Aquele
5 de Outubro foi inesquecível. Vivo cada um com a dor de peito de um democrata
republicano, convictamente crente ter sido a república e os seus políticos, e
as suas politicas, quem lixou isto tudo. Mas
em especial aquele 5 de Outubro, há tantos anos, ficou-me gravado a fogo na
memória. Curiosamente calhou igualmente a uma sexta feira, como este último,
último mesmo, acham ?
Foi
aleatoriamente que o tempo se manteve tal qual, e as festas numa vila próxima,
hoje galhardamente cidade, embora tenha perdido todo o encanto que então tinha,
estando agora a milhas da animação que antigamente nos apresentava, mas, ia eu
dizendo, eram festas que pediam meças muitas léguas em redor. Reunindo-se
por hábito a partir das vinte e uma horas no café Portugal, a malta enfiava as
bicas e os bagaços enquanto delineava o rumo e afinava a estratégia para a
noitada. Milhões
de vezes partíramos dali, noite adentro numas dezenas de motas, para
regressarmos com a luz da alvorada e bastas vezes com o sol já bem levantado.
No
inverno o regresso enregelava-me. Enregelava-nos. Comummente alugava a mota a
outro para com o pecúlio pagar ao Maurício ou ao Genésio um lugar no carro
deles. Outras
tantas a emprestei, ou a mim emprestaram se a minha no estaleiro, o que
raramente sucedia. Em terra é que ninguém arriscava ficar. A
malta da cidade era bem quista pelas garinas nas vilas e aldeias em redor,
ainda que mal olhada pelos boieiros de cada terra… natural.
Eu
adorava ir com o Maurício do Grémio ou com o Genésio vidrinhos, (as lentes dos
óculos mais pareciam o fundo de uma garrafa), não só pelo recato da frieza, mas
sobretudo porque cada viagem com eles era uma aula de maturidade e aprendizagem
que nem um semestre nas Novas Oportunidades lograriam superar. Mais
velhos meia dúzia de anos, ou nem tanto, o que naquela idade fazia imensa
diferença, transbordavam sabedoria que a malta ouvia e assimilava boquiaberta.
Daí a briga e o voluntarismo de todos para emparceirarmos com eles, qualquer
deles, pois sabiam ambos a mesma música…
A
diferençá-los apenas o facto de o Maurício ouvir mal e ver bem, enquanto o
Genésio ouvia bem mas via mal… e o primeiro sonhar casar com uma velha rica
enquanto para o segundo o mais importante era ser fiel á namorada que tinha, a
quem era mais leal que um cão de raça. Não
será difícil imaginar não ser para aprender a conduzir que disputávamos um
lugar no carocha do Maurício, um velho carocha de cor vermelha queimada do sol,
ou no Fiat 600 do Genésio. Sabidos e batidos, era a sua experiencia de vida que
augurávamos ter e dominar.
O
Maurício, alto e magro mais moreno que um marroquino, era conhecido por ser
amiúde abandonado no meio dos bailaricos, quando não abandonado depois de um
estaladão que ecoava por todo o recinto dos festejos… Não
quebrava, antes rematava que sim, que já tinha levado muita estalada, mas que
também já saboreara muitas gajas. Gaja no sentido lato de mulher, ainda que o
Maurício não estivesse para lhes aturar mais que a beleza, o perfume e o
corpinho bem feito. Mirava-as
todas muito bem antes de as convidar a dançar, só escolhia trintonas, viúvas,
solteironas, e somente se bem boas, as quais após dois passos de dança eram
convidadas a não perderem tempo em esfreganços, sendo mais acertado irem até ao
carro dele ver os aviões…
Algumas
iam, porventura aceitariam com um sorriso e logo ali concertavam modo de não
perderem tempo com a demora… outras…. Outras com estalo ou sem estalo,
deixavam-no plantado no meio da sala e da risota de todos. O
Maurício era gozado, mas compensava respondia ele com um sorriso de orelha a
orelha. Ossos do ofício, rematava. Aprendam comigo que não viverei sempre.
Esta
era a sua preciosa regra dos 10%. Ficássemos cientes que vidinha fora muito
teríamos que bulir para que 10%, somente 10% das nossas investidas fossem
coroadas de sucesso. Quem
não arrisca não petisca, atirava entre dentes para não deixar cair a beata, ou
a prisca, como preferia chamar-lhe. Regras
eram com eles. Parecia terem andado na mesma classe. Não sei se andaram, mas
fizeram escola… Outra das suas regras que jamais esqueci foi a da “paciência
virtuosa”.
A
paciência virtuosa devia ser aplicada em simultâneo com a regra dos 10%.
Paciência virtuosa era subir degrau a degrau a escada do amor e da conquista.
Nunca dando um passo sem que o anterior estivesse consolidado. Se
uma mulher recusa tomar uma bica contigo não insistas. É porque não lhe
interessas a ponta de um corno, filosofavam. Se
ela quiser sair contigo aceitará. Nem que marque o dia e a hora para daí a seis
meses. Haja paciência. Depois
da bica poderás então fazer nova proposta. Degrau a degrau, passo a passo, e
sempre com o obtido anteriormente bem garantido.
Claro
que hoje o maralhal começa pelo fim. Não se estudam filosofias. Nem se ouvem os
filósofos. Quanto mais têm mais vazia a vida lhes parece… No
meu tempo andávamos entretidos meses, anos. Havia até quem nunca esquecesse as
regras e lançasse as redes em casamentos, baptizados, funerais festas de anos e
tudo o mais que suscitasse oportunidade.
Mau
grado todo o retrato que deles pintei há que conceder que qualquer um
divinizava as mulheres. Se havia coisa que consideravam era a mãe as irmãs e as
demais mulheres. O
resto, e agora por mim falo, eram efeitos das feromonas no ar e da testosterona
cujas análises, se feitas, acusariam altos e preocupantes níveis … daí que a
frase mais repetida pelo Mauricio, que tinha sido menino de coro, primeiro, e
sacristão em S. Francisco depois, era a que dá o título a este texto, mulier
divinum est, que ele, fechando os olhos e imitando a voz adocicada do padre
repetia até á exaustão, rematando-a com uma gargalhada alarve...
Uma
noite, vindos na estrada de Redondo, que tinha umas curvas onde hoje são
rectas, o escape do Fiat 600 roncando (um copo em aço tinha-lhe sido soldado
como ponteira, copo a que tinham retirado o fundo) alguém, na bazófia, gritou,
já no fim da recta que antecede a entrada em S. M. Machede: - Genésio ! Genésio
! curva à direita porra ! Acabámos a
madrugada tentando retirar o bólide do atascanço num faval… não havia curva
nenhuma, o Genésio é que nem nos seus olhos confiava.
Não
sabia dele há trinta ou mais anos. Era vendedor de automóveis mas nunca soube
como é que alguém arriscava comprar-lhe um carro. Lembram-se da polémica Nixon
- Kennedy em 1960 ?
Encontrei
o Genésio há uns dias no face.
Fomos
amigos. Nunca deixámos de o ser.
Pelo
que vi estará casado com o único amor que lhe conheci, continua igualmente
ligado aos automóveis, e a ter sucesso, depois do êxito com um Datsun 1200
partiu para Lisboa, para o Entreposto, foi aí que o perdi de vista...
Já
lhe pedi amizade, reconhecer-me-à ? Aceitará ?
A
ver vamos, como ele diria…