Não sei dizer-vos já por quê, mas sei que primeiro o aparecimento e depois a permanência daquela revista lá em casa me foi fazendo esquecer o Mosquito e o Cavaleiro Andante. Talvez tenha sido pela mão do mano, seja como for eu esperava ansiosamente por cada fim do mês e rondava a montra da papelaria Angola na esperança de a ver chegar pois não tinha um dia certo.
Inda hoje lembro aquele menino paraplégico do Dakota ou do Nevada, a quem o pai mandara construir uma maravilhosa mesa em forma de U e que na cama o rodeava. Recordo como ele se afadigava para manter a correspondência em dia com todos os amigos que tinha espalhados pelo globo, sem redes sociais, sem net, sem fotocopiadoras, apenas com esforço e perseverança uma criança ligava-se e abria-se ao mundo esquecendo o determinismo que à pequena cama o limitava.
E fechava-me em casa agarrado à revista, abrindo horizontes, de longe mais vastos que os que um pequeno país e o nosso Alentejo alguma vez me poderiam dar. Cresci com o folhear daquela pequena revista, com a sua singularidade, o seu individualismo epidémico.
De amigos chegados ouviria mais tarde
- É propaganda capitalista Humberto, fascismo encadernado…
E assim abri os olhos para os ismos e istmos que nos ligam ao mundo ou que do mundo nos isolam.
Naquele dia o paizinho explicou-me a fuga tão negra pintada e desenhada na impressionante imagem duma revista, o porquê da noite, a magia do voo dos balões, o paradoxo dos contrários, o mistério das cortinas em ferro e a fuga para a liberdade em que essa noite ventosa e de breu acolheu no regaço uma família de argonautas sonhadores e utópicos cavalgando o medo e a quem o lirismo servira de bússola.
- Parece uma imagem da Guerra Ilustrada no Século dos sábados
Deixou o paizinho escapar entre dentes para consigo mesmo sorrindo enigmaticamente ante o colorido das imagens, apelativas, chocantes, retorquindo do mesmo modo.
- E só fogem p’ra este lado ?
Demorei uma eternidade a entendê-lo, quase uma década, e só muitos anos mais tarde soube de fugas para o outro lado, Peniche, submarinos, coragem e uma história tão boa ou melhor que a do balão mas que, já entendia a razão, jamais veria contada naquela revista. O paizinho era, comigo, parco em palavras, e, não fosse o meu ouvido de criança desconfiada e jovem atento como um radar, jamais lhe entenderia os desabafos largados entre dentes, ou ciciados entre amigos numa solenidade de bedel mas que a minha memória guardava e somava até ao infinito.
- “Obviamente demito-o.” Tal e qual amigo Leandro. Sem tirar nem pôr. Por isso lhe chamaram o General sem Medo.
Esses sussurros ciciados e as amizades repartidas com sindicalistas na adolescência, fermentaram em mim durante a maturidade os frutos do lido e ouvido a que somava o estilo aventureiro e agradável das corajosas odisseias plasmadas nessa revista. Os solilóquios atentamente escutados ao paizinho ou as conversas captadas nos murmúrios por ele divididos com o senhor Teófilo e o vizinho Moisés maturaram-me as ideias. Muitos anos mais tarde nem o “fim da história” determinaria a colheita que esses acontecimentos haviam de forjar alimentando-se da minha reserva de percepções, cultivados que já eram, bem fundo no meu ser, os ideais que ainda hoje partilho.
Muito do meu optimismo teve início nesses tempos em que, durante algum tempo, tal como a maravilhosa mesa em forma de U o fora para uma criança aberta ao mundo, essa revista foi para mim o alfa e o ómega das abcissas e ordenadas entre as quais a minha vida girou, uma revista que me
alargou os horizontes limitados que da minha singela janela vislumbrava. Ao invés de viagens em balão voguei nos mares da
imaginação, alimentado por aquelas páginas extraordinárias, simultaneamente maravilhosas e excessivas que tão sub-reptícia
e artificiosamente se inculcaram na minha alma.