Quem comparar os tempos actuais com
os anos 80 ou mesmo 70 do século passado, muitos motivos e pontos de contraste
forçosamente encontrará. Meio século de vida deu-me já o discernimento e o distanciamento
tão necessários a julgá-los, sem eles esse tipo de análise seria de todo
improcedente.
Esta cidade, Ebora, Ebora Cerealis,
Liberalitas Júlia, é há mais de 2.000 anos um verdadeiro tesouro, arqueológico,
museológico, monumental, patrimonial, paroquial. Diria quase um tesouro
inexplorado, ou ao abandono, sem proveito ou com proveito muito reduzido em
relação às potencialidades que encerra e há mais de 40 anos o meu padrasto lhe
augurava.
Autêntico burguês, esse meu padrasto,
pessoa urbana de longa visão, terá sido dos primeiros a aproveitar os
passeantes (poucos) que tal tesouro atraía (poucos mas bons) porque de resto,
decorrida uma eternidade contam-se ainda pelos dedos quem daqui tire proveito
que se veja. Digo proveito directo, palpável, visto, em contado.
Seguindo instruções (secretas) por
ele dadas há mais de quatro décadas, tenho utilizado e aperfeiçoado o seu
método. Cursei línguas, dramaturgia, documentei-me sobre representação em cena
e maquilhagem artística, abracei uma parafernália de adereços e toda a temática subjacente, aprofundei seriamente
a investigação, enfim, valorizei-me, profissionalizei-me, inseri-me em vectores
mais altos e elaborados da cadeia de valor, especializei-me, e posso afirmar
sem margem de erro, ou com uma mui pequena, ter-me tornado um activo (não
tóxico) bastante interessante e valorizado, pelo menos para mim e no que aos
meus interesses concerne. Claro que eram outros tempos e isso também me ajudou bastante, hoje nem a
relva se pode pisar, quanto mais dormir num banco de jardim ou pedir uma
esmola.
É certo que o ensino anda todo ele
muito por baixo, inclusive o profissional, mas a verdade é que só não «somos o
que queremos ser» se o não quisermos, e hoje, não fosse a extrema modéstia que
me anima, poderia reclamar-me como exemplo para estas gerações tão
desorientadas, tão à deriva, tâo desinteressantes, e sobre as quais ninguém
manifestou ainda o mais pequeno interesse.
Tive a fatalidade de muito cedo ter
ficado duplamente órfão, mas em contrapartida a felicidade de nascer pobre e
necessitado, tive de, mui cedo fazer pela vidinha, mas também beneficiei da
particularidade de tudo isso ter acontecido ou ocorrido numa época prenhe de
solidariedade e de oportunidades, num país liberto das tricas partidárias e
cujo timoneiro congregava sobre si as coesões de todo um povo, ao invés de
hoje, ou de agora, em que as coesões são mais que as “mões” e se partem e repartem
em redor de cada ideologia, ou de cada partido. Sobretudo tive a peculiaridade
de ter nascido num país em crescimento e onde quase todos os sonhos eram
possíveis.
Veiga Simão lançara no ensino a única
reforma digna desse nome nos últimos 50 anos, mas curiosamente não beneficiei
dela, a minha formação já tinha sido delineada e mesmo iniciada, estava a
resultar pelo que nem eu nem o meu patrono (padrasto) vimos necessidade de a
corrigir. Hoje, que as competências práticas assumiram no contexto económico e
social do país uma preponderância inusitada, confirma-se a justeza da opção
então tomada, e foi assim que, muito cedo me substitui à pobreza envergonhada
de hoje e, com o respaldo da formação recebida e a receber, dei às alminhas carinhosas
das paróquias de S. Francisco, S. Braz, Sé e Santo Antão, possibilidades de
corporizarem a sua caridoza solidariedade.
