Um
dia destes fomos jantar uma sopinha de peixe da ribeira à alentejana e pargo no forno ao Xica Bia, a quem dantes chamávamos a Xica Boa, mas isso são outras
histórias de aventura e de cavaleiros do asfalto que um dia vos contarei, esta
foi uma saída romântica avec a Luisinha, seulement nós ambos, os dois, avec les
cheveux ondulés dans le vent no boguinhas, apanhando o air da nuit que os dias
estão quentes como o caraças. Já esqueci o sargo grelhado, ou pargo, para o
caso c’est indiferente, mas jamais olvidarei ter encontrado um amigo que não
via há quarenta anos, quarante ans ! Incrible ! Estava tal e qual o conhecia !
Seulement les cãs blanches, un peu gris, o resto era o habitual nele, a camisa
branca impecável, desabotoada apesar do frio exagerado do ar condicionado e
expondo o peito aberto, o peito e um fio, não um fiozinho qualquer mas antes
uma grossa corrente de oiro, reluzindo sobre os cabelos negros dum peito
musculado.
Nunca
soube ao certo o nome dele, Bicho era alcunha que lhe viera com o feitio metediço
e irrequieto, acho que o apelido era Rodrigues, passados tantos anos o natural
será que a memória me falhe, quase quarenta para ser mais exacto, lembro a
última vez que o vi e a última visita que lhe fiz, depois disso foi um carrocel
a vida, Angola, Namíbia, Xangongo*, o Calaári, a queda em combate, o resgate no
héli, o Hospital Militar da Estrela, as Berlengas, a Carmelinda**, a vida passa
num ai, ai que não passa.
Olhámo-nos
e medimo-nos através das cinco ou seis mesas que nos separavam e abanámos um
para o outro as cabeças ao mesmo tempo, em sinal de reconhecimento mútuo.
Reconhecêramo-nos, ele levantou-se, conduzindo gentilmente para a porta a
mocinha que o acompanhava, empurrando-a leve e ternamente pela cintura delgada,
nem devia ter metade da idade dele, talvez a idade de uma filha, pararam junto
à nossa mesa e com um leve empurrão indicou-lhe a saída, não sem que antes a
informasse e esclarecesse:
- Um
velho amigo que não via desde que me levou cigarros à pildra de Évora ! E
esborrachou literalmente o charuto no pratinho dos caroços.
Tua
filha ? Perguntei eu sem que tivesse obtido qualquer resposta, e não obter
nenhuma era já uma resposta, não seria filha, nem sobrinha, nem eu devia
meter-me onde nem chamado seria, entendem ? Pelo à vontade dele com ela fiquei
a par da sua intimidade, não lhe escondera o passado, e o passado dele nem era
brilhante nem recomendável, embora os excessos da juventude devam ser
desculpados, não acham ?
De
modo esfusiante cumprimentámo-nos então com um longo abraço, apresentei a minha
esposa, e ele para a pequena que ficara parada entre nós e a porta com um ar
interrogativo:
-
Que é que não percebeste ? Andando !
Voltou
à conversa, assumiu-se solteiro, eu justifiquei-me com a mobilização apressada
para África e ele com uma precária que tinha aproveitado para dar o salto para
a Suíça, onde ficara meia dúzia de anos e com cuja ordem social não se dera,
mal pudera fugira para a bebedeira de liberdade que então se vivia em Portugal,
-
Estava eu na Estrela por essa altura ! Rematei para o calar.
- Eu
já não aguentava aquilo Baião, a Suíça é bonita mas é ordem a mais, é
organização a mais para o meu feitio, mal me apercebi do mar de oportunidades
que aqui se abria barimbei-me na Rent A Car.
Estavam
quebradas as reservas iniciais, ele fora, segundo disse e durante dois anos,
condutor de uma pequena Rent a Car, fazia de chofer, levava os carros à
oficina, ia levar e buscar os carros aos aeroportos e aos clientes, levava os
filhos do patrão à escola e trazia-os de volta, conduzia a madame ao
cabeleireiro, aparava a relva no verão e desimpedia a neve do quintal no
inverno, tratava de ir com os carros atempadamente à inspecção automóvel, não
ultrapassava os 90 fosse em que estrada fosse, era impossível beber uma
cervejinha todos os dias num bar ou restaurante, eram caríssimos, pelo que me
imaginei a avaliar quanto teria sofrido um espírito livre como o dele.
-
Baião, assim que vi como as coisas por lá funcionavam e cá não, fez-se luz e
apareceram nitidamente diante dos meus olhos as oportunidades que se me abriam
!
E
por falar em abrir abrimos mais uma garrafa de branco de Palmela, a Luisinha
não demonstrava mas eu que a conheço via claramente quanto se divertia com o
personagem, que se sentou à nossa mesa, encomendou dose tripla de Robalo ao
Sal, que nem estava mau e o Bicho continuou, como se tivesse encontrado o pai,
ou a mãe, com quem não falasse há anos. A verdade é que não se calava, parecia
ter corda, ou uma metralhadora, eu nem tinha ordem de falar nem o queria
interromper não fosse o homem rebentar.
-
Nunca quis casar Baião, teria sido mau para ela, tu conheces-me, nem casar, nem
sócios, nem amigos, foi por causa deles que daquela vez fui apanhado, não
tivessem eles bufado e jamais me teriam deitado a mão.
Portanto,
a pequena a quem ele dera corda nem era esposa nem filha, eu bem digo que
calado apanhava mais coisas que se o tivesse interrompido.
-
Isto aqui quando cá cheguei era um maná Baião, um mar de oportunidades, e eu
não aproveitava ? Toda a gente se aproveitava ! Roubavam-se de herdades a
alfaias, a gado, a carradas de cortiça, ocupavam-se casas, Todos se amanhavam !
Entre setenta e quatro e oitenta e poucos era cada um por si, e eu, mal vi que
lá nas inspecções miravam tudo e por cá nem inspecções havia nem perdi tempo !
Olha, meti-me a sucateiro, deixava cartões e comissões em tudo que eram pronto
socorros ou oficinas, não te rias mas parecia o Sócrates !
Assim
fiquei sabendo que adquiria por tuta e meia todos os carros de gama alta,
recentes, estampados, ardidos ou acidentados e sem conserto que podia, parece
que na Suíça levariam logo baixa mas por cá ninguém controlava nada, era
comprá-los, com os documentos claro, que logo passava para nome próprio
enfiando o chaço num barracão, ou barracões que alugara um pouco por toda a
parte, Coina, Marvila, Dafundo, Loures, Azeitão, segundo ele até no norte
chegou a ter três ou quatro alugados.
-
Não me digas que das motas passaste a dar a palmada em carros, segredei-lhe eu.
(e seria fácil meter a matricula dos estampados nos roubados, quem iria
descobrir?)
-
Qual quê pá ! Mas quem tinha necessidade disso ? Ainda tenho alguma vergonha,
algum orgulho, roubar nunca ! Era fácil, ia a uma Rent A Car, alugava um carro
igualzinho, metia-lhe as matrículas do “meu”, e vá de fazer-lhe um seguro
contra todos os riscos, contra roubo, contra incêndio, contra quebra de vidros,
envolvendo ou incluindo extras se ou houvesse, eles calculavam os riscos e os
custos, eu aceitava o prémio proposto, pagava a primeira anuidade ia destrocar
as chapas de matrícula e devolver o carro à Rent A Car.
-
Não estou a perceber, ainda não cheguei lá confidenciei-lhe.
- Vai com calma
Baiãozinho (o vinho começava a pesar em nós), nunca fiz um seguro duas vezes na
mesma agência, trocava amiúde de seguradora e de cidade com mais frequência
ainda, e se não têm sido as inspecções periódicas e o novo hábito de conferir
matriculas e nºs de chassis o negócio ainda rodaria amigo. Bem, talvez já não,
com o aparecimento dos computadores e isso, era automático concluir que o meu
nome apareceria repetidamente como reclamando seguros de acidentes. Tocariam
campainhas percebes ? Mas entretanto vivi anos disso, perdi a conta
às vezes e às centenas de carros que as seguradoras me pagaram.
Eu
vivia bem, até era uma vida agitada e cansativa, é certo que arejava, que
mudava de ares, de cidade, de agência, depois o progresso codilhou-me,
estragou-me os negócios, esse e o das residências.
-
Residências ?! Retorqui eu admirado ! Também te meteste no imobiliário pá ? Não
há cão nem gato que não se meta nisso agora.
-
Nada disso, nem foi negócio d’agora, limitei-me a explorar no ramo o mesmo
nicho que fazia render nos automóveis.
-
Que queres dizer, acho que já não te estou a acompanhar outra vez, tu és pior
que o Arsène Lupin ! ***
-
Era fácil, fácil até a informática me estragar a coisa, felizmente retirei-me
antes de ter problemas, senão teria que explicar um dia muitas coisas para as
quais não tinha explicações nenhumas, e a ter seriam encontradas coincidências
a mais…
-
Conta conta !
Já
imaginava que ias pedir, afinal que tens aqui andado a fazer ? A dormir ? Havia
que aproveitar as deslocações que fazia, se ia tratar de embarrilar uma agência
com um seguro em Viseu, por exemplo, aproveitava a coisa, a estada, pegava nos
jornais do norte, dali, da zona, e via os chalés, residências, casas de campo
que havia para arrendar, preferencialmente mobiladas… com mobiliário antigo,
clássico, quadros nas paredes, cutelaria em prata, estanhos, candelabros,
tapetes persas, ou de Arraiolos, já percebeste ou tenho que te fazer um desenho
? Evidentemente o negócio rendeu, rendeu e bem, cheguei a ter casa de
antiguidades aberta em Gondomar, em Gaia, que não por acaso tinham na câmara
quem igualmente se amanhasse bem, se é que me entendes.
Pegámos
o jantar com a ceia, estava um individuo igual mas diferente, era bem-falante,
dominava bem a língua, que nele era cuidada, tinha modos nobres e gostos caros,
confidenciou-nos morar numa quinta de sonho em Azeitão para onde nos convidou,
era um jovem tão ignorante quanto eu ou quanto qualquer outro quando o
conhecera, agora estava perante um gentleman, um homem culto, muito mais
haveria naqueles quarenta anos que eu desconhecia, vivia, segundo dizia, de
poupanças de uma vida e de um pequeno investimento que fizera muitos anos atrás
na EDP, e nunca esquecera o que o pai lhe dissera;
- Um
homem ou tem energia ou não se mete nelas !
Mesmo
analisando literalmente a frase do pai era caso para aceitar que o Bicho a
levara à letra, até num investimento pessoal, o pai lá saberia, e realmente a
energia era tudo e era o futuro, só nunca quisera sócios, amigos ou cúmplices
porque, como dizia, uma amizade é uma testemunha e quando menos esperas
lixa-te.
-
Sou apologista da iniciativa individual Baião, vai por mim, no que não puderes
meter-te sozinho não te metas, é o meu conselho.
Soube-o
bemfeitor, altruísta, e bem relacionado, como ele mesmo dizia estava a devolver
o que tinha tomado de empréstimo e ainda lhe agradeciam e ficavam em favor,
favores Baião, ou és padrinho ou és afilhado porque a vida está pior do que a
pintavam os anarcas no nosso tempo de gaiatos lembras-te ?
Recusou-se
a deixar-nos pagar a conta, ficava pelos cigarros que lhe levara em tempos, com
juros claro. Qualquer dia lá iremos a Azeitão, antes que ele mande o motorista buscar-nos a casa…
*http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/221-contratempo-em-xangongo.html
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http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/223-farol-berlenga-grande.html
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https://pt.wikipedia.org/wiki/Ladr%C3%A3o_de_Casaca