Ammã é linda, muito parecida com Évora nas ruínas romanas que também ali ainda se conservam de pé, as ruínas de Jerash, o próprio espólio da cidade velha, são de uma beleza incríveis.
Ficámos no Hotel Faraó, no centro da velha cidade, mesmo no centro da baixa, cosmopolita como poucas cidades do médio oriente, simultaneamente moderna na parte alta, mesmo muito moderna.
O hotel era barato mas acolhedor e muito asseado, ali voltei a encontrar muitos outros companheiros de Bagdade e também Haniko, ainda zangada com o mundo.
Matámos saudades enquanto embalámos e preparámos cuidadosamente, para uma viagem de quase dez mil quilómetros, um presépio artesanal iraquiano que eu trazia, de propósito, para um homem bom cuja colecção de presépios, mais de mil, de todo o mundo, é uma das maravilhas da terra.
Ficámos somente os dias necessários à obtenção de visto para entrar na Síria, os bilhetes de avião tinham o regresso marcado a partir de Damasco, pelo que o tempo urgia, havia à nossa frente mais quinhentos quilómetros para fazer em contra relógio e com o dinheiro a escassear nos bolsos, então sim seria uma aventura não ficarmos pelo caminho.
Apanhar um avião de Ammã até Damasco estava fora de hipótese e fora do orçamento, um carro, um táxi seria muito mais barato mas muito mais lento, na fronteira seríamos por certo retidos mais tempo que o que fôramos pelos americanos quando entrámos na Jordânia, as probabilidades de perdermos o avião eram enormes, a minha esposa tinha entrado no Hospital do Espírito Santo, em Évora, para ser operada, e eu sem qualquer nave espacial à mão.
Valeu-nos Alá, que na pessoa do Counter Agent da Air France em Ammã, o Senhor Suhail Halaseh, Senhor com letra grande, nos salvou de todas essas vicissitudes, por gentileza sua e da companhia aérea, na qual procurarei viajar o resto dos meus dias. Depois de saber a nossa história, colocou-nos num avião direitinho a Paris, sem escalas nem pagamentos suplementares. A esse homem e à Air France, os meus mais sinceros e maiores agradecimentos, nunca o esquecerei.
Foram mais de doze horas de viajem até aterrar em Lisboa, onde me esperava o meu filho, a namorada e dezenas de órgãos de informação.
A todos cedi uns minutos, para me arrepender nos minutos seguintes. Ainda as palavras não me tinham saído da boca e já estavam a ser deturpadas. Fiquei para sempre com a sensação que os repórteres são capazes de cortar palavra por palavra o nosso discurso, voltar a colá-las e colocar-nos na boca coisas que nunca sonhámos dizer.
Por essa e por outras parecidas é que hoje tenho, da comunicação social, a imagem que tenho, por essa e por outras é que a minha luta só terminará quando este livro vir a luz do dia, estou curioso em saber como vão reescrevê-lo.
Quando parti, meti férias e vi-me forçado a uma adaptação repentina a uma situação que nunca imaginara, uma coisa é o que vemos na Tv, outra, completamente diferente, a realidade. A diferença entre o que nos deram a conhecer e a verdade foi, neste caso, abissal. Hoje, refeito dessa surpresa, confesso não me ter adaptado ainda e de novo a este mundo. Estou muito mais calmo, sou quase outro, não sou decerto o mesmo.
Apesar deste testemunho, por hábito, não comento nem partilho a minha experiência com ninguém, não vejo necessidade disso, as mentiras sobre a guerra, que começaram muito antes dela, e as contradições em que mais tarde ou mais cedo todos os mentirosos acabam por cair, farão esse trabalho por mim. Limito-me a contar o que vi e vivi, em vez de armas de destruição maciça, miséria, muita miséria e um tirano destronado por Bush, um vencedor cem vezes mais perigoso que o vencido.
Hoje os iraquianos resistem, chamam-lhes terroristas, não digo que não haja por lá terroristas, decerto muitos mais que haveria antes da guerra, mas haja a coragem de lhes chamar, pelo menos à maioria, patriotas ou nacionalistas.
È certo que parti para o Iraque com o espírito de um militar, disposto a aguentar contratempos e contrariedades, não foi uma vida de lorde mas não passei fome, nem sede, não senti necessidades prementes. Como a restante população, que por não ter dinheiro não tinha vícios, nem com que os alimentar se os tivesse, também eu não achei falta do que não esperava encontrar, em compensação sobrou-me muito com que não contava, e isso, folgo em repartir convosco.
