Todo
o mistério se resumia a um pequeno raminho de hortelã encontrado sobre o banco
traseiro da W Kombi dos biscates. A história tem destas peculiaridades, tão
aparentemente insignificantes quanto inofensivas ou desinteressantes, contudo
todavia mas porém, são elas muitas vezes a ponta do fio que se enrola ou desenrola como um novelo por toda a meada.
À
excepção de um insuspeito, ou suspeito raminho de hortelã entalado entre as
costas e o banco corrido da W Kombi e que Molero não sabia justificar, nada
mais havia a acrescentar, assim terminava o relatório.
Tinha
sido arquivado claro, determinara-se após cuidada averiguação, conforme consta
nos autos, que o arguido não passava de um pobre diabo, um gato-pingado, eu
seria mais preciso e afirmaria tratar-se dum fura-vidas. Concluíra-se dessas
mesmas averiguações ser pacífico que o arguido comummente vociferara contra o
Estado, todavia menorizaram-se essas ilicitudes criminais em virtude (eu teria
antes apelado à falta dela), da ausência de amor-próprio e patriotismo, já que
contudo o sujeito em questão nos autos de averiguação;
Um;
não possuía cadastro, cousa decididamente abonatória em seu favor e muito valorizada na sociedade corporativa em construção
Dois;
vociferava por hábito e permanentemente contra tudo e contra todos, pior que aquilo só mascando tacaco
Três;
sobrevivia de pequenos trabalhos ou ganchos, vulgo biscates, que a vizinhança
com condescendência lhe atribuía, sendo que o café onde a atitude anómala se
verificara e assinalado na denúncia era a única morada que se lhe conhecia, de
resto incerta, constituindo aquele lugar poiso certo conhecido, tendo alguns
dos indivíduos que lhe entregaram trabalhos a realizar confirmado terem pago os
mesmos com notas de vinte escudos, não ficando todavia determinado se novas se
usadas dado ter passado já algum tempo sobre o assalto ao Banco de Portugal e
também sobre o dito e referido pagamento ao sujeito nomeado Molero, cuidando-se
ser essa a razão pela qual pagaria diariamente as bicas com um nota de vinte
escudos, inusual, concedemos, contudo em flagrante contraste com as afirmações
constantes nas denúncias anónimas e que relacionam o individuo em questão com
os acontecimentos ocorridos na agência do B.P. na Figueira da Foz em 17 - 5- 67.
Quatro; na completíssima
inspecção e analise à citada camioneta dos biscates, veiculo registado na DGV
sob o nº de matricula CE-56-02, de marca Volkswagen, modelo Type II flatbed,
nada foi encontrado que permita intuir ou estabelecer qualquer ligação com base
em prova legal, e juridicamente aceite , ou quaisquer outras razões que
permitam ligar os factos ocorridos e que culminaram na sua apreensão, como tal foi o dito e citado veiculo devolvido
ao seu legal e comprovado proprietário, já que em momento algum era passível
estabelecer-se uma relação de causa efeito entre o dito cujo raminho de hortelã
e a discrepância de factos verificada. O veiculo estivera parado ou saíra no
dia do assalto á dependência do banco de Portugal na Figueira da Foz ?
Esse
era o busílis da questão, e os inspectores detestavam ser comidos por parvos,
que é como quem diz, que lhes comessem as papas na cabeça. O citado Molero
puxando de notas de vinte escudos todos os dias quando até ali mendigava a
bica dia sim dia não e protelava o pagamento da mesma para depois do almoço ou
logo ao jantar ? Ali havia gato. Que o deixassem ir mas mantivessem
sorrateiramente aquele fura-vidas debaixo de olho, tanto mais que o facto de
ele ter deixado de apresentar as vintenas para pagar as bicas desde que os
interrogatórios destinados aos autos de averiguações tinham tido início, era a
prova provada de que ele era culpado.
O
inspector Bonifácio, inspector de terceira classe há quinze e chefe
de brigada perfazendo vinte e dois anos no activo franziu o senho e ordenou:
-
Dêem-lhe tempo, tempo e espaço, mas não lhe tirem os olhos de cima, esse
bardamerda anda a gozar connosco e eu gozar só na cama e com mulheres mais
novas que ele, a esperteza desse merdas vai ser a morte dele, pela boca morre o
peixe. Há-de falar, ou eu não me chame Bonifácio.
Todavia,
contudo, fiquem porém registadas as afirmações do que disse o arguido Molero quando
mui exactamente afirmou não ter sido usado o referido veiculo na última semana,
o que é contraditado pela prova nº 1, o tal raminho de hortelã, fresco, viçoso,
isto é colhido há menos de um dia, que foi por nós encontrado (e citado atrás
nos autos) entre as costas e os bancos corridos da viatura, o que contraria as
alegações do suspeito, inda que não passe de uma prova circunstancial e como
tal passível de ser rebatida por qualquer advogado de meia tigela ou até mesmo
ignorada por qualquer douto e excelentíssimo juiz em quaisquer tribunais,
portanto esta inspecção limitou-se a registar a prova, a qual no futuro poderá
ou não vir a tornar-se importante e necessariamente utilizada, o que será
consensual, quer como acusação quer como prova.
Nada
mais havendo por agora, sublinho por agora, a acrescentar, aos dezassete de
Junho do ano da graça de mil novecentos e sessenta e sete, pelas 22:30h é
encerrada esta averiguação e inspecção e delas passados estes autos que vão
superiormente assinados por mim, chefe de brigada da PIDE e inspector de
terceira classe.
A
marosca montada em segredo e em redor de Molero nem demorou duas semanas que
não surtisse efeito. Um sujeito engomadinho, moreno, porte atlético, cabelo
curto à escovinha, à rufia, e cujos modos diga-se de passagem contradiziam o
fato e gravata esmerados, apareceu um dia no café, segredou qualquer coisa ao
ouvido do Molero e este, sem largar um pio, passou-lhe as chaves da Kombi para
as mãos. Evidentemente o nosso engravatadinho engomadinho não mais deixou de
ser seguido.
Vimo-lo
entrar e abalar aos solavancos de embraiagem debaixo do telheiro de onde o
Molero afirmara a carripana nunca sair, parou demasiado tempo na bomba de
gasolina e no café anexo à mesma, pelo que mal partiu um de nós foi averiguar
enquanto os outros se lhe mantinham no encalço sem o perder de vista.
Metera
dez litros de gasolina, (refira-se que de acordo com os catálogos do modelo Volkswagen,
Type II flatbed teriam ficado com autonomia pra muito mais de cem quilómetros
mesmo em circulação urbana) e fizera um telefonema (um nosso homem ficou
encarregado de posterior visita aos CTT afim de averiguar o nº marcado e o
destinatário, bem como a localização deste último), e tomara uma bica,
totalizando a despesa vinte e dois escudos e cinquenta centavos, importância
que quitara com uma nota de quinhentos escudos, pois o balconista lembra-se bem
da dificuldade para lhe arranjar troco, UMA NOTA DE QUINHENTOS ESCUDOS ????????? Mas esta investigação só lida com notas
demasiado grandes e demasiado novas para as despesas que pagam ?
O Asdrúbal
ligou para a central, para o inspector de terceira classe e seu chefe de
brigada a dar conta dessa estranha e peculiar ocorrência tendo ouvido de
resposta:
- Eu
sabia ! Eu tinha razão ! Não os percam de vista a esses dois ! Ali há gato ! Eu
não me chame Bonifácio caralho !
O
quê ? Que diz você Asdrúbal ? Repita lá isso homem !
- É
como lhe disse senhor inspector, achei estranho apenas, o nosso homem levar
colocado sobre a orelha direita, quero dizer entalado na aba da orelha um
raminho de hortelã, ao principio ainda julguei que fosse manjerico embora não
seja o tempo deles mas… A gente habitua-se a ver de tudo não é senhor inspector
? Depois quando me aproximei dele p’ra ver se bispava o nº que discara (ele
tapou-se com as costas) cheirou-me a hortelã, olhei bem e lá estava um raminho
fresquinho todo catita por cima da orelha do bicho, quero dizer do dito cujo
sujeito engomadinho.
-
Siga-o sem que ele dê por si Asdrúbal !
Chefe,
eu fiquei a pé no café para lhe telefonar, quem o seguiu foi o agente novo, o
Camilo, aquele agente novo do norte, acho que de Mortágua, ele e o Resende a
dirigir as operações.
- Ah
! O Resende está com ele ? Está bem, temi que a sua juventude e inexperiência pudessem
trair todo o trabalho que temos tido. Ok, vou já mandar alguém buscá-lo aí,
onde é que você disse que estava ? Café Frango Assado ? Samouco ? Ok vai já alguém, espere e tome
qualquer coisa, hoje pago eu.
O
engomadinho foi seguido, parou à saída de Alcochete pra deixar entrar uma
engomadeira com barraca montada no mercado do Montijo, dirigiu-se à reserva
natural do estuário do Tejo, como quem se mete a caminho de Samora Correia
tendo a meio caminho metido pelo silvedo, o que fizeram exactamente às 18:37h,
e onde permaneceram exactamente até às 19:42h.
O
regresso executaram-no pelo inverso da ida. O nosso carro marcava exactamente
87 quilómetros percorridos, ida e volta, passando agora à enumeração de vários
factores a assinalar neste relatório e de supino interesse para a investigação
em curso.
Um;
Ao observarmos a carrinha depois de novamente arrumada no telhal jazia sobre o
tablier um viçoso e aromático raminho de hortelã.
Dois;
Foram encontrados debaixo do banco traseiro vários lenços de papel e bocados de
papel higiénico, recente e com resquícios de sémen, bem como um preservativo
usado (bem cheio) de marca Durex, tamanho grande (juntámos a carteirinha
prateada do dito às provas), e alguns outros marca Control, já ressequidos indubitavelmente de
encontros anteriores, provas que recolhemos num saco higienizado e foram
entregues nos serviços de laboratório desta polícia, com o nº do processo
apenso para posterior analise averiguação e identificação.
Três;
A dita senhora, que mantém banca de engomadeira no Mercado do Montijo é a D.
Clarinda Veiga Pires, Terá à volta de 45 a 50 anos, e vive maritalmente há mais
de vinte com o senhor Herminio Palma Inácio, aproximadamente da mesma idade e
com talho na rua de Cima, no Cacém.
Quatro;
Conforme instruções recebidas nenhum dos intervenientes neste relatório foi
detido ou travado nas suas actividades diárias.
Cinco;
Toda a equipa está ciente que, quando da sua detenção para interrogatório deve
ser evitado todo e qualquer contacto entre eles e enclausurados em celas
separadas. Para além dos já nomeados foram detidos igualmente; Emídio
Guerreiro, Camilo Mortágua, José Augusto Seabra, António Barracosa e Luís
Benvindo, todos suspeitos de ligação e pertença à LUAR, Liga de Unidade e Acção
Revolucionária.
Passaram-se
alguns dias, triangulações, observações, após os quais as detenções permitiram
em pouquissímo tempo esclarecer os factos, recuperar as quase trinta mil mocas e deter todos os intervenientes a fim de
serem alvo de acusação, posterior julgamento e prisão.
Esta brigada orgulha-se do seu laborioso sucesso
em prol da Nação, eu, pessoalmente, dirigi todas as diligências que culminaram em
mais um espectacular sucesso da PIDE. “ Tudo pela Nação, nada contra a Nação” !
Chiado,
16 de Agosto de 1967
Bonifácio
António Maria Cardoso
Inspector,
Chefe de Brigada
*
todos os factos e nomes são veridicos e podem ser confirmados, existem actas, relatórios,
processos, e, sendo mais cómodo o Google, introduza os factos, ou os nomes e
dentro do contexto, confirme-os. Obrigado.