Encontraste-me.
Não
que te tivesse procurado, que o não fiz, embora esperasse com a avidez de um
descamisado e a indiferença que só os condenados entendem, a tua vinda.
Apareceste,
simplesmente apareceste.
E
tudo mudou radicalmente, como se o processo de Galileu tivesse sido reaberto, o
Sol se movesse de novo em torno da Terra e a inquisição, que o pagode hoje é,
novamente exigisse em auto os nossos corpos, por irremissíveis de qualquer
arrependimento ou penitência.
Surgiste,
diria antes que surgiste, aparecer pressupõe uma intenção que nem houve nem há,
surgiste portanto.
Que
eu tivesse rejubilado com isso foi-te mais que indiferente, foi-te
contrariedade, dor, aborrecimento, agastura.
Que
essa insurgência, que também o foi, me tivesse cambiado os dias, que então
começaram radiantes, como se repentinamente nas margens de um rio a beleza das
cores e a frescura e fragrância das jornadas felizes me igualasse a cadencia do
coração, cansado e enorme, como se a memória de outras cadencias, de outros
momentos ditosos, deste mesmo ou doutros rios, as mesmas cores, intensas,
fulgurantes, quase se repetissem dum modo inexorável e incansável, num novo
ritual de celebração da vida, qual hino à existência, sublimação do que sou, do
que tenho, e me redime do pior que em mim haja.
Aquilo
que foi para mim um furacão, apenas e aparentemente terá sido para ti como uma
brisa leve, libertadora, contudo, tão libertadora que só ela já mereceu a pena
ter sido sentida, vivida.
Todavia,
nada para o cosmos significou que eu outro, que eu mais seguro de mim, mais
feliz, mais capaz, mais adolescente e, inacreditavelmente, mais tolerante
também, e loquaz. O ego agigantando-se-me de um modo que só eu conheço e sei,
uma auto-confiança daqui aos antípodas e te apressaste a, qual tapete, tirar
rapidamente debaixo dos pés, não fosse eu ousar olhar-te, querer-te, sonhar-te
que fosse, porque te apercebeste, te contei, que a volúpia das palavras
primeiro, que o aroma das flores depois e que, quando nem em mim cria, já não
sonhava, delirava, que repentinamente te abraçava, repentinamente te beijava,
saboreando nos teus lábios champanhe.
E
eras delírio e volúpia sim, mas somente dos sentidos que, sonhando lascivos,
ébrios, sedentos de boémia, à noite me mergulhavam na sombra do astro, de tal
modo jamais me soube arlequim ou querubim, somente que o teu corpo parecia
mexer-se, e nem sabia se esses cabelos eram meus se teus, recordo afagar-te,
afagar-te a pele morena, a silhueta, depois as curvas do corpo, tramando
pecados e sonhando enquanto sombras me cobriam e te jurava promessas que
tingiam de lágrimas meus olhos, e, perante mim, qual milagre, vagamente tomando
forma uma mulher que amava, cuja carência de imediato começou, como imagem
debruada por luzes e mergulhada no esplendor da minha alma.
Parece
que por ter em ti tropeçado, não mais a melancolia nem a solidão, mas sei agora indiferente a tua ausência, tudo que sou tu não és, tudo que és eu não sou, agora
sei, o mundo não somos tu eu e mais ninguém, já não palpitas em mim, já consigo
dormir pois o sonho que me levava a perder-me de mim não voltou, já nem me
persegue como silício vivo e eu, capaz já de fugir a esse fado, de alma
sossegada, cujos sentidos o fogo alimentava lembras ?
Sei
que a inquietude deu largas à loucura que era a minha mas me não grita já,
embora o meu sangue, latino, pulsando nas veias, continue a dizer-me não haver
regras nem limites, só a verdade de mim, homem sincero, gritando tudo isto,
sorrindo alheio ao facto de parecer louco, bradando a verdade, rindo de tudo e
de todos, porque repentinamente e de novo o mundo todo luz, e eu, qual sombra
saindo da escuridão, o corpo novamente antecipando delírios e paixões, o olhar
renascendo repetidamente destes mesmos sentidos, os mesmos rodopios e
devaneios, a mesma alma, o corpo bamboleando-se, pois agora sei, melhor que
nunca, melhor que alguém ou alguma vez, agora tenho a certeza !
O
mundo sou eu e mais ninguém !