Em
vida Vergílio Ferreira foi editado pela Bertrand, que além de editora era
distribuidora, a Distribuidora Bertrand, de nível e âmbito nacional e
trabalhando com todas as restantes editoras do país, sendo-nos contudo mais familiar como Livraria, pois possuía uma cadeia de livrarias, hoje conhecida como Bertrand
Livreiros.
Em
Évora, onde marcou presença em 1993, a Bertrand lançou-me um desafio o qual,
após limarmos arestas e acertarmos contas eu aceitei, para o que contaram a
minha experiência e conhecimentos de literatura, aliados à rede de contactos no
mundo escolar e académico, ou sociais como agora se diz, tornando-me com um
contrato sedutor responsável pelo seu investimento nesta cidade, que aplaudi,
Évora merecia uma extensão da Bertrand Livreiros, que mais tarde prontamente
contestei ao saber a localização prevista para a livraria, o “Centro Comercial
Feira Nova”, hoje Pingo Doce, à saída para Lisboa e local bem exterior ao
perímetro urbano da cidade. O tempo viria a dar-me razão, as gentes iam ali
para o arroz e o feijão, passando ao lado da livraria praticamente sem olharem
as montras. Abandonei funções em 1995, embora a Bertrand tenha teimado e
tentado subsistir naquele inadequado lugar mais um ano ou dois, não
consigo precisar já.
Porém,
apesar ou por tudo isso foi entendido propiciar-me formação especifica, mais
ainda e mais precisa, pelo que passei algumas semanas por trimestre em Lisboa,
nas instalações do Chiado, e na Amadora, onde à época se situava a
distribuidora, esta última gerida pelo senhor qualquer coisa Morais, hoje ele
mesmo livreiro, para o que adquiriu em Lisboa uma livraria em situação de
falência, após a queda do império Bertrand às mãos de gente do calibre daquela
que nos tem governado, gente que durante algum tempo se foi sucedendo
sucessivamente sem cessar à frente dos destinos do grupo e por pouco não rebentou
com ele.
Mas
do que vos quero falar é de Vergílio Ferreira, já um homem velho quando o
conheci, mas opinioso, garboso e desempenado, que por esses dias e numa dessas
formações me foi pessoal e casualmente apresentado pelo citado senhor Morais,
não recordo se no Chiado se na Amadora, no momento em que preparavam o
lançamento da sua biografia fotográfica, “pois havia que fazer render o peixe
antes que se fosse desta para melhor” segundo palavras do próprio Vergílio
Ferreira cujo falecimento, um momento infeliz, teve lugar um ano ou dois após
este nosso encontro. Dessa biografia guardo ainda hoje com muita consideração,
estima e carinho um exemplar autografado por ele mesmo, que ao saber-me de
Évora e seu leitor indefectível me abriu a porta da sua amizade com
condescendência.
Por
duas ou três vezes nos encontrámos, falámos, por junto três ou quatro horas, se
não mais, tive pois oportunidade para lhe fazer saber quanto apreciava os seus
escritos e volumes do “Espaço do Invisível” e de “Conta Corrente”, memórias que
considerava e considero conversas com os leitores e muito para além dos
próprios romances, estes mais limitados na amplitude do pensamento e
circunscritos a um tema, a uma história ou a um título, no que concordou
comigo, pois esses monólogos / diálogos com o leitor encerram um caracter mais
intimista que os romances, tolhidos pelos personagens, enquanto no “Espaço” e
na “Conta Corrente” o sentia falando comigo liberto de amarras e constrangimentos, enquanto eu, seu leitor, o ouvia e lia permitindo-me simultaneamente desvendar-lhe a
intimidade, o âmago, e arrancando desse mistério a luz.
-
Acha mesmo que foi um maravilhamento amigo Humberto ? (usou mesmo esta palavra,
maravilhamento).
Sim,
respondi-lhe, essas obras dão-nos a conhecer e a sentir o prazer da leitura,
essas suas confissões proporcionam ao leitor uma, como dizer, iniciação ao
pensar, à meditação, ao pensarmo-nos a nós e aos outros, incutem um exercício
mental que a convivência torna exigente e que nos força a uma conivência
condescendente para com os fundamentos da existência que em cada um de nós
existe, independentemente de mais conscientes uns de nós que noutros e da
própria avidez com que alimentamos essa moral, essa cumplicidade.
- Os
olhos comem, mas o espirito também, felizes os que o alimentam, sussurrou.
Na
realidade assim é, pena que os leitores de Vergílio Ferreira lhe procurem
sobretudo os fantásticos romances, fenomenais certamente, mas para quem exija
mais, encontrará nos volumes de “Espaço do Invisível” e de “Conta Corrente” a
alma do mestre, aberta, mostrando-nos com uma terna candura o modo como vê o
mundo que nos cerca e por vezes não compreendemos, ou nem sequer vemos, por
inexperientes, por desatentos, por ignorantes, por incultos. Com extrema
delicadeza diplomacia e grandeza Vergílio Ferreira vai inculcando em nós, seus
leitores, a sementinha da inquietação, da curiosidade, da interrogação, e vai
sugerindo respostas, caminhos, versões, soluções, sem nunca nos pressionar, sem
jamais pretender conduzir-nos, apenas informando, seduzindo não empurrando,
mostrando não impondo, e que melhor que nos fazer acreditar e levar a fazer, e a crer, que coisa melhor que ficar vendo-nos por nós mesmos alcançar, descobrir,
chegar, concluir ?
É
bom lê-lo, mas melhor ainda é “falar” com ele, percebê-lo, entendê-lo, vivê-lo,
porque depois de lido é o mestre que vive em nós, que vive por nós, se eterniza
em nós. Devemos-lhe isso pois nos seus escritos jamais nos ocultou a sua mente
ou nos fechou o coração. É o meu Nobel, será sempre o meu Nobel ainda que as
circunstâncias tenham concorrido em contrário.