Facto
um; Eu chegara atrasado ao café, entretanto já um magote de amigos tomara
posições para assistirmos às corridas de motas na Tv e ver a prestação do
português Miguel Oliveira, que venceu na sua categoria somando a essa vitória o
segundo lugar no campeonato.
Facto
dois; Em Valência e nesse mesmo dia, Rossi partiria do último lugar da grelha
de partida por razões de todos conhecidas, e esses dois factos conjugados
manteriam a malta animada, a cerveja a correr, as gargalhadas soltas e as
expectativas ao rubro.
Facto
três; Sentei-me no lugar que me tinham reservado e enquanto a coisa aquecia fui
debicando o jornal, para ver as grandes já que às pequenas era impossível dar
atenção no meio de todo aquele arraial. O Rui Coins o Sousa e um outro até
equipados vieram, a rigor, boné e tudo, para colorir a festa, e nisto alguém se
encarregou do comando para aumentar o volume e dar mais uma pitada de realismo
à coisa.
Facto
quatro; Estava eu absorto com tanta autenticidade e colorido quando a realidade
se impõe e me arranca bruscamente os olhos do jornal e da Tv, deixando-me
extasiado e admirando o estilizado de um sapato de salto em agulha cuja cor,
forte e espraiada por todo ele me abanou de supetão, uma cor como aquela, viva,
sensual, sensualíssima, lúbrica, não me era dado ver desde que a vira há muitos
anos na Carmem, vestindo uma marca que eu nem conhecia, familiarizado que
estava com a Wonderbra, a Triumph, a Honda, a Suzuki, a Kawa e a Yamaha, desde nem
me lembra já quando, talvez miúdo...
Desta
vez não era nada disso, apenas a cor começando no sapato de salto exagerado, altíssimo,
onde se anichava um pé libidinoso, escultural, cujo peito o sapato deixava
quase totalmente descoberto e terminando em unhas na mesma cor e tratadas,
cuidadas a rigor, como se um artista se tivesse debruçado sobre elas. Olhei em
redor, receoso de que alguém se encontrasse dando-me atenção e só depois me
concentrei naquele par de sapatos e naqueles pés, pois já uma vez vira com
atenção um par igual, ou cuja perfeição estaria muito próxima, voluptuosos, e
sobre os quais me detivera, observando-os de modo minucioso e concupiscente,
aplicando-me no branco puro do mármore e na pureza das formas a cuja pose o
artista incutira uma extraordinária leveza, escultura talvez ainda possível
visitar e ver, admirar, no museu desta minha querida cidade.
Mas
hoje, neste dia de festa, apenas aquele pé lograva captar a minha atenção,
aqueles pés de alabastro, lascivos, bamboleando ao ritmo da descontracção
dominical num movimento pendular e sensual que uma fina presilha rodeando o
tornozelo não obliterava, antes acentuava, tornando-se impossível ante o
contraste com essa fina tira ignorar a pele branca e suave de um tornozelo
esgueirando-se em linha harmoniosa desenhando a magra barriga da perna,
impecavelmente depilada, quase luzidia, lustrosa, macia, acetinada mas firme,
não musculada, bem delineada, harmoniosa apenas, ou sobretudo, e tão melodiosa
que o joelho um enlevo, sem uma covinha, sem um risco, sem uma cicatriz, sem um
alto, ainda levantei o braço da cadeira para dar uma pequena cotovelada e um
sussurro ao Flor;
-
Florival olha-me aquele par de pernas ! Divinal !
Mas
no último momento contive-me, não se incomodam os deuses com brejeirices, no
caso a deusa, e que pensaria ele de mim ? Ele e ela, e todos quantos se
apercebessem…
Verdade
verdadinha é que nem a luta na frente da corrida me distraía das agulhas, do pé
divino e da divinal perna, canela, joelho sem mácula, registe-se o pormenor por
não ser despiciendo, de somenos importância ou relevo, e aos poucos toda aquela
imagem sentada à minha frente balançando o pé, balançando a perna, que
gradualmente e na razão inversa da razão em que me perco se tornou imaculada a
meus olhos e nem a gritaria me acordou pois já nem os ouvia;
-
Miguel Oliveira na frente ! Força campeão ! Dá-lhe gás ! Mostra-lhes como és !
