tenho os meus sobrinhos, e quanto o Elias é parecido comigo! Um amor!
Já o Hernâni, não sei, não sei que lhe acho, que tem o rapaz, tão embirrante que irrita, tão parecido com ele, com ele como era há mais de trinta anos.
As mesmas sobrancelhas carregadas, o semblante, os dedos finos com as mesmas unhas esguias e quadradas.
Até assusta credo, raio do rapaz que só me traz recordações, e logo as que nem queria lembrar. Tudo por causa de um beijo. Mas que me levou a recusar aquele beijo?
Ainda hoje não sei. Só sei que não o esqueci.
E tanto que faço por esquecer, mas como evitar?
Aquelas mãos que as minhas seguravam, os seus avanços seguros, tímidos mas ousados, que nunca paravam. Porque terá teimado beijar-me naquele dia?
Eu segurava nas suas, volvia-lhas afagando-lhe as unhas que me impressionavam, como as invejava!
Óptimas para pintar, sempre arranjadas, tinha unhas de mulher dizia-lhe eu brincando.
A minha irmã, Deus a proteja, ela e aqueles sobrinhos são a minha graça.
Terá ela alguma vez recusado um beijo?
Ando aborrecida, hoje, sempre, os dias sempre iguais, casa escritório, escritório casa, e a Tv, sempre a mesma, as novelas que me parecem todas iguais, adivinho-lhes o fim, o enredo, os falsos e as sonsas, que fartura, nunca imaginei!
Nunca mais vi umas unhas como as dele…
E os canais de cinema, que tolice, não sei que os diferencia das novelas, é tudo uma parvoíce pegada, mas como vim parar a isto, que enfado!
No escritório, o Raul, tão parvo, nunca percebe que se lhe digo que não é por feitio, e nunca insiste o parvo. E umas unhas... credo dão nojo!
Roídas até ao tutano. Nunca vi ninguém com um feitio tão desleixado.
Naquela idade, solteiro, e nem em casar falou alguma vez, pelo menos que eu ouvisse.
Os amigos, as voltas, as cervejas, os jogos, o carro, que passa a vida a lavar.
Estúpido.
A Josefa, sempre alegre, uns vestidos coloridos que me fazem comichão só de os olhar. Esta gente hoje em dia não terá espelhos em casa?
E o Manuel para aqui, o Hélder para acolá, sem vergonha é o que ela é.
Por aquele andar está aqui está casada. Nem sei como não caiu já num deslize.
E os parvos que não topam o jogo dela, um dia com um, outro dia com outro, se minha mãe alguma vez me autorizaria tais coisas. Nem pensar.
Gostava de ter umas unhas como as dele, óptimas para pintar, esguias e quadradas, sempre arranjadas, unhas de mulher dizia-lhe eu brincando.
Os miúdos, que estupores, quanto mais crescidos mais tolos, nem sei como a minha irmã os atura! Parecem parvos os gaiatos, gaiatos é como quem diz, já vão sendo homens, talvez por isso estejam a ficar estúpidos.
Nem os homens são já os mesmos, passaram numa geração de atenciosos e cavalheiros a alarves.
Tanto que lhes dei, em troca de nada, sou uma parva, sempre fui, o que eles querem sei eu, são todos os mesmos, todos iguais, mas de mim não levam nada.
Ai! Tomara já a reforma. Só já falta um ano, um aninho!
Esta rua está cada vez mais estranha, já nem conheço os vizinhos, aliás já nem conheço quase ninguém nesta cidade, tem-se tornado esquisita, não entendo esta gente nova, nem a velha, até as velhas cada vez mais talharocas.
Tanta saudade, por causa de um beijo, custa-me a acreditar, e eu que tanto esperara e ardentemente desejara, como hoje acho tudo isso ridículo, me acho ridícula, aquelas mãos que as minhas seguravam, porque terá tentado beijar-me naquele dia?
Tanta saudade, por causa de um beijo, custa-me a acreditar, e eu que tanto esperara e ardentemente desejara, como hoje acho tudo isso ridículo, me acho ridícula, aquelas mãos que as minhas seguravam, porque terá tentado beijar-me naquele dia?
Porque terei recusado? Porque não lembrarei tantos outros beijos trocados e não mais esqueci precisamente o único que recordo ter recusado?
Teria a minha vida sido diferente?
O cinema, as novelas, tudo uma parvoíce pegada, mas como vim parar a isto, que enfado!
Ai Afonso, Afonso, que nunca mais vi, que saudade, quando me abandonará este pesadelo?