Há anos que observava o formigueiro. Olhando-o, meditava na condição das
pobres formigas que, fadadas por anos de seca, se esfalfavam para garantir um mínimo
de subsistência.
Levavam-se a sério, trabalhavam denodadamente, ainda que sem resultados
visíveis, já que, mantendo a tradicional e rígida organização dos tempos de
vacas gordas, se mostravam incapazes de enveredar por novas formas de
comportamento, mais conformes com a escassez de meios agora ao dispor.
As mesmas, sempre as mesmas, teimando nos mesmos métodos, lá iam
sofrendo as agruras da sua condição de obreiras e matando-se para prover, mal,
o seu sustento e o da colónia.
Desta janela, onde por vezes em recato me ponho a olhá-las,
entristece-me a sua vã e ignota azáfama, pois nem elas parecem dar-se conta da
vacuidade do seu esforço, nem eu, por muito que o quisesse, algo poderei ou
poderia fazer que tanto mal remediasse.
Obreiras que são, engordam e alimentam os vários níveis hierárquicos da
colónia, colónia que por sua vez nem lhes minora a condição, não contribui para
uma sua mais proveitosa e eficaz acção, nem lhes melhora a distribuição ou
redistribuição da ração.
Quer as formigas guerreiras quer as rainhas parecem, nesta colónia,
viver sem se darem conta nem das dificuldades das demais, nem do momento
crítico que todo o formigueiro atravessa. Continuam vivendo à tripa forra,
distribuindo entre si cargos, honrarias e benesses que só um vão sentimento de
normalidade e estabilidade podem explicar.
Algumas obreiras, porventura mais cansadas, ou mais lúcidas, parecem-me,
pelo revoltear das antenas, dar-se conta da ameaça que sobre todas paira e,
inconformadas, reclamarem alterações urgentes ao seu modelo de organização.
Aproximo, nestas ocasiões mais a cabeça da janela e, curiosa, tento
desvendar-lhes os segredos. Não consigo dar-me conta de que sejam votadas a algo
mais que um profundo desprezo, ou pelo menos assim me parece acontecer.
Calhando observar durante continuados e mais longos períodos este
exemplo de mole humana, reduzido a dimensões liliputianas, deduzo, e talvez não
ande longe da verdade, que a aparente normalidade tem contudo gerado enormes dissensões
internas na colónia. Colónia de onde, num curto espaço de tempo, varias
rainhas, apostava ter visto já debandado, incapazes de colocar a mão, ou as
antenas, em atitudes reformistas e mobilizadoras de uma outra estratégia, capaz
de lhes garantir mais que a subsistência a que estão condenadas, umas, ou
alterar a soberba negligência e ofensiva opulência das outras.
Sonho já com as formigas e o seu exemplar formigueiro, cuja ebulição
acompanho dia a dia e que, mau grado me estar a arrasar o quintal, e ter tido
por mais que uma vez uma vontade incontida de lhe dar valente pontapé, me traz
curiosamente decidida a, calmamente esperar, e ver até onde a sua capacidade ou
incapacidade as conduzirá.
As obreiras trabalham, é inegável, cada vez menos, mas trabalham, mais
mortas que vivas, mas trabalham, qualquer dia a troco de nada, mas trabalham,
inconscientes do papel que desempenham, mas trabalham, há muito sem esperanças,
mas trabalham, sem presente nem futuro, mas trabalham, sem que se apercebam
para quem, mas trabalham, sem que lhes reconheçam qualquer mérito, mas
trabalham, para minha estupefacção, ainda trabalham.
Na colónia, as mandantes mandam, mal, na maioria das vezes, mas mandam,
sem qualquer capacidade para tal, mas mandam, afadigadas com problemas
pessoais, mas mandam, assoberbadas por ambições desmedidas, mas mandam, nada
preocupadas com as demais, mas mandam, para o bem ou para o mal, mandam, para
mal dos nossos pecados, mandam.
Um dia uma formiguinha atrevida apresentou um projecto inovador, e, pela
primeiríssima vez, logrou conseguir o consenso das mandantes que, iradas c'a
ousadia, também pela primeira vez se puseram entre si em sintonia.
A formiguinha, essa, viu a morte anunciada nessa mesma hora, nesse mesmo dia.
" Moral exemplar, não ousar, não mudar, viver, mas pouco. "
* Texto escrito por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião há 10 anos ou mais.