O
meu amigo Francisco Nunes Liberato Cardoso morreu, uma surpresa para mim, quer dizer soube disso há quinze dias, dei com a coisa num jornal, casualmente, nem
costumo ler aquele pasquim, amarrotado sobre a mesa do cabeleireiro onde fora
dar um caldinho ao cabelo para ir jeitoso ao almoço de anos da Felicidade que,
atendendo a que o Senhor a protege e beneficia, não tem pejo em dizer a quem
quer que seja a idade, está com cinquenta e é uma felicidade olhá-la, é
daquelas mulheres de quem se diz serem como o vinho do Porto, quanto mais
velhas melhores, salvo seja o exagero, mas na verdade nunca a vi tão bonitinha
como agora, em adolescente e jovem era até muito feiinha confesso.
O
tempo muda-as, muda-nos a todos, e se umas ficam piores, outras, poucas, para
compensar ficam muito melhores. Atente-se na Felicidade, então não é uma
felicidade mirá-la ? Vê-la, ser seu amigo ? Reuniu à mesa mais de trinta de
nós, os mais chegados, todos amigos de infância, mas estou a desviar-me do
essencial, a felicidade tem destas coisas, sonega-nos a atenção, e quando damos
por nós estamos de beicinho.
O
jornal, puxara dele para ver umas fotos da Sara Sampaio na capa e ao folheá-lo deparei-me
com a noticia da missa por alma do Francisco Cardoso, que se foi já há uns bons
sete meses, apagou-se coitado, e a viúva, a Idalina, nicles batatóides,
calou-se bem caladinha pois nunca foi muito à bola comigo, daí nem me ter dado
a triste noticia. Na verdade fora ela que nos separara como amigos, achava que
eu o influenciava demasiado quando nada mais fiz que ele não me tivesse pedido
ou fosse ideia sua, mas os pesos de consciência pesam mais que um par de
cornos, dizem, e arrastam sempre esqueletos atrás de si.
Mas
a Idalina, assim se chama a megera, que hoje se comporta como uma senhora, que
não deixa de ser, não engraça comigo porque eu dei corpo aos seus planos
oportunistas que tanto viriam a beneficiar o meu amigo Cardoso e por
arrastamento a si mesma. Estava portanto a Idalina muito adiantada para o seu
tempo quando em 1978 ou 79, já nem sei precisar bem, lembro apenas que a coisa
foi feita a correr e a rasar os prazos máximos, que por duas vezes tinham sido
gentilmente dilatados pois iriam encerrar irrevogavelmente as inscrições,
os plafonds, os programas, e os planos de ajuda financeira que o IARN,
Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais, quero dizer os EUA, afinal quem
financiava tudo e que colocara milhões de dólares à disposição dos retornados
das ex-colónias.
A
esta distância toda a gente lamentará os retornados, mas na época eram mal
vistos, mal quistos e mal-amados pela generalidade dos portugueses, porque alguns
partidos, alguns jornais, algumas rádios e por vezes mesmo a televisão os
mostravam como gente que beneficiara tempo demais de privilégios que os da
metrópole jamais tinham tido, e sobretudo de ajudas e de condições que aos
nacionais não eram oferecidas, nem nunca tinham sido.
Em
boa verdade, para além da hostilidade com que foram recebidos e tratados, os
retornados não tiveram à sua espera ajudas que não aquelas que o povo fascista
capitalista dos Estados Unidos da América lhes quis dar, e que por cá foram
canalizadas para e pelo IARN. (como habitualmente ninguém tem, veja-se o caso
das ajudas governamentais aos lesados pelas cheias em Albufeira.)
Essas
ajudas foram mais um motivo de inveja e de ódio para com os que, fugidos às
guerras da independência descontrolada que os acordos de Bicesse permitiram,
não acautelando nem cuidando das suas vidas, nem da segurança e bens desses portugueses nas e das colónias,
obrigados a fugir, muitos deles somente com a roupinha que tinham no corpo.
Mas
deixemo-nos de pieguices que não foi para isso que peguei na caneta e no papel,
foi antes para vos demonstrar que a inveja, o ódio e a vergonha pelos
esqueletos no armário, e o incómodo quanto a quem nos conhece o passado pode
levar, pois foi tudo isso que levou a Idalina a esconder-me o Francisco primeiro
e a sua morte depois.
Francisco
Cardoso tinha em fins de 1973 sido contemplado pela Junta de Colonização
Interna, um organismo do Estado Novo (ver link) destinado a promover o
povoamento e o desenvolvimento económico territorial e agrícola na metrópole e
nas colónias, com um soberbo lote, ou parcela considerável, no perímetro de
Pegões e que fizera dele um jovem agricultor e um jovem rendeiro.
Contudo
o advento do 25 de Abril deitara tudo por água abaixo e o bom do Cardoso nunca
chegou a agricultor apesar de, já em democracia, muito ter tentado mas, o
estado democrático, às voltas com as ocupações selvagens e consequentes
devoluções de terras (ver lei 77, também conhecida por lei Barreto, link no fim
do texto) nunca lhe deu atenção. Não lha deu a ele nem a centenas ou milhares
de pequenos agricultores ou rendeiros, o que deitou por terra os sonhos de
casamento da Idalina, que pintara na vida tudo quanto havia para pintar e
encontrara no parvalhão do Francisco o seu seguro de vida.
Ao
observar os apoios que o IARN prodigalizava aos atrasados mentais dos
retornados a Idalina encontrou o furo da sua vida, todavia os pruridos de
honestidade do noivo e até a sua limitada inteligência (foi ela quem assim mo
classificou) e desenvoltura bloqueavam-lhe os planos. Foi aí que eu entrei em
cena, competindo-me criar-lhes ou inventar-lhes como agora se diz uma nova narrativa,
o que na inocência dos meus vinte e poucos anos fiz, tendo até ido mais longe
que a prudência aconselharia e incutido coragem ao meu amigo Francisco garantindo-lhe
que dali não viria mal e ele sempre poderia ressarcir-se do tanto que já tinha
penado à procura de lugar no mundo. Deus escreve direito por linhas tortas
lembro-me de lhe ter dito quando assinou a papelada que a Idalina levaria ao
IARN e faria dele um homem novo, e se não fizesse, mais velho também não o
tornaria, mais a mais viviam-se tempos irrepetíveis e quem tivesse dois olhos
chegaria longe, isto não lho ouvi, mas pensei ter ela pensado, afinal o irmão
tinha declarado numa escola ser licenciado e nem lhe exigiram comprovativo
algum, (tinha a frequência do segundo ano, e nem esse acabou) pelo contrário, passaram
a chamar-lhe senhor doutor e a dobrar-se numa vénia sempre que passava. Pouco
mais de um ano depois tornar-se-ia director daquela escola secundária, onde se
manteve até há um ano atrás, ou dois, data em que se reformou, aos sessenta e
dois anos de idade.
Enquanto
Instituto o IARN vivia de fundos americanos, de muita solidariedade e de boas
vontades, coisas que, como sabemos são extremamente difíceis de encontrar entre
nós. Sabendo da miséria em que muitos tinham chegado o IARN pouco exigia além
do nome e da idade, nem garantias sobre os créditos concedidos exigia. Como o
IARN, nos nossos tempos, só conheço o exemplo de Armando Vara que emprestou
milhões aos amigos em qualquer tipo de garantia lhes solicitar.
Ora
o bom do Francisco Cardoso muniu-se das respectivas certidões de nascimento e
de registo criminal, preencheu a papelada que o dava como retornado de Angola
(onde nunca estivera), fugido de Malange, onde teria uma plantação (quem o
poderia negar, ou desmentir?) alegou desejar recomeçar a vida na metrópole para
o que pretendia um crédito de vinte mil contos (na época uma fortuna) a fim de
adquirir um prédio rústico para o que apresentava a respectiva caderneta
predial, sito na freguesia de S. Teotónio, concelho de Odemira, avaliações do
imóvel igualmente apensas ao processo, em triplicado conforme à lei, e
efectuadas pelos serviços competentes das delegações dos bancos Totta &
Açores, Nacional Ultramarino e Português do Atlântico, solicitação requerida
com a finalidade de transformar o citado prédio rústico numa Albergaria tipo
turismo rural, a explorar no sector cujo desenvolvimento entre Odemira e Vila
Nova de Mil Fontes é esperado, de acordo com o Parecer Técnico do Gabinete de
Arquitectura Mário & Glória Ldª, que se anexa, bem como croquis da
pretendida Albergaria, a construir no prazo de dois anos, durante o qual se
solicita um período de carência.
Ora
todos sabemos como os Américas tratavam o dinheiro por esses tempos de fartura,
tempos de Mário Soares, o amigo americano, de Frank Carlucci, de Artur
Albarran, o estrangeirado que se meteu em negócios pouco claros mas ainda assim
longe da burlazinha do nosso amigo Cardoso, tempos de Henry Kissinger, de Richard
Nixon, de Gerald Ford, era despejá-lo aos sacos de notas onde fizesse falta ou
desse jeito.
A
sabida da Idalina esperava de antemão o resultado daquilo, só não esperava que
viesse em menos de quinze dias, ou tinha amigos dentro do IARN, e ela era do
tipo de quem tinha amigos em todo o lado, e se não tinha iria ter, pelo que foi
a única de nós a não se surpreender quando o IARN meteu o totobola nas mãos do Francisco
(não havia ainda totoloto nem Euro milhões).
Casaram-se,
foram muito felizes, e hoje, que o bom do Francisco Cardoso morreu, podemos
encontrar de novo à venda o Monte das Pedrinhas (link abaixo), como ternamente
o baptizaram no seu sonho de príncipes encantados.