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Ficámos no Hotel Faraó, no centro da velha cidade, mesmo no centro da baixa, cosmopolita como poucas cidades do médio oriente, simultaneamente moderna na parte alta, mesmo muito moderna.
O hotel era barato mas acolhedor e muito asseado, ali voltei a encontrar muitos outros companheiros de Bagdade e também Haniko, ainda zangada com o mundo.
Matámos saudades enquanto embalámos e preparámos cuidadosamente, para uma viagem de quase dez mil quilómetros, um presépio artesanal iraquiano que eu trazia, de propósito, para um homem bom cuja colecção de presépios, mais de mil, de todo o mundo, é uma das maravilhas da terra.
Ficámos somente os dias necessários à obtenção de visto para entrar na Síria, os bilhetes de avião tinham o regresso marcado a partir de Damasco, pelo que o tempo urgia, havia à nossa frente mais quinhentos quilómetros para fazer em contra relógio e com o dinheiro a escassear nos bolsos, então sim seria uma aventura não ficarmos pelo caminho.
Apanhar um avião de Ammã até Damasco estava fora de hipótese e fora do orçamento, um carro, um táxi seria muito mais barato mas muito mais lento, na fronteira seríamos por certo retidos mais tempo que o que fôramos pelos americanos quando entrámos na Jordânia, as probabilidades de perdermos o avião eram enormes, a minha esposa tinha entrado no Hospital do Espírito Santo, em Évora, para ser operada, e eu sem qualquer nave espacial à mão.
Valeu-nos Alá, que na pessoa do Counter Agent da Air France em Ammã, o Senhor Suhail Halaseh, Senhor com letra grande, nos salvou de todas essas vicissitudes, por gentileza sua e da companhia aérea, na qual procurarei viajar o resto dos meus dias. Depois de saber a nossa história, colocou-nos num avião direitinho a Paris, sem escalas nem pagamentos suplementares. A esse homem e à Air France, os meus mais sinceros e maiores agradecimentos, nunca o esquecerei.
Foram mais de doze horas de viajem até aterrar em Lisboa, onde me esperava o meu filho, a namorada e dezenas de órgãos de informação.
A todos cedi uns minutos, para me arrepender nos minutos seguintes. Ainda as palavras não me tinham saído da boca e já estavam a ser deturpadas. Fiquei para sempre com a sensação que os repórteres são capazes de cortar palavra por palavra o nosso discurso, voltar a colá-las e colocar-nos na boca coisas que nunca sonhámos dizer.
Por essa e por outras parecidas é que hoje tenho, da comunicação social, a imagem que tenho, por essa e por outras é que a minha luta só terminará quando este livro vir a luz do dia, estou curioso em saber como vão reescrevê-lo.
Quando parti, meti férias e vi-me forçado a uma adaptação repentina a uma situação que nunca imaginara, uma coisa é o que vemos na Tv, outra, completamente diferente, a realidade. A diferença entre o que nos deram a conhecer e a verdade foi, neste caso, abissal. Hoje, refeito dessa surpresa, confesso não me ter adaptado ainda e de novo a este mundo. Estou muito mais calmo, sou quase outro, não sou decerto o mesmo.
Apesar deste testemunho, por hábito, não comento nem partilho a minha experiência com ninguém, não vejo necessidade disso, as mentiras sobre a guerra, que começaram muito antes dela, e as contradições em que mais tarde ou mais cedo todos os mentirosos acabam por cair, farão esse trabalho por mim. Limito-me a contar o que vi e vivi, em vez de armas de destruição maciça, miséria, muita miséria e um tirano destronado por Bush, um vencedor cem vezes mais perigoso que o vencido.
Hoje os iraquianos resistem, chamam-lhes terroristas, não digo que não haja por lá terroristas, decerto muitos mais que haveria antes da guerra, mas haja a coragem de lhes chamar, pelo menos à maioria, patriotas ou nacionalistas.
È certo que parti para o Iraque com o espírito de um militar, disposto a aguentar contratempos e contrariedades, não foi uma vida de lorde mas não passei fome, nem sede, não senti necessidades prementes. Como a restante população, que por não ter dinheiro não tinha vícios, nem com que os alimentar se os tivesse, também eu não achei falta do que não esperava encontrar, em compensação sobrou-me muito com que não contava, e isso, folgo em repartir convosco.
Humberto Baião in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad " - Ed NossoFuturo - 2005 - ISBN 972-9060-31-2
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