Olhei o medo, que deveria assustar-me, e vi um monstro de papel rugindo
ameaçador, num silêncio de papiro tão velho quanto ele. Não temi. Nem sequer
retrocedi nos meus propósitos, tão firmes quanto ele, naquela minha ideia fixa
de afirmação, ou da perspectiva dele, na inglória estratégia de me travar.
Ecoando e rugindo, teimava travar-me o passo e instalar-se comodamente no meu espírito.
Assim é o medo, assim actua, sub-repticiamente, vagamente tomando a forma e
preenchendo o lugar que lhe consentirmos. Não consenti.
É simples, é realmente simples o seu modo de infiltração. Ocupa-nos,
instala-se qual vírus e, como um parasita, em simbiose connosco se alimenta, e
nos alimenta, de temores, receios, hesitações, pavores, vergonhas, timidez,
ingenuidade e inocência. Sim, leram bem, também a ingenuidade, a timidez a
vergonha e a inocência, se mal usadas, ou conduzidas, nos limitam a fruição de
uma vivência livre, pródiga, rica. Trata-se de matar em cada um de nós, é isso
que tenta este monstro de papel, artificiosamente, esgrimindo contra os
próprios valores aceites e eticamente em cada um e por cada um instruídos,
matá-los, dizia, no perverso sentido de nos limitar.
Oh ! E quantas vezes e quantos de nós nos deixamos enredar neste complexo
processo que repudiamos mas inconscientemente alimentamos ? Vem do berço. Vem
do berço a passagem de testemunho de pais para filhos, num mecanismo de sociabilização,
sem confronto ou contestação e que psicológica ou inadvertidamente intuímos,
aceitamos, assimilamos. E qual de nós duvida ou contesta os pais, a própria
linha desta estratégia, ou a táctica que eles mesmos, tal qual nós, aceitaram
dogmaticamente, num processo secular remontando aos primórdios de uma vivência
ancestral comum ?
Vem daí a rebelião adolescente contra os pais, opressores, contra eles
porque os mais próximos, contra eles porque os mais visíveis, contra eles que
na primeira linha daquilo que a nossa consciente lucidez, divisa como culpados
e simultaneamente origem das limitações e barreiras que sentimos nos estarem
sendo impostas. Poucas ou poucos de nós não soçobramos a este confronto. Felizes
das ou dos que o superam, bem, poucas ou poucos, mais felizes ainda se o
conseguimos sem traumas, incompatibilidades, problemas de consciência,
rupturas, mas sobretudo com a aceitação e compreensão do outro, sem que
abdiquemos da clarividência que a nossa visão do mundo nos facultou.
E é fugaz essa visão. Surge entre os 16 e os 18 ou vinte anos, qual fogo-fátuo
que, se não protegermos será abafado totalmente por aqueles que, mais perto de
nós, erradamente cônscios enquanto detentores da verdade, nos tentam impô-la
sem que eles mesmos se disponibilizem a ouvir as nossas razões. Pouquíssimos
pais estão abertos ou preparados para esta fase vital da formação da
personalidade e carácter dos filhos. Benditos filhos que tais pais tiveram, ou
tiverem. Os restantes lamentemo-los. E, lamentemos tanto pais quanto os filhos,
porque quer uns quer outros terão culpa na futura vivência, quer dos primeiros
quer dos segundos.
Estudem-se as biografias de grandes mulheres e grandes homens ao longo da
história. Concluiremos que, salvo raríssimas excepções, nenhuma dessas grandes
figuras terá sido o que chamaríamos uma menina ou menino “bem comportado”.
Antes se distinguiu, desde o início da sua vida, por algum excêntrico aspecto
por toda a gente condenado, e à cabeça dessa condenação os pais, antes de
quaisquer outros. Curiosamente tais crianças / adolescentes vieram, a história
o comprova, a distinguir-se em vários campos; ciência, literatura, física,
economia, etc…
Deduziria daqui, que, tendo todos os pais sido animados de boas intenções
(das quais o inferno está cheio) nem haver maus pais nem haver maus filhos. Todavia
há felizmente, pais que não limitam negativamente os filhos e filhos que,
felizmente não absorveram ou absorvem toda a verborreia que a ignorância dos
pais sobre eles lança, mesmo com a melhor intenção do mundo. A libertação da
tutela paternal é um sinal de afirmação, de assumpção de uma consciência
madura, plena, lúcida, significa assumpção de responsabilidade e liberdade.
Quem de nós enquanto tal permitiu aos filhos uma gradual e amparada
libertação? Interroguemo-nos, porque se não o fizemos é para nós que devemos
olhar em primeiro lugar, sendo a nós mesmos que devemos dirigir as primeiras
criticas se os nossos filhos não corresponderam ao que deles esperávamos. Que
alimentemos e suportemos os nossos medos e os nossos monstros é problema nosso,
que permitamos ou até contribuamos para os passar aos descendentes é crime de
lesa filho de que não merecemos qualquer indulgência por muita penitência que
pratiquemos.
Cedo matei os meus medos e os meus monstros. Muito cedo assumi a liberdade
de pensamento e de espírito como uma dádiva, mas também como uma
responsabilidade, e preciosa liberdade a que não é alheio o toque divino do
livre arbítrio com que os homens foram abençoados.
Agradeçamo-Lhe, e, para além de Lhe agradecer não O desiludamos. Por todas
as razões e mais uma Lhe devemos estar gratos. Por todas as conhecidas, e por
se tratar de nós, de mim, do meu eu, e concomitantemente, de tudo o que sou
para os outros.