Erguia para mim um olhar extasiado e amedrontado, via-lho na carinha e no vigor com que se agarrava à minha perna
No clamor dos tambores e dos cornetins, o homem alto de sorriso irónico, nariz de palhaço e longas pernas que de cima se baixava e lhe estendia a mão, para o cumprimentar, assustava-o
Pendurava-se do meu
cinto e, surpreendido pelas pernas de quase dois metros questionava-me
franzindo o cenho
- Pai ele é de verdade ?
Tal qual como uns anitos
mais tarde aquando de um outro circo e perante as diabruras e os sorrisos
rasgados de um anão
- Pai, eles são como a gente ?
E embora eu o não queira, a imaginação desfila passeando-se de mãos dadas com recordações antigas, o homem das andas, o anão de boné de
pala descaída para trás, na verdade nem sei se um deles teria braços de
metro e meio, ou talvez os tivessem assim os dois, quem sabe isso hoje passados tantos anos ?
Tal como não sei que
praia é esta em particular, sim, esta ou qualquer outra no Meco, eu conheço-as todas, contudo só uma ou duas das principais vi de dia, ou de dia ou ao sábado, ou num
domingo
Sim ali onde o bar de
apoio de praia a cair de podre dantes um imponente e inatacável monte de pedra
e cal
Chegávamos pelo mar,
duas ou três da manhã, dois ou três às vezes quatro barcos pneumáticos negros
como a noite, largados a uma ou a meia milha da praia, deslizávamos do navio
ou dos navios até à espuma branca da rebentação
Esta praia em especial jamais
a vira de dia, é hoje a primeira vez que a vejo, e se a recordo garantidamente o faço pelo
som da areia e das conchas estalando-me debaixo dos pés quando as piso, isso e acolá a ponta sobressaída daquela arriba, que recordo ser tocada pela Estrela Polar da
Ursa Menor durante a noite
Nesta praia matei e
morri varias vezes, sempre noite escura e tomando de assalto essa arriba ou o
monte que é hoje aquele velho apoio de praia a desfazer-se
Nunca mais fomos ao
circo filho, hoje se quisermos ver os bichos só na África do Sul, Moçambique,
Angola, e talvez mais dois ou três países onde não iremos nunca, nem eu lá
voltarei, não voltarei ao horror dos combates na Namíbia, não virarei a arma
contra os sul africanos nem contra ninguém, por eles perdi a tua infância, por
quê ? Para quê?
Já nem sei qual a
direita nem a esquerda, para mim somente, como dantes, bombordo e estibordo, e
hoje nem isso nos safa, somos um povo à deriva, como nós só vejo o capim ondulando nas
tardes e nas miragens das savanas do deserto de Kalahari, nunca houve nem há almirantes
nem “admirals”, nem guerras bonitas nem frias, há guerras quentes, latentes, e
lactentes que mal chegam a ver a luz do dia, dantes palhaços só no circo e
hoje basta olhar à nossa volta filho
Rodando o olhar nem
reconheço as arribas, quem diria eu aqui passados tantos anos, trinta ? talvez mais
Mais, menos, dantes uma
mochila de vinte quilos e hoje só esta toalha que o vento não deixa estender, e
já agora por falar nisso sim lembro aqui sempre este vento irritante que,
quando nós molhados, tornava a noite mais fria e mais negra, mas seria a nossa
sobrevivência diziam, sem treino, técnica e perfeição não duraríamos nem um
caralho, não se cansava de nos repetir o Capitão de Mar-e-Guerra Amaro de
Albuquerque e de o gritar o Sargento Quintas secundando-o, força seus cabrões vamos
a eles meus madraços
Não sei se as pernas
me tremiam do medo, se do frio ou de tu agarrada às minhas coxas sugando-me
como uma lapa e o horizonte dançando de tal modo que eu sem saber onde o mar
acabava e o céu começava porque quando eras tu que encetavas era eu que não
queria cessar a menos que se me embotasse a visão
Cravando-me a mãos
pequeninas nas pernas ele puxava-me, assustado mas impetuoso, para junto da jaula dos
tigres e leões, eu inspirava fundo e suspendia a respiração evitando o odor
intenso de urina que tudo empestava, virando-lhe a carita para o lado afim de
não ver os burros esperando ser esquartejados p’ralimentar as feras
Com igual ferocidade estendia-te na toalha, certo de que àquela hora e naquela praia não haveria olhares encobertos pois a cerimónia era divina e te prestava culto com a mesma fé e devoção que em ti via quando, como uma lapa ajoelhavas ante mim, e, por uma vez mais te amava e idolatrava como se tu um altar e eu, viciado no pecado da gula, te sugasse como uma ostra com pérola …
Com igual ferocidade estendia-te na toalha, certo de que àquela hora e naquela praia não haveria olhares encobertos pois a cerimónia era divina e te prestava culto com a mesma fé e devoção que em ti via quando, como uma lapa ajoelhavas ante mim, e, por uma vez mais te amava e idolatrava como se tu um altar e eu, viciado no pecado da gula, te sugasse como uma ostra com pérola …