É madrugada. Acordei cedo e bem
disposta. Os últimos tempos têm-me sido favoráveis. O meu “astral” anda alto, e
horóscopos que nunca consultei são unânimes em predizer-me dias felizes, muita saúde
e amor. Nada mau como perspectivas.
Uma cigana bonita tentara ler-me a sina
na palma da mão, fechada, com que disfarçara o valor das moedas que lhe
colocara no regaço. Contudo lá foi atirando mais que uma vez ser eu descendente
da realeza, uma mulher com alma, que encontraria a fortuna e a quem não
faltariam homens na vida, ricos e carinhosos, inteligentes e formosos. A magana
abotoara-se com as moedas e ainda gozava! Valeu-me não me ter rogado uma praga,
ou atirado para os braços de homens menos recomendáveis. Devia portanto
estar-lhe agradecida.
Retomando o fio à meada. É madrugada,
acordei cedo e bem disposta. Ligo a música e sento-me à secretária, o amigo
Madeira Piçarra não me perdoaria se faltasse à pontualidade e à constância com
que lhe remeto estes escritos, estou em cima da hora, devo, tenho que
enviar-lhos ainda esta manhã. Estou portanto ouvindo música. Clarinetes,
trombones, pianos, violinos, lançam odores a uma Primavera ainda longínqua no meu
espírito. Espirais de sons enovelam-me os sentidos. Busco Vivaldi e “As Quatro
Estações”, assim não sairei do carreiro, vou mete-las todas no mesmo saco para
não trair a sina, já que ainda mal começou o Outono.
Vivaldi, esse virtuoso, filho de um barbeiro
violinista e talentoso. O mesmo Vivaldi que virou padre e a quem não sei porquê
chamaram “o Padre Vermelho”. Adorava crianças e há quem diga terem sido elas a
inspirá-lo. Embora nascido no séc XVII, só na segunda metade do séc XX viria a
ser descoberto. Morreu pobre, vendeu baratas milhares de obras por si compostas
para sobreviver. Tão virtuoso era, (foi o percursor do romantismo na música),
que compunha uma melodia mais rápido que um copista demorava a copiá-la.
Uma caixinha de CD’s que há muito o meu marido me oferecera faz-me as delícias destes momentos. Conhecem aquela estória de
uma senhora que em toda a sua vida nunca comprou, em segunda mão, um carro que
a não tivesse satisfeito plenamente enquanto lhe durava ? E parece que ao longo
da vida muitos comprou e nenhum a desiludiu ! O segredo ? Não percebia nada de
mecânica, mas sentava-se neles, ia ligando os respectivos rádios, e o que
encontrasse sintonizado numa estação de música clássica era o que escolhia.
Consta que nunca falhou ! Dá para pensar não dá ? O sistema não terá aplicação
na hora de escolher um homem ? Calhando todo aquele que víssemos numa festa de
amigas de avental ao peito daria pelo menos jeito !
Uma aura divina parece rodear a imagem
do compositor, em destaque na capa do CD, eu sinto-me no céu. Volto a lembrar a
cigana e interrogo-me sobre que fazer com o meu homem já que a julgar pelas
palavras dela irei ter muitos, ricos e formosos. Não me preocupo, o futuro a
Deus pertence e os horóscopos predizem-me dias felizes, saúde e amor. O dinheiro
é com a cigana. Nada de razões para me preocupar. Cada português devia ter uma
cigana à perna, talvez a auto-estima nacional se elevasse.
Não
temos ciganas mas temos ciganos, o mundo está cheio deles, não têm pátria, a
sua pátria é o dinheiro, ou melhor, a sobrevivência com os tachos, a qualquer
custo. Outros arranjam louça estalada, guarda-chuvas de varetas partidas ou
fechos emperrados, enfim, sobrevivem trabalhando.
Temos ciganos, ainda há poucos dias
passou um na minha rua. Dei por ele ao longe, fazia-se anunciar com alarido, de
tal modo que ninguém no bairro poderá dizer em consciência que não o ouviu, que
não deu por ele. A minha gata, a Shamira, curiosa, saltou do sofá e correu para
a janela. Aquilo era novo para ela, o som, o pregão, e ali ficou até perdê-lo
de vista.
O assobio da sua flauta, aquele assobio,
há quantos anos o não ouvia ! E como faz bem à alma ! Um amola-tesouras ! Há
quanto tempo o (s) não ouvem ? Pensava ser espécie já sumida da terra, como o
lince da Malcata. Que alegria foi ouvi-lo de novo. E não foi que dias depois
choveu ? Sempre me disseram que eles adivinhavam chuva ! Procurei tesouras e
facas por amolar e nada ! Tudo é novo ou quase na cozinha. Ciganos, está visto,
à minha custa não sobrevivem. Mas sobrevivem ciganas, o que vai dar no mesmo.
Oxalá a cigana não se engane quanto ao
dinheiro ! Bom jeito me daria ! Homens já me chegam os que tenho. Tal pai tal
filho, estão iguaizinhos em tudo ! A música parece agora subir enorme
escadaria, vai em
crescendo. No fim uma grinalda de cores projecta raios
fulminantes de arco-íris em todas as direcções.
Vivaldi enche-me a manhã de harmonia.
Já sei ir passar o dia cantarolando-o, e como não sou egoísta aqui vos deixo a
sugestão de que o ouçam, alto e bom som, acredito piamente que igualmente
alegrará o vosso dia. Remato ouvindo Strauss e “Wine, Woman and Song”, como
sempre radiosa e intrigante. Quanto daria para conhecer a história desta belíssima
composição !
Cesso, como tantas vezes acontece, ao
som de “Voices of Spring”, do mesmo compositor, e acabo atirando os papéis ao
ar, qual bailarina, o pijama virando lindo vestido de organza, rodopiando pela
sala e saindo, pois tenho que ir trabalhar !
* Escrito em Évora a 30 de Outubro de 2006 por Maria
Luísa Baião e publicado por esses
dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.