Lembrai-vos que se vivia a época do escudo
($), uma moeda forte, e que o metal escuro raramente era dado numa dádiva
(desculpem-me a redundância) pelo que ao fim do dia rejubilava com o peso e o
brilho das moedas brancas de níquel.
Um quarto do pecúlio obtido era
colocado de parte p’ra livros e materiais didácticos, mais tarde seria reduzido
a um quinto, um sexto, valor abaixo do qual nunca desceu, a actividade não era
reconhecida e, não estando sindicalizado jamais tive acesso a mordomias como
ajudas de estudo ou outras, exclusivas a sócios. A prática, e os seus
resultados, foram as balizas determinantes para afinar a minha formação e
carreira, toda ela eivada de responsabilidade.
Foi assim que decorreu, pacatamente
como tudo o resto nesta cidade, a minha vida, conforme as estações do ano ou da
época estival e outras, deslocava-me de S. Francisco para S. Braz, daqui para a
Sé, desta até Santo Antão, dali para o perímetro Jardim e Templo de Diana,
Casas Pintadas, Museu, Pousada dos Lóios, no entretanto tomava pulso à fé dos
crentes e à economia, quer nacional (sempre muito pobre) quer internacional,
perdulária até mais ou menos ao ano 2000, por volta da introdução do euro, e
data a partir da qual a minha vida mudou radicalmente e os meus rendimentos desceram
substancialmente, pois enquanto anteriormente era bafejado com notas estrangeiras,
supostamente de baixo valor mas que quando cambiadas aos balcões do Banco do
Alentejo (no Banco Português do Atlântico o Delgado arranjava sempre modo de me
surripiar uns trocos) se transformavam, como que tocadas por varinha mágica,
numa considerável pipa de massa (livre de impostos).
Portanto, se alguém na cidade desde muito
cedo se encontrava em condições de discutir macroeconomia seria eu um dos
poucos felizardos. Não será de somenos importância frisar que nessa altura ninguém,
mas absolutamente ninguém, se atrevia a deixar na minha mão uma simples moeda,
em qualquer moeda, desculpai-me a redundância. Talvez fosse de mau gosto,
talvez diminuísse o estatuto do dador, o que é certo era andar eu cogitando no
fenómeno quando se deu a ascensão do euro e a coisa mudou completamente de
figura.
A afluência às nossas riquezas
patrimoniais aumentou de modo considerável, mas também inexplicavelmente passei
a ser bafejado apenas e quase exclusivamente com moedas, moedas brancas é
certo, mas contudo moedas. Porém o hábito de deixar cair moedas na mão que
esmola arrastou outra tão imprevisível quão abominável consequência, e, heresia
das heresias, de um dia para o outro eu era contemplado quase invariavelmente
com moedas pretas ! Muito antes do colapso do Lehman Brothers Holdings Inc. Já eu sentia a pulsação
da crise instalando-se sub-reptícia e maquiavelicamente na economia.
Inicialmente pensei estar o egoísmo
crescendo entre nós, ou os crentes perdendo a fé e virando egotistas, na
verdade chegou-se ao cumulo de serem concedidas esmolas com moedas de 10 e 20 cêntimos
e até de menor valor ! A arte, se arte lhe podemos chamar, eu chamaria
artimanha, consistia em, na igreja, deixá-las cair de alto na caixa das esmolas
para que o tinir soasse alto. Astúcia, ou estultícia ainda hoje utilizada... Sem
que fossem encontradas alternativas muita coisa nos tem sido limitada, direitos
surripiados em nome ou proveito de quem, ninguém ignora.
A partir desse momento decidi
continuar os estudos e acabar o mestrado, ilusão pura, nem vos conto como
acabou essa parte da minha vida, somente que tanto detesto a máquina de corte
do bacalhau como o seu cheiro secando, mas sobretudo o pivete que exalam as
conservas de arenque Surströmming, o enlatado mais fedorento do mundo, nem sei
como há quem consiga comer aquela merda de petisco...