segunda-feira, 23 de abril de 2012

116 - ENFRENTAR OS MEDOS…................................


Olhei o medo, que deveria assustar-me, e vi um monstro de papel rugindo ameaçador, num silêncio de papiro tão velho quanto ele. Não temi. Nem sequer retrocedi nos meus propósitos, tão firmes quanto ele, naquela minha ideia fixa de afirmação, ou da perspectiva dele, na inglória estratégia de me travar. Ecoando e rugindo, teimava travar-me o passo e instalar-se comodamente no meu espírito. Assim é o medo, assim actua, sub-repticiamente, vagamente tomando a forma e preenchendo o lugar que lhe consentirmos. Não consenti.

É simples, é realmente simples o seu modo de infiltração. Ocupa-nos, instala-se qual vírus e, como um parasita, em simbiose connosco se alimenta, e nos alimenta, de temores, receios, hesitações, pavores, vergonhas, timidez, ingenuidade e inocência. Sim, leram bem, também a ingenuidade, a timidez a vergonha e a inocência, se mal usadas, ou conduzidas, nos limitam a fruição de uma vivência livre, pródiga, rica. Trata-se de matar em cada um de nós, é isso que tenta este monstro de papel, artificiosamente, esgrimindo contra os próprios valores aceites e eticamente em cada um e por cada um instruídos, matá-los, dizia, no perverso sentido de nos limitar.

Oh ! E quantas vezes e quantos de nós nos deixamos enredar neste complexo processo que repudiamos mas inconscientemente alimentamos ? Vem do berço. Vem do berço a passagem de testemunho de pais para filhos, num mecanismo de sociabilização, sem confronto ou contestação e que psicológica ou inadvertidamente intuímos, aceitamos, assimilamos. E qual de nós duvida ou contesta os pais, a própria linha desta estratégia, ou a táctica que eles mesmos, tal qual nós, aceitaram dogmaticamente, num processo secular remontando aos primórdios de uma vivência ancestral comum ?

Vem daí a rebelião adolescente contra os pais, opressores, contra eles porque os mais próximos, contra eles porque os mais visíveis, contra eles que na primeira linha daquilo que a nossa consciente lucidez, divisa como culpados e simultaneamente origem das limitações e barreiras que sentimos nos estarem sendo impostas. Poucas ou poucos de nós não soçobramos a este confronto. Felizes das ou dos que o superam, bem, poucas ou poucos, mais felizes ainda se o conseguimos sem traumas, incompatibilidades, problemas de consciência, rupturas, mas sobretudo com a aceitação e compreensão do outro, sem que abdiquemos da clarividência que a nossa visão do mundo nos facultou.

E é fugaz essa visão. Surge entre os 16 e os 18 ou vinte anos, qual fogo-fátuo que, se não protegermos será abafado totalmente por aqueles que, mais perto de nós, erradamente cônscios enquanto detentores da verdade, nos tentam impô-la sem que eles mesmos se disponibilizem a ouvir as nossas razões. Pouquíssimos pais estão abertos ou preparados para esta fase vital da formação da personalidade e carácter dos filhos. Benditos filhos que tais pais tiveram, ou tiverem. Os restantes lamentemo-los. E, lamentemos tanto pais quanto os filhos, porque quer uns quer outros terão culpa na futura vivência, quer dos primeiros quer dos segundos.

Estudem-se as biografias de grandes mulheres e grandes homens ao longo da história. Concluiremos que, salvo raríssimas excepções, nenhuma dessas grandes figuras terá sido o que chamaríamos uma menina ou menino “bem comportado”. Antes se distinguiu, desde o início da sua vida, por algum excêntrico aspecto por toda a gente condenado, e à cabeça dessa condenação os pais, antes de quaisquer outros. Curiosamente tais crianças / adolescentes vieram, a história o comprova, a distinguir-se em vários campos; ciência, literatura, física, economia, etc…

Deduziria daqui, que, tendo todos os pais sido animados de boas intenções (das quais o inferno está cheio) nem haver maus pais nem haver maus filhos. Todavia há felizmente, pais que não limitam negativamente os filhos e filhos que, felizmente não absorveram ou absorvem toda a verborreia que a ignorância dos pais sobre eles lança, mesmo com a melhor intenção do mundo. A libertação da tutela paternal é um sinal de afirmação, de assumpção de uma consciência madura, plena, lúcida, significa assumpção de responsabilidade e liberdade.

Quem de nós enquanto tal permitiu aos filhos uma gradual e amparada libertação? Interroguemo-nos, porque se não o fizemos é para nós que devemos olhar em primeiro lugar, sendo a nós mesmos que devemos dirigir as primeiras criticas se os nossos filhos não corresponderam ao que deles esperávamos. Que alimentemos e suportemos os nossos medos e os nossos monstros é problema nosso, que permitamos ou até contribuamos para os passar aos descendentes é crime de lesa filho de que não merecemos qualquer indulgência por muita penitência que pratiquemos.

Cedo matei os meus medos e os meus monstros. Muito cedo assumi a liberdade de pensamento e de espírito como uma dádiva, mas também como uma responsabilidade, e preciosa liberdade a que não é alheio o toque divino do livre arbítrio com que os homens foram abençoados.

Agradeçamo-Lhe, e, para além de Lhe agradecer não O desiludamos. Por todas as razões e mais uma Lhe devemos estar gratos. Por todas as conhecidas, e por se tratar de nós, de mim, do meu eu, e concomitantemente, de tudo o que sou para os outros.

Ámen.