Como somos ! Aperta com ela ! Ela a máquina esclareça-se …
Só
muito mais tarde viria a saber a novidade, o Miguel vencera o grande prémio, a
KTM estava eufórica, para além disso o portuga subira ainda ao lugar de vice-campeão
no campeonato da sua categoria, a manhã tinha sido entusiástica e eu nem dera por
ela, mas por ela sim, divinal, imaculada naquela saia curta a condizer, tal
qual a Carmencita que adorava conjuntos e a quem nunca vira duas peças que não
casassem, enfim, gostos não se discutem e cada um tem os seus e as suas manias,
as suas pancadas, e nem o alarido por o Rossi ter perdido me arrancou da
abstracção ou o berreiro ao aplaudirem Jorge Lorenzo, pedrado que estava,
fixado que estava nos meus pensamentos e naquela coxa sublime, certamente torneada
por Deus, não me convencem que um simples mortal seja capaz de tal, de obra tão
bela e quanto mais a perna balançava mais eu, entorpecido, me deixava carrear
para um mundo onírico onde ninguém apostaria encontrar-me ou não estivesse
acordado, tudo porque o pêndulo que me prendia como um relógio de cuco me
submergia em inconfessáveis pensamentos, como se estivesse ligado a uma roda
dentada em que, a cada movimento um avanço no mecanismo e eu, automaticamente
vencido e arrasado por tamanha beleza me deixasse ir, vogando ao sabor das
badaladas de um tempo que para mim deixara de existir, deixara de contar no
momento em que o brilho diamantífero da fivela daquela presilha naquele sapato
calçando tal pé me chamara a atenção, me prendera a atenção, me bloqueara o
pensamento, me fixara o olhar no turbilhão de uma galáxia em que eu, orbitando
o sol, esperava em cada elipse do balançar do astro no cosmos ver o que já
antevia grudado que me encontrava nas inimagináveis imagens do Hubble e na
beleza estonteante dos pilares da criação, cuja cor se confundia com o resto do
conjunto, com a saia curta, a blusa justa e escorreita, nem ousei levantar os
olhos, não se olha Deus de frente, nem Deus nem os santos nem Nossa Senhora a
quem, como ante esta divindade só nos cumpre ajoelhar.
E repentinamente
a lembrança da liberalidade do Papa Francisco, pergunto-me se estarei a seus
olhos livre de pecado, ainda que navegando em pensamentos que nem me atrevo a
confessar-vos à vista daquela coxa, mais antevista que vista, despertando em
mim os melhores dos meus sentimentos, o amor, a ternura, a compaixão por mim
mesmo, a piedade por este desvario momentâneo tão raro em mim, eu que me
considero um pilar da sociedade, um exemplo cívico de probidade para a
comunidade, e quando num repente aquela santa descruzando as pernas se levanta
um relâmpago atinge-me em cheio, e por um milésimo de segundo o céu envolve-me
e absolve-me numa volúpia inacreditável que nem ouso sacudir prolongando o gozo
de tal aparição e deixando que o torpor me embale pois me foi dada a certeza de
que o menor dos meus pensamentos e impressões estavam certos, porque sim,
aquela cor dominava, é então que me envolvem anjos e querubins, ouço trombetas
e cornetins, a alma no firmamento, pairando absorta no meio dos mortais que,
aos tropeções e encontrões me arrancam deste sonho sonhado, sem delicadeza ou
respeito como se embriagados com os resultados do derby.
-
Foste mamado Baião, acorda pá ! O Rossi levou uma banhada ! Viva Lorenzo ! Viva
o rei !
E
lentamente, levado de arrastão por aquela turba prenhe de arrebatamento e
paixão, abandonei os meus pensamentos, abandonei a Triumph, a Wonderbra, o
vencedor era Lorenzo ao comando de uma Yamaha na categoria rainha e na 3 o
compatriota Miguel Oliveira, vice-campeão do mundo na sua classe e para o ano
guindado à categoria 2, isto promete, olho com inveja o entusiasmo desta gente
e por um momento lamento não ter visto as corridas. Para o ano há mais e se o
tempo ajudar pegarei na minha Suzuki e uma vez mais rumarei a sul, Puerto de
Santa Maria, Jerez de La Frontera, divina Espana… Será divinal …