terça-feira, 6 de novembro de 2012

131 - MULIER DIVINUM EST ...


Aquele 5 de Outubro foi inesquecível. Vivo cada um com a dor de peito de um democrata republicano, convictamente crente ter sido a república e os seus políticos, e as suas politicas, quem lixou isto tudo. Mas em especial aquele 5 de Outubro, há tantos anos, ficou-me gravado a fogo na memória. Curiosamente calhou igualmente a uma sexta feira, como este último, último mesmo, acham ?

Foi aleatoriamente que o tempo se manteve tal qual, e as festas numa vila próxima, hoje galhardamente cidade, embora tenha perdido todo o encanto que então tinha, estando agora a milhas da animação que antigamente nos apresentava, mas, ia eu dizendo, eram festas que pediam meças muitas léguas em redor. Reunindo-se por hábito a partir das vinte e uma horas no café Portugal, a malta enfiava as bicas e os bagaços enquanto delineava o rumo e afinava a estratégia para a noitada. Milhões de vezes partíramos dali, noite adentro numas dezenas de motas, para regressarmos com a luz da alvorada e bastas vezes com o sol  já bem levantado.

No inverno o regresso enregelava-me. Enregelava-nos. Comummente alugava a mota a outro para com o pecúlio pagar ao Maurício ou ao Genésio um lugar no carro deles. Outras tantas a emprestei, ou a mim emprestaram se a minha no estaleiro, o que raramente sucedia. Em terra é que ninguém arriscava ficar. A malta da cidade era bem quista pelas garinas nas vilas e aldeias em redor, ainda que mal olhada pelos boieiros de cada terra… natural.

Eu adorava ir com o Maurício do Grémio ou com o Genésio vidrinhos, (as lentes dos óculos mais pareciam o fundo de uma garrafa), não só pelo recato da frieza, mas sobretudo porque cada viagem com eles era uma aula de maturidade e aprendizagem que nem um semestre nas Novas Oportunidades lograriam superar. Mais velhos meia dúzia de anos, ou nem tanto, o que naquela idade fazia imensa diferença, transbordavam sabedoria que a malta ouvia e assimilava boquiaberta. Daí a briga e o voluntarismo de todos para emparceirarmos com eles, qualquer deles, pois sabiam ambos a mesma música…

A diferençá-los apenas o facto de o Maurício ouvir mal e ver bem, enquanto o Genésio ouvia bem mas via mal… e o primeiro sonhar casar com uma velha rica enquanto para o segundo o mais importante era ser fiel á namorada que tinha, a quem era mais leal que um cão de raça. Não será difícil imaginar não ser para aprender a conduzir que disputávamos um lugar no carocha do Maurício, um velho carocha de cor vermelha queimada do sol, ou no Fiat 600 do Genésio. Sabidos e batidos, era a sua experiencia de vida que augurávamos ter e dominar.

O Maurício, alto e magro mais moreno que um marroquino, era conhecido por ser amiúde abandonado no meio dos bailaricos, quando não abandonado depois de um estaladão que ecoava por todo o recinto dos festejos… Não quebrava, antes rematava que sim, que já tinha levado muita estalada, mas que também já saboreara muitas gajas. Gaja no sentido lato de mulher, ainda que o Maurício não estivesse para lhes aturar mais que a beleza, o perfume e o corpinho bem feito. Mirava-as todas muito bem antes de as convidar a dançar, só escolhia trintonas, viúvas, solteironas, e somente se bem boas, as quais após dois passos de dança eram convidadas a não perderem tempo em esfreganços, sendo mais acertado irem até ao carro dele ver os aviões…

Algumas iam, porventura aceitariam com um sorriso e logo ali concertavam modo de não perderem tempo com a demora… outras…. Outras com estalo ou sem estalo, deixavam-no plantado no meio da sala e da risota de todos. O Maurício era gozado, mas compensava respondia ele com um sorriso de orelha a orelha. Ossos do ofício, rematava. Aprendam comigo que não viverei sempre.

Esta era a sua preciosa regra dos 10%. Ficássemos cientes que vidinha fora muito teríamos que bulir para que 10%, somente 10% das nossas investidas fossem coroadas de sucesso. Quem não arrisca não petisca, atirava entre dentes para não deixar cair a beata, ou a prisca, como preferia chamar-lhe. Regras eram com eles. Parecia terem andado na mesma classe. Não sei se andaram, mas fizeram escola… Outra das suas regras que jamais esqueci foi a da “paciência virtuosa”.

A paciência virtuosa devia ser aplicada em simultâneo com a regra dos 10%. Paciência virtuosa era subir degrau a degrau a escada do amor e da conquista. Nunca dando um passo sem que o anterior estivesse consolidado. Se uma mulher recusa tomar uma bica contigo não insistas. É porque não lhe interessas a ponta de um corno, filosofavam. Se ela quiser sair contigo aceitará. Nem que marque o dia e a hora para daí a seis meses. Haja paciência. Depois da bica poderás então fazer nova proposta. Degrau a degrau, passo a passo, e sempre com o obtido anteriormente bem garantido.

Claro que hoje o maralhal começa pelo fim. Não se estudam filosofias. Nem se ouvem os filósofos. Quanto mais têm mais vazia a vida lhes parece… No meu tempo andávamos entretidos meses, anos. Havia até quem nunca esquecesse as regras e lançasse as redes em casamentos, baptizados, funerais festas de anos e tudo o mais que suscitasse oportunidade. 

Mau grado todo o retrato que deles pintei há que conceder que qualquer um divinizava as mulheres. Se havia coisa que consideravam era a mãe as irmãs e as demais mulheres. O resto, e agora por mim falo, eram efeitos das feromonas no ar e da testosterona cujas análises, se feitas, acusariam altos e preocupantes níveis … daí que a frase mais repetida pelo Mauricio, que tinha sido menino de coro, primeiro, e sacristão em S. Francisco depois, era a que dá o título a este texto, mulier divinum est, que ele, fechando os olhos e imitando a voz adocicada do padre repetia até á exaustão, rematando-a com uma gargalhada alarve...

Uma noite, vindos na estrada de Redondo, que tinha umas curvas onde hoje são rectas, o escape do Fiat 600 roncando (um copo em aço tinha-lhe sido soldado como ponteira, copo a que tinham retirado o fundo) alguém, na bazófia, gritou, já no fim da recta que antecede a entrada em S. M. Machede: - Genésio ! Genésio !  curva à direita porra ! Acabámos a madrugada tentando retirar o bólide do atascanço num faval… não havia curva nenhuma, o Genésio é que nem nos seus olhos confiava.

Não sabia dele há trinta ou mais anos. Era vendedor de automóveis mas nunca soube como é que alguém arriscava comprar-lhe um carro. Lembram-se da polémica Nixon - Kennedy em 1960 ?

Encontrei o Genésio há uns dias no face.

Fomos amigos. Nunca deixámos de o ser.

Pelo que vi estará casado com o único amor que lhe conheci, continua igualmente ligado aos automóveis, e a ter sucesso, depois do êxito com um Datsun 1200 partiu para Lisboa, para o Entreposto, foi aí que o perdi de vista...

Já lhe pedi amizade, reconhecer-me-à ? Aceitará ?


A ver vamos, como ele